Vozes do Multilinguismo: Dra. Rosângela Morello (IPOL) | Parte 1
Políticas Linguísticas como Travessia Pessoal e Nacional
Por Leonardo Alves e Caroline Schirmer Götz
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O multilinguismo é um fenômeno complexo, atravessado por dinâmicas históricas, políticas e sociais que determinam o status, a circulação e a valorização das línguas em diferentes contextos. Nesta série de entrevistas, membros do GT Geopolíticas do Multilinguismo se revezam para dialogar com especialistas de diversas áreas, explorando as interseções do multilinguismo com tradução, direitos linguísticos, mediação intercultural, migrações, internacionalização, informação e comunicação, ensino de línguas, entre outros temas.
O objetivo é reunir diferentes perspectivas sobre as políticas linguísticas, os desafios da preservação e revitalização de línguas, as relações entre idiomas em espaços de fronteira e a influência de fatores geopolíticos na organização do multilinguismo. A partir dessas conversas, buscamos ampliar o debate e fomentar reflexões críticas sobre os modos como as línguas circulam e se transformam no mundo contemporâneo.
Nesta edição, entrevistamos Rosângela Morello, Doutora e Mestre em Linguística pela Unicamp, com doutorado-sanduíche na Universidade Paris VII. Licenciada em Língua e Literatura Portuguesa, é diretora do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Políticas Linguísticas (IPOL) e vice-líder do Grupo de Pesquisa CNPq: Observatório de Políticas Linguísticas. Representa o IPOL no Grupo de Trabalho Nacional para a Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032) da UNESCO. Atua em políticas linguísticas e educacionais, mapeamento de línguas, diagnósticos sociolinguísticos e coordena projetos voltados à valorização de línguas indígenas, de imigração e de fronteira.
Alves e Götz: Como a experiência de atuar tanto na academia quanto na coordenação de projetos práticos influenciou sua visão sobre a aplicação das políticas linguísticas no Brasil?
Para além de uma “influência”, considero mais apropriado pensar em confrontos de ideias e deslocamentos de conhecimento que se produzem de forma dialética, pois é dessa maneira que tenho experienciado o trabalho com políticas linguísticas. Ao longo do meu percurso acadêmico, conceber programas e projetos em prol das línguas e de seus falantes no Brasil passou a ser, simultaneamente, parte da minha formação e atuação. Contribuir na área de políticas linguísticas, especialmente no âmbito do IPOL, significa imaginar e formular políticas enquanto, ao mesmo tempo, se trabalha para sua implementação. Reduzir a política linguística à “aplicação” de algo – como uma lei, por exemplo – é limitar-se aos aspectos pragmáticos de execução, quando, na verdade, a criação de uma nova política exige articular conhecimentos de diferentes áreas para fundamentar demandas e viabilizar ações do Estado. Esse processo é profundamente formativo e, por vezes, disruptivo.
Essa disrupção e a interdisciplinaridade também fazem parte da minha trajetória profissional, no âmbito da política linguística que, enquanto campo de decisões sobre as línguas, é um tema relativamente recente no Brasil, ganhando visibilidade nos anos 1990, a partir dos debates sobre repressão linguística e o monolinguismo do Estado brasileiro – discussões impulsionadas especialmente pelo professor Gilvan Müller de Oliveira, que trouxe à tona essa problemática ao articulá-la com pesquisas desenvolvidas em outras partes do mundo, sobretudo com base nos estudos de Louis-Jean Calvet. A inserção da política linguística como disciplina nos currículos universitários, no entanto, só ocorreria mais tarde, a partir dos anos 2000, o que acarretou uma impossibilidade de formação acadêmica nessa área para minha geração.
Apesar disso, vivíamos um momento de intensa politização em torno da língua portuguesa, suas variedades e processos de normatização no Brasil. Esses debates atravessavam o ensino de língua nas escolas e geravam inúmeras inquietações. Foi nesse ambiente que comecei minha trajetória: enquanto cursava Letras em Colatina (ES), lecionava Língua Portuguesa e Matemática em uma escola rural, vivenciando de perto essas tensões.
Após concluir a graduação, passei a frequentar disciplinas como aluna especial no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp) e fui selecionada para o curso de especialização A Trama da Linguagem na Escola, ministrado por docentes dessa instituição. Em seguida, ingressei no programa de Pós-graduação em Linguística.
O ambiente acadêmico fervilhava com programas e projetos de pesquisa sobre português brasileiro versus europeu, norma escrita, história e contato de línguas, discursos e ideologias, filosofia da linguagem, literaturas, entre outros temas. Além disso, os Seminários de Pesquisa do Laboratório de Estudos Urbanos (LABEURB), coordenado na época pela professora Eni Orlandi, proporcionavam um espaço de intensos debates. Nesse contexto, desenvolvi pesquisas em Análise de Discurso e História das Ideias Linguísticas no Brasil, focando na língua usada em contextos rurais (mestrado) e na constituição do saber sobre a língua portuguesa no Brasil (doutorado). Paralelamente, participava de discussões sobre a formação social, econômica, política e linguística do país, contribuindo também com o Grupo de Pesquisa da Comissão de Vestibulares da Unicamp.
Em 2000, passei a integrar formalmente a equipe de pesquisadores do LABEURB, enquanto atuava como docente em universidades. Durante toda essa trajetória, buscava respostas para questões profundamente ligadas à minha história de vida: ser mulher, professora, pesquisadora, autora, nascida em uma região rural e movida pelo desejo de “mudar o mundo”. Foi nesse percurso que encontrei na política linguística um espaço de reflexão sobre a diversidade de línguas no Brasil e sobre as políticas de silenciamento promovidas pelo Estado. Descobrir que o lugar onde nasci – Novo Brasil (ES) – havia recebido esse nome na década de 1940, em substituição a “Nova Itália”, como parte da repressão aos descendentes de italianos, foi um momento marcante nessa jornada. Já em 2004, passei a integrar a equipe do IPOL, assessorando o Programa das Escolas Interculturais Bilíngues de Fronteira. Desde então, o IPOL me faria viajar através de fronteiras, entre países e línguas, para tudo ser, sempre, travessia.
Alves e Götz: O IPOL tem desempenhado um papel fundamental na valorização e preservação das línguas no Brasil. Quais são os maiores desafios que o instituto enfrenta atualmente?
Em um país de tradição monolíngue como o Brasil, os desafios se apresentam em diversas frentes. Um dos principais é a sensibilização contínua sobre o que é o multilinguismo e quais são suas potencialidades para a sociedade. Outro é a própria gestão do multilinguismo no âmbito do conhecimento e das políticas públicas – uma tarefa que demanda atenção constante.
Além disso, é fundamental avançarmos em políticas linguísticas que não se limitem a categorias específicas de línguas – como as indígenas, alóctones ou de sinais –, mas que levem em consideração as condições sócio-históricas que atravessam os falantes de todas essas línguas. O IPOL trabalha especificamente com o conjunto das línguas brasileiras, reconhecendo tanto sua diversidade tipológica (indígenas, alóctones, de sinais, afrobrasileiras, crioulas) quanto sua distribuição geográfica e demográfica.
Essa abordagem se reflete nas três principais frentes de atuação do instituto: a cooficialização de línguas por municípios, o Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL) e as políticas linguísticas por reparação aos processos históricos de repressão e extermínio de línguas pelo Estado brasileiro desde o período colonial. Cada uma dessas frentes traz desafios que não dizem respeito apenas a uma ou outra língua, mas ao conjunto do nosso patrimônio linguístico – e que, portanto, merecem ser pensados de forma articulada.
Tomemos como exemplo a cooficialização que hoje é matéria legislativa em 79 municípios brasileiros, os quais devem avançar para a regulamentação e implementação das leis. Se observamos o quadro de línguas cooficializadas, somando hoje 60 línguas, teremos cenários interessantíssimos para a regulamentação de políticas linguísticas: há municípios que cooficializaram várias línguas alóctones ou então indígenas; há uma mesma língua cooficializada em muitos municípios; há municípios com apenas uma língua cooficializada além da língua portuguesa. Existem, ainda, municípios com um número expressivo de falantes de línguas indígenas e alóctones, mas que oficializam apenas línguas de uma destas categorias.
É certo que cada município tem autonomia para desenhar suas ações, porém todos se beneficiariam se pautassem medidas conjuntas para avançar na promoção do multilinguismo – além de poder dar atenção a uma ou outra língua. Consideremos, por exemplo, as dificuldades em se avançar em uma educação multilíngue em um sistema de ensino público que só contempla duas posições para ensino de línguas: a posição de língua materna, ocupada sempre pela língua portuguesa, definida como língua de todos os cidadãos brasileiros, e a posição língua estrangeira, hoje novamente ocupada prioritariamente pelo inglês. No entanto, se a cooficialização quer garantir que outras línguas brasileiras sejam contempladas no sistema de ensino, que soluções precisam ser dadas? Tais soluções se coadunam com a manutenção dessa estrutura binária língua materna versus língua estrangeira ou seria necessário superá-la?
Nosso papel no IPOL tem sido o de evidenciar essas demandas, comuns a todas as comunidades linguísticas, buscando pautar os entraves e pensar em soluções com a maior abrangência possível, o que envolve as lideranças das comunidades, os gestores de políticas públicas e pesquisadores no processo. Por isso, realizamos o I Encontro Nacional de Municípios Plurilíngues (ENMP) em 2015 e, agora, o II ENMP, que acontecerá nos dias 1º e 2 de setembro de 2025.
Embora eu tenha destacado a cooficialização, desafios semelhantes se colocam nas demais frentes. No caso das políticas de reparação, é urgente avançar na articulação entre políticas linguísticas e memória social – uma dimensão essencial da proposta da Nota Técnica sobre justiça linguística. A história de proibição e extermínio de línguas está estreitamente ligada ao racismo, aos preconceitos linguísticos e à desvalorização do outro – aquele subjugado, escravizado, e que pode ser exterminado, pelo processo da colonização. A reparação desse dano exige ações coletivas e integradas, inspiradas na justiça transicional e nos mecanismos adotados em contextos de genocídio. Há, portanto, um conjunto de conhecimentos e políticas a serem mobilizados para avançarmos no propósito da Nota Técnica, que beneficiarão o conjunto das línguas brasileiras.
Por tudo isso, é possível afirmar que um dos maiores desafios do IPOL tem sido justamente pautar políticas linguísticas sob perspectivas que exigem o deslocamento de crenças e práticas enraizadas ao longo da história. Paralelamente, seguimos executando projetos, consolidando políticas, produzindo conhecimento e, a partir disso, abrindo novas possibilidades de atuação.
Alves e Götz: A senhora coordenou projetos como os inventários das línguas hunsrückisch, pomerana e guarani-mbyá no âmbito do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL). Poderia compartilhar os principais aprendizados desse trabalho junto às comunidades e os impactos que ele gerou a partir da atuação do IPOL?
Como mencionei anteriormente, o Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL) é uma das principais frentes de atuação em políticas linguísticas do IPOL, ao lado da cooficialização de línguas em municípios e da elaboração da Nota técnica Conscientização do direito humano à diversidade linguística e formas de compensação pela história de repressão linguística no Brasil desde o início do processo de colonização. Essa nota orienta políticas públicas voltadas à reparação por parte do Estado brasileiro frente à repressão e ao extermínio de línguas.
A criação do INDL representou um avanço importante nas políticas linguísticas brasileiras. Destaco três pontos principais:
Primeiro, o INDL foi a primeira política pública de alcance nacional voltada ao reconhecimento de todas as línguas brasileiras, não apenas das indígenas, como previsto na Constituição Federal de 1988. Ele ampliou a atuação do Estado e passou a ser gerido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), reconhecendo a diversidade linguística como patrimônio cultural imaterial.
Em segundo lugar, vale lembrar que sua origem remonta a 2004, quando o IPOL peticionou à Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados para que o Ministério da Cultura, então liderado por Gilberto Gil, abrisse o Livro de Registro das Línguas Brasileiras. A solicitação desencadeou debates públicos e audiências como o Seminário para a Criação do Livro de Registro das Línguas, em 2006, que resultou na criação do Grupo de Trabalho para a Diversidade Linguística (GTDL). Esse grupo – formado por representantes da sociedade civil e do governo federal – elaborou, em 2007, o Relatório de Atividades com a proposta metodológica do INDL.
O terceiro ponto é justamente essa metodologia inovadora, voltada ao uso e circulação das línguas, à sua vitalidade e à sua valorização pelos falantes. O GTDL propôs uma classificação das línguas brasileiras em cinco categorias: indígenas, de imigração (alóctones), de comunidades afro-brasileiras, de sinais e crioulas, além da língua portuguesa com suas variedades. A metodologia, aplicada em projetos-piloto, buscou respeitar as diferenças entre línguas em risco de extinção (com pouquíssimos falantes), línguas com falantes concentrados em uma localidade ou região e línguas com grande população e extensão territorial. Essa abordagem, descrita nos Guias de Pesquisa e Documentação do INDL, tornou-se referência para o Brasil e também para outros países, inclusive para a UNESCO. O guia está disponível neste link.
Participei representando o IPOL no GTDL e coordenei o Inventário da Língua Guarani-Mbya, um dos projetos-piloto na categoria de línguas indígenas com ampla distribuição territorial e populacional. Os desafios foram grandes: desde a definição dos instrumentos de pesquisa e das terras indígenas a serem visitadas até a organização logística e a consolidação de relatórios. Essa experiência permitiu um olhar profundo sobre cada etapa do processo e nos qualificou para coordenar outros inventários, como os do Hunsrückisch, da LIBRAS, do pomerano e, mais recentemente, do polonês.
A atuação do IPOL, como proponente e executor dos inventários, segue uma perspectiva colaborativa em todas as fases do processo, incluindo a publicação dos resultados. Isso gera impactos significativos, especialmente na formação de pesquisadores por meio de parcerias com universidades e prefeituras. Por exemplo, o inventário da LIBRAS contou com a parceria da professora Ronice Quadros (UFSC); o do Hunsrückisch, com o professor Cléo Altenhofen (UFRGS); o pomerano teve apoio da UFF, da UFRGS, da prefeitura de Santa Maria de Jetibá (ES) e de Pomerode (SC).
Outro impacto importante é o envolvimento direto das comunidades. Os falantes atuam como depoentes e pesquisadores, e produtos específicos são desenvolvidos conforme suas demandas. É o caso do Vocabulário da Língua Pomerana (VOLBPomer), um aplicativo que permite ouvir e localizar palavras registradas durante a pesquisa, evidenciando suas variações regionais. Também houve o concurso de contos e poemas em Hunsrückisch, que resultou em um sarau e na publicação de um livro. Em Marechal Floriano (ES), por exemplo, a principal escola da cidade passou a desenvolver ações de valorização do multilinguismo, com repercussões em todo o estado.
Um aprendizado central que gostaria de destacar é o desejo genuíno dos falantes em transmitir suas línguas maternas às novas gerações. Contudo, esse desejo nem sempre encontra eco entre os jovens, cada vez mais atraídos por outras atividades e realidades. Enfrentar esse conflito é um desafio fundamental para o futuro das línguas brasileiras. Os inventários, ao mapear usos, circulação, vitalidade e atitudes linguísticas, oferecem uma base sólida para políticas públicas que visem a soluções coletivas e negociadas.

Leonardo Alves
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina na linha de pesquisa de Linguagem, Política e Sociedade. Graduado em Relações Internacionais pela Universidade de Santa Cruz do Sul.

Caroline Schirmer Götz
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) na linha de pesquisa de Linguagem, Política e Sociedade. Professora licenciada em Língua Portuguesa e Literaturas pela mesma instituição, leciona aulas de PLE para falantes de árabe e anglófonos.
I Jornadas Internacionales Las Lenguas, Sus Contextos y Usos
04 y 05 de septiembre, 2025 – Primera Circular
Objetivo: Visibilizar y fomentar los beneficios del multilingüismo en la educación, la economía y la cohesión social, promoviendo su integración en las políticas públicas.
La Provincia de Misiones, ubicada en el noreste de Argentina, es un ejemplo destacado de diversidad lingüística debido a la coexistencia de múltiples lenguas. Esto es resultado de una rica historia de migración y la presencia de comunidades de pueblos originarios que habitan la región. Además del español, se habla portugués, guaraní, mbyá-guaraní y lenguas de herencia como el alemán, polaco, ucraniano, italiano y la lengua de señas argentina, entre otras.
Las características de la provincia no solo reflejan la pluralidad cultural, sino que también plantean importantes desafíos que requieren políticas lingüísticas efectivas para la protección, fortalecimiento y revitalización de lenguas de herencia, lenguas minoritarias y lenguas de comunidades originarias, las cuales conviven con la influencia del español.
Estas complejidades y desafíos lingüísticos son compartidos con otras provincias y países que presentan contextos de gran riqueza lingüística, por ejemplo, el hunsrückisch, el talian, o el contacto de lenguas y los fenómenos resultantes, tales como el portuñol, el guarañol, el yopará o jopará. Estas dinámicas conectan a los países y reflejan el flujo natural de las fronteras y sus interacciones cotidianas. Para abordar estas ecologías lingüísticas, en el marco de estas jornadas y en conjunto con el curso de LEPLE – UNILA, se desarrollará el II Festival de Portuñol.
Presentación de resúmenes
Los trabajos deberán ser presentados en formato de resúmenes ampliados, incluyendo bibliografía, con una extensión de 2.000 a 2.500 palabras. Los resúmenes que cumplan con los requisitos serán publicados en el libro de anales del evento.
El plazo de envío estará abierto desde el 15 de marzo hasta el 15 de junio de 2025.
Para saber mais, acesse a primeira circular completa no link abaixo:
Primera circular de las Jornadas las lenguas, contextos y sus usos.docx
As mudanças climáticas estão matando palavras e línguas
Catástrofes e perda da biodiversidade ameaçam línguas em todo o mundo
Por Por Julia Webster Ayuso/Noema Magazine, Agência Pública
Por gerações, a família de Lars Miguel Utsi morou na pequena cidade de Jokkmokk, no norte da Suécia, onde a criação de renas faz parte do modo de vida local. Em uma parte do mundo onde a maioria de nós enxergaria apenas uma imensidão de neve branca, Utsi percebe a paisagem com detalhes.
Os sámi, o único grupo indígena reconhecido da Europa, vivem no país há milhares de anos, e sua língua reflete laços profundos com a terra. As nove línguas sámi ainda em uso possuem um vocabulário extenso para neve – desde åppås, a neve intocada do inverno, sem pegadas, até habllek, uma neve leve e areada, parecida com pó, e tjaevi, flocos que se grudam e são difíceis de cavar. A terminologia para descrever as renas é ainda mais detalhada e classifica os animais conforme o sexo, idade, cor, fertilidade e grau de domesticação.
Mas pastores de renas como Utsi perceberam o quão rapidamente sua língua está desaparecendo com as mudanças na paisagem. Embora o sámi do norte seja sua língua materna, ele tem plena consciência das lacunas em seu vocabulário – palavras que parecem não passar de uma geração para outra.
Uma palavra, em especial, demonstra o que está em jogo: o termo ealát, que Utsi disse poder ser traduzido livremente como “as condições ideais para que as renas encontrem líquens para pastar”. É o tipo de palavra que resiste à tradução – um termo complexo que implica que uma variedade de fatores se uniram em harmonia. Mas, hoje em dia, “ela é usada cada vez menos porque não vemos mais essas condições com tanta frequência”, disse Utsi.
Jokkmokk é um importante centro de criação de renas na Suécia, em uma região conhecida como Sápmi, que também abrange partes da Noruega, Finlândia e Rússia. O povo indígena sámi dessa região é particularmente vulnerável aos efeitos das mudanças climáticas: cientistas afirmam que o Ártico está aquecendo quase quatro vezes mais rápido do que o restante do mundo.
O derretimento precoce da neve causa enchentes sazonais anormais, criando barreiras para o pastoreio e destruindo a oferta de alimentos. Estudos apontam que, no último século, os habitats das renas diminuíram em 70%, em parte devido a inundações artificiais causadas por usinas hidrelétricas.
A Unesco considera as nove línguas sámi restantes como ameaçadas de extinção. O sámi do norte é o mais falado, com uma estimativa de 20 mil a 30 mil falantes, enquanto acredita-se que o ume sámi tenha menos de 50 falantes restantes.
Embora as causas desse declínio sejam complexas, o desaparecimento de palavras sámi reflete a erosão mais ampla de seu modo de vida. Pastores de renas como Utsi enfrentam, literalmente, a falta de palavras diante das mudanças em seu ambiente, o que sinaliza um futuro incerto: o que resta quando as coisas que você nomeia começam a desaparecer?
Língua x Idioma
Segundo o site Brasil Escola, línguas são instrumentos cuja maior finalidade é a comunicação. Elas “pertencem aos falantes, que dela apropriam-se para estabelecer interações com a sociedade onde vivem”.
Já os idiomas estão associados à existência de um Estado político e identificam uma nação. No Brasil, por exemplo, o português é o idioma oficial e está diretamente relacionado ao povo brasileiro.
Conexão entre língua e natureza
Cientistas e linguistas descobriram uma conexão surpreendente entre a biodiversidade e as línguas. Áreas ricas em diversidade biológica também tendem a ser ricas em diversidade linguística (alta concentração de línguas). Embora essa coexistência ainda não seja totalmente compreendida, uma forte correlação geográfica sugere que múltiplos fatores (ecológicos, sociais e culturais) influenciem ambas as formas de diversidade, que também estão em declínio em taxas alarmantes. Onde espécies de plantas e animais estão desaparecendo, línguas, dialetos e expressões únicas frequentemente seguem um padrão semelhante de declínio.
O Ártico pode não parecer um núcleo de biodiversidade, como a Amazônia ou as florestas costeiras da Tanzânia, mas desempenha um papel crucial na regulação e estabilização do clima da Terra e no suporte à vida em nosso planeta. Cientistas costumam dizer que “o que acontece no Ártico não fica no Ártico”, e qualquer perturbação em seu habitat tem consequências de longo alcance para a humanidade.
As comunidades indígenas mantêm relações profundas com as terras que ocupam há gerações, e essa conexão íntima se reflete nas línguas que falam – na forma como descrevem a paisagem e expressam as crenças e costumes nos quais essas línguas se desenvolveram. Quando suas relações com a terra sofrem, suas línguas também podem ser afetadas.
Por exemplo, Vanuatu, um país insular no Pacífico Sul com a maior densidade de línguas do planeta (110 línguas em 12.189 km²), abriga 138 espécies de plantas e animais ameaçadas. O país também está entre os mais vulneráveis à elevação do nível do mar e a desastres naturais relacionados ao clima. Cientistas alertam que a crise climática se tornou o “prego no caixão” para muitas línguas indígenas, à medida que comunidades costeiras são forçadas a se realocar.
Mapeando a diversidade do mundo
No início dos anos 1990, enquanto ambientalistas alertavam para o alarmante declínio da biodiversidade, a linguista ítalo-estadunidense Luisa Maffi estudava a perda das línguas do mundo e percebeu que essas duas tendências poderiam estar conectadas.
“De repente, me ocorreu: todas essas são formas de diversidade da vida na Terra. Diversidade na natureza, mas também de culturas e línguas humanas. Elas estão interconectadas e são interdependentes. Portanto, o que acontece com uma afeta a outra.”
Em 1988, o Primeiro Congresso Internacional de Etnobiologia, realizado em Belém (PA), detectou a ligação indissociável entre diversidade cultural e biológica. Mas foi após outra conferência, em 1995 – onde Maffi conheceu o conservacionista David Harmon, que havia reunido dados sobre essa “crise de extinção convergente” –, que os dois fundaram a Terralingua. A ONG foca na “diversidade biocultural”, termo que eles popularizaram, que expressa como “biodiversidade, diversidade cultural e diversidade linguística estão interligadas”.
Na época, dados sobre as línguas do mundo eram difíceis de encontrar. Um dos poucos bancos abrangentes era o The Ethnologue, que começou a catalogar línguasem 1951. As línguas mudam rapidamente, e nem todos concordam sobre onde termina uma e começa outra. Assim, a Terralingua criou o Índice de Diversidade Linguística, que se define como “a primeira medida quantitativa das tendências da diversidade linguística mundial”.
O índice revelou que, entre 1970 e 2005, a diversidade linguística global havia diminuído cerca de 20%, sendo as línguas indígenas as mais afetadas. Esses dados, quando comparados a informações sobre biodiversidade, revelaram uma tendência surpreendente: as perdas linguísticas espelhavam o declínio da biodiversidade global. O Índice Planeta Vivo, do WWF (Fundo Mundial para a Natureza), constatou que, no mesmo período, as populações de espécies de plantas e animais diminuíram, em média, 27%.
“Demonstramos que cerca de três quartos das línguas do planeta são faladas em áreas de alta biodiversidade, o que corresponde a aproximadamente um quarto da superfície terrestre, excluindo a Antártida,” diz Larry Gorenflo, coautor do estudo e professor da Universidade do Estado da Pensilvânia (EUA).
As razões exatas por trás das conexões entre línguas e natureza não estão totalmente claras, segundo Gorenflo. Estudos anteriores sugeriram que áreas com um número elevado de recursos criam diversidade linguística porque as pessoas precisam se adaptar a ambientes mais complexos. Mas outros argumentam que isso ocorre porque recursos mais abundantes reduzem a necessidade de compartilhamento e, consequentemente, a necessidade de comunicação com grupos vizinhos em tempos de escassez.
Mundo tem mais de 8 mil línguas
Linguistas estimam que existam cerca de 8.324 línguas no mundo, sendo que, segundo o Ethnologue, 7.164 ainda são faladas hoje. No entanto, a distribuição da população global entre essas línguas é extremamente desigual. Mais da metade dos 8 bilhões de habitantes do planeta fala apenas uma das 25 línguas mais comuns. A maioria das outras 7.139 línguas tem poucos falantes. Cerca de metade de todas as línguas é falada por comunidades com 10 mil pessoas ou menos, enquanto centenas delas têm apenas dez ou menos falantes.
Línguas e sabedoria ecológica
De acordo com Gary Simmons, editor executivo do Ethnologue, uma língua morre aproximadamente a cada 40 dias. O linguista Kenneth Hale comparou a perda de uma única língua a “derrubar uma bomba no Louvre”, devido à riqueza cultural e intelectual que cada uma carrega. A taxa de extinção das línguas tende a crescer à medida que as crianças deixam de aprendê-las e os falantes mais velhos falecem. A maioria das línguas desapareceu sem deixar rastros, pois, ao longo da história, foram transmitidas apenas oralmente.
No oeste do Canadá e dos EUA, por exemplo, expressões em línguas indígenas indicam o momento ideal para a colheita de plantas silvestres. Os povos indígenas australianos definem as estações do ano com base na floração das árvores nativas. Os calendários tradicionais dos sámi possuem 13 meses baseados na atividade de plantas e animais em determinadas épocas do ano, como miessemánnu (mês do filhote de rena) e borgemánnu (mês da troca de pelagem da rena).
A língua como ferramenta de colonização
A notável concentração de línguas nas regiões mais diversas biologicamente – especialmente nos trópicos e áreas próximas à Linha do Equador – pode ser em parte explicada pelo papel protetor dessas áreas selvagens contra a colonização. Historicamente, a morte de línguas foi frequentemente impulsionada pelo colonialismo e, como argumenta Alfred Crosby em Ecological Imperialism, os colonizadores europeus geralmente preferiam regiões temperadas, com terras planas e aráveis, mais fáceis de ocupar e cultivar.
Nas áreas que colonizaram, os europeus logo perceberam que a língua era crucial para sua missão. Para dominar territórios política e economicamente, as potências colonizadoras identificaram a necessidade de dominá-los linguisticamente também. No início do século XX, séculos de colonialismo já haviam eliminado cerca de 20% das línguas indígenas na Austrália, EUA, África do Sul e Argentina.
Ao erradicar as línguas maternas dos povos colonizados, os colonizadores desconectaram as populações locais de sua cultura, memória, identidade comunitária e relação com a terra, que também havia sido tomada delas. “A língua, qualquer língua, tem um caráter duplo: é um meio de comunicação e um portador de cultura”, escreveu o romancista queniano Ngũgĩ wa Thiong’o.
Hoje, a perda de línguas muitas vezes é consequência do que muitas pessoas em sociedades industrializadas chamam de “progresso”: casamentos interétnicos, imposição de línguas mais “populares” nas escolas e imigração em busca de melhores oportunidades. As línguas indígenas se tornam difíceis de serem conservadas quando seus falantes se integram a novas realidades e deixam de usá-las nos contextos nos quais foram criadas.
Conservação e conhecimento
Paradoxalmente, a ideia de que os seres humanos são separados da natureza também esteve no centro da ideologia da conservação ambiental. Durante uma viagem aos EUA em 1919, o Rei Albert I da Bélgica visitou três dos parques nacionais do país: Yellowstone, Yosemite e o Grand Canyon. Poucos anos antes, o presidente Woodrow Wilson havia assinado a criação do National Park Service, uma agência dedicada a proteger 35 parques e monumentos nacionais. Inspirado pelo que viu nos EUA, Albert decidiu criar seu próprio parque em 1925, no então Congo Belga, nomeado Parque Nacional Albert. Hoje conhecido como Parque Nacional de Virunga, ele é considerado o primeiro parque nacional da África.
O conceito de “parque nacional” surgiu do movimento conservacionista do século XIX, enraizado na ideia de que a natureza deveria ser separada e protegida dos povos que vivem dentro dela. As autoridades belgas alegavam que apenas 300 pessoas viviam na área do parque, mas, na realidade, milhares de hutus e tutsis foram violentamente expulsos.
Ao longo dos anos, a biodiversidade do parque foi ameaçada por conflitos, desmatamento, caça ilegal e exploração de petróleo e gás, enquanto seu modelo de conservação “fortaleza” – que mantém ambientes intocados pela influência humana – foi criticado por impedir que as populações locais acessassem seus próprios recursos naturais.
A preservação da língua como conservação
Para Luisa Maffi, a abundância de línguas, culturas e biodiversidade em uma região são elementos interdependentes. Dessa forma, preservar as línguas do mundo também pode ser considerado uma ferramenta essencial no combate à crise climática.
No Havaí, a tartaruga-verde, ou honu – uma espécie ameaçada protegida por leis federais dos EUA –, sempre foi um símbolo poderoso de cultura, representando sabedoria, proteção e orientação espiritual. Na crença tradicional havaiana, o honu é um ‘aumakua, um deus pessoal ou familiar, ou um ancestral deificado. Muitos ‘aumakua são animais, mas também podem ser plantas – uma tradição que lembra a forma como os Lakota veem outros seres vivos como “parentes”.
Além dessas tradições, a língua havaiana é fundamental para a identidade da ilha. No entanto, ambas sofreram uma queda devastadora no século XX: as populações de honu despencaram devido à caça excessiva, enquanto a língua havaiana quase desapareceu sob uma lei que determinava o inglês como única língua de instrução em todas as escolas públicas e privadas até 1987. Durante esse período, estudantes eram punidos e humilhados por falar havaiano.
Nas últimas décadas, porém, ambos se tornaram centrais para a revitalização da cultura havaiana. As populações de honu vêm crescendo 5% ao ano nos últimos 20 anos, enquanto o número de falantes de havaiano aumentou dramaticamente (de 1.500 em 1980 para 18.000 em 2016), graças a programas educacionais e à transmissão do idioma para as novas gerações.
A importância do multilinguismo
Linguistas preveem que entre 50% e 90% das línguas do mundo desaparecerão até o final deste século. O fato de estudantes com mais anos de escolaridade estarem mais propensos a perder sua língua materna indica que esse rápido declínio está enraizado em uma mentalidade monolíngue. Embora o multilinguismo seja a experiência humana dominante (cerca de 60% da população mundial fala mais de um idioma), muitos países se enxergam como estados-nação monolíngues, onde uma única língua é considerada essencial para preservar a identidade nacional.
“A ideia não apenas de unidade nacional, mas também de unidade e uniformidade linguística, veio com a criação do estado-nação na era moderna. Precisamos combater a ideia de que o multilinguismo é um inimigo”, diz Luisa Maffi.
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Imagem: Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos/Domínio Público
Acesse a matéria na fonte: https://racismoambiental.net.br/2025/02/17/as-mudancas-climaticas-estao-matando-palavras-e-linguas/
Cinema deve olhar para violações a indígenas na ditadura
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LÉO RODRIGUES – REPÓRTER DA AGÊNCIA BRASIL

© LEO FONTES/UNIVERSO PRODUÇÃO/ DIVULGAÇÃO
Há uma semana, o cinema brasileiro vem comemorando a indicação do filmeAinda Estou Aqui a três categorias do Oscar. O longa-metragem alcançou o feito inédito ao levar para as telas a história da família de Rubens Paiva, deputado federal que teve seu mandato cassado pela ditadura militar e que foi posteriormente torturado e morto.
Inaugurando o calendário do audiovisual brasileiro, a Mostra de Cinema de Tiradentes que ocorre ao longo desta semana na cidade de Tiradentes, em Minas Gerais, se tornou mais um espaço para se debater e se celebrar a conquista. Mas a programação também levou para as telas um filme que, de alguma forma, resgata uma história que realça uma marca pouco conhecida do mesmo regime militar: a violação aos povos indígenas.
“São memórias que o cinema nos dá uma chance de revisitar e que podem assim ser jogadas na cara do povo brasileiro de uma certa forma”, avalia o etnólogo e cineasta Roberto Romero, um dos diretores do documentário Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá.
Exibido no domingo (26), ele aborda o assunto de uma forma lateral. O documentário narra o reencontro de Sueli Maxakali com seu pai Luiz Kaiowá. “Eu não o conheci. Eu tinha seis meses de idade e minha irmã tinha cinco anos quando ele partiu”, conta Sueli, em debate sobre o filme realizado nessa terça-feira (27). Ela também é uma das diretoras do documentário.
Luiz Kaiowá é um indígena Guarani-Kaiowá que chegou, através da Fundação Nacional do Índio (Funai), para trabalhar na terra Maxacali, em Minas Gerais. Ele operava um trator e lá se casou com a mãe de Sueli. No entanto, ele acabou voltando para a terra dos Guarani-Kaiowá em Mato Grosso do Sul.
Tudo aconteceu “no tempo dos soldados” como dizem os indígenas mais velhos que dão seus depoimentos no filme. Eles relatam os maus-tratos a que foram submetidos e o desmatamento, relegando a aldeia a uma porção de terra reduzida que sequer tinha água.
“Boa parte desse território foi dividido durante a ditadura militar. O capitão Manoel dos Santos Pinheiro, que era o sobrinho do governador de Minas Gerais, foi enviado para lá para ser o dono daquela região e fazer o que quisesse. Ele dividiu a terra entre os próprios funcionários do SPI [Serviço de Proteção aos Índios] e depois da Funai”, conta Roberto Romero, lembrando que o militar também atuou para impedir a demarcação.
O filme Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá foi dirigido a oito mãos: além de Sueli Maxacali e Roberto Romero, o quarteto foi composto ainda por Isael Maxakali e Luísa Lanna. Um ônibus levou os Maxacalis até a aldeia Guarani-Kaiowá. Dessa forma, o reencontro entre Sueli e seu pai foi também o momento de uma comunhão entre os dois povos.
Luísa defende que o cinema olhe com mais atenção para a memória que os povos indígenas guardam do período militar. “As atrocidades que aconteceram foram muitas e elas são muito pouco conhecidas pela população de uma forma geral. Mas é importante pontuar que é um buraco que não é só na cinematografia. É na história também,” enfatiza.
Ela vê a possibilidade de uma evolução paralela. “As coisas vão andando juntas. Na medida que a historiografia for reconhecendo, a cinematografia vai reconhecendo. Uma coisa puxa a outra. E assim vai tornando possível que essas histórias sejam contadas e passem a integrar o repertório histórico da população brasileira. Mas, com certeza, acho que ter mais editais dedicados principalmente a autorias indígenas e realizadores indígenas [isso] pode contribuir para resgatar essas memórias.”
Violações
As violações de direitos no regime militar já foram exploradas por diferentes filmes. O Que é Isso Companheiro?, Zuzu Angel, Marighella, O ano em que meus pais saíram de férias e Batismo de Sangue são alguns títulos de referência, ao qual agora se soma Ainda Estou Aqui. No entanto, nenhum deles aborda o que ocorreu com os indígenas.
Alguns livros vêm buscando tirar essas histórias do anonimato. Um dos mais recentes é Tom Vermelho do Verde, lançado em 2022 pelo jornalista e escritor Frei Betto. A obra narra um drama que tem como pano de fundo o massacre dos indígenas Waimiri Atroari durante a abertura de rodovias na Amazônia entre as décadas de 1960 e 1980. Frei Betto, que participou de ações da resistência contra a ditadura, disse em recente entrevista à Agência Brasil que atualmente compreende que os indígenas foram as maiores vítimas da violência empreendida pelos militares.
No cinema, Luísa destaca como um dos trabalhos de referência o filme GRIN – Guarda Rural Indígena, lançado em 2016 sob direção de Roney Freitas e Isael Maxakali. Já no filme Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá, ela observa que essa memória da ditadura aparece de um jeito diferente dos registros produzidos pela cultura ocidental do homem branco. De acordo com a diretora, não é uma memória estanque.
“Ela se constrói a partir das várias histórias que são repassadas pelas falas das pessoas que testemunharam esse momento, que viveram esse momento. Elas vão contando cada uma sua memória, mas também as suas várias percepções dessa história, do que aconteceu. Produzem uma memória que é viva e visível. E ela é acima de tudo criativa e inventiva, nesse sentido de que mais de uma história é sempre melhor do que uma história só”, salienta.
A diretora considera que há uma desconstrução da ideia de uma história voltada para a uma busca por uma verdade única e universal. Através dos depoimentos do filme, segundo ela, são apresentadas vivências e percepções individuais.
Resistência
Os Maxakalis formam um povo com cerca de três mil pessoas vivendo na região do Vale do Mucuri em Minas Gerais, dividida em aldeias que ocupam pequenos territórios. Na maioria delas, não tem rio e a paisagem de Mata Atlântica foi substituída por pasto. O filme documenta também a luta liderada por Sueli e Isael para retomada de um novo território para cerca de 100 famílias. Em uma das cenas, uma placa é pintada para demarcar o local.
“Antes de eu viajar para conhecer meu pai, eu queria deixar meu povo mais à vontade. Pintamos a placa para saber que ali está o meu povo”, conta Sueli. Para Roberto Romero, ao colocar o filme como parte do processo de retomada, os Maxakalis o transformam em um instrumento de resistência. Ele destaca ainda a decisão de gravar o documentário todo em idioma indígena. São faladas as línguas dos dois povos retratados: Maxakalis e Guarani-Kaiowás.
“Os Maxacalis perderam tudo de concreto, digamos assim. Mas preservaram a memória das palavras. Eles lembram os nomes de todos os animais da Mata Atlântica mesmo não convivendo com eles há décadas. E essas palavras são faladas como histórias, como narrativas. E também são cantadas. E a gente tenta mostrar isso no filme: que os cantos são parte vida social, da vida cotidiana. Para quase tudo se canta”, diz o diretor.
Para Isael Maxakali, preservar o idioma é uma das principais motivações para fazer filme. “É para não apagar o nosso histórico. Eu gosto de fazer filme também para que o Brasil possa conhecer nossa linguagem”, afirma.
. Aqui uma resenha do filme …Eis o mote inicial: Sueli Maxakali quer retomar o contato com o pai. Ele, a quem chamam Luiz, não é parte dos Maxakali; antes, é um Kaiowá andarilho, oriundo das bandas do Mato Grosso. De algum modo, ele foi levado para Teófilo Otoni, onde conheceu os Maxakali e a mãe de Sueli, antes de retornar para casa, anos depois.
Por que ele foi levado para tão longe? Porque estávamos na ditadura militar, e porque Luiz não tinha documentos, e porque os milicos aprisionavam os indígenas que, assim como ele, estavam soltos no mundo, forçando-os a trabalhar.
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