Questões indígenas

As mudanças climáticas estão matando palavras e línguas

Catástrofes e perda da biodiversidade ameaçam línguas em todo o mundo

Por Por Julia Webster Ayuso/Noema Magazine, Agência Pública

Por gerações, a família de Lars Miguel Utsi morou na pequena cidade de Jokkmokk, no norte da Suécia, onde a criação de renas faz parte do modo de vida local. Em uma parte do mundo onde a maioria de nós enxergaria apenas uma imensidão de neve branca, Utsi percebe a paisagem com detalhes.

Os sámi, o único grupo indígena reconhecido da Europa, vivem no país há milhares de anos, e sua língua reflete laços profundos com a terra. As nove línguas sámi ainda em uso possuem um vocabulário extenso para neve – desde åppås, a neve intocada do inverno, sem pegadas, até habllek, uma neve leve e areada, parecida com pó, e tjaevi, flocos que se grudam e são difíceis de cavar. A terminologia para descrever as renas é ainda mais detalhada e classifica os animais conforme o sexo, idade, cor, fertilidade e grau de domesticação.

Mas pastores de renas como Utsi perceberam o quão rapidamente sua língua está desaparecendo com as mudanças na paisagem. Embora o sámi do norte seja sua língua materna, ele tem plena consciência das lacunas em seu vocabulário – palavras que parecem não passar de uma geração para outra.

Uma palavra, em especial, demonstra o que está em jogo: o termo ealát, que Utsi disse poder ser traduzido livremente como “as condições ideais para que as renas encontrem líquens para pastar”. É o tipo de palavra que resiste à tradução – um termo complexo que implica que uma variedade de fatores se uniram em harmonia. Mas, hoje em dia, “ela é usada cada vez menos porque não vemos mais essas condições com tanta frequência”, disse Utsi.

Jokkmokk é um importante centro de criação de renas na Suécia, em uma região conhecida como Sápmi, que também abrange partes da Noruega, Finlândia e Rússia. O povo indígena sámi dessa região é particularmente vulnerável aos efeitos das mudanças climáticas: cientistas afirmam que o Ártico está aquecendo quase quatro vezes mais rápido do que o restante do mundo.

O derretimento precoce da neve causa enchentes sazonais anormais, criando barreiras para o pastoreio e destruindo a oferta de alimentos. Estudos apontam que, no último século, os habitats das renas diminuíram em 70%, em parte devido a inundações artificiais causadas por usinas hidrelétricas.

A Unesco considera as nove línguas sámi restantes como ameaçadas de extinção. O sámi do norte é o mais falado, com uma estimativa de 20 mil a 30 mil falantes, enquanto acredita-se que o ume sámi tenha menos de 50 falantes restantes.

Embora as causas desse declínio sejam complexas, o desaparecimento de palavras sámi reflete a erosão mais ampla de seu modo de vida. Pastores de renas como Utsi enfrentam, literalmente, a falta de palavras diante das mudanças em seu ambiente, o que sinaliza um futuro incerto: o que resta quando as coisas que você nomeia começam a desaparecer?

Língua x Idioma

Segundo o site Brasil Escola, línguas são instrumentos cuja maior finalidade é a comunicação. Elas “pertencem aos falantes, que dela apropriam-se para estabelecer interações com a sociedade onde vivem”.

Já os idiomas estão associados à existência de um Estado político e identificam uma nação. No Brasil, por exemplo, o português é o idioma oficial e está diretamente relacionado ao povo brasileiro.

Conexão entre língua e natureza

Cientistas e linguistas descobriram uma conexão surpreendente entre a biodiversidade e as línguas. Áreas ricas em diversidade biológica também tendem a ser ricas em diversidade linguística (alta concentração de línguas). Embora essa coexistência ainda não seja totalmente compreendida, uma forte correlação geográfica sugere que múltiplos fatores (ecológicos, sociais e culturais) influenciem ambas as formas de diversidade, que também estão em declínio em taxas alarmantes. Onde espécies de plantas e animais estão desaparecendo, línguas, dialetos e expressões únicas frequentemente seguem um padrão semelhante de declínio.

O Ártico pode não parecer um núcleo de biodiversidade, como a Amazônia ou as florestas costeiras da Tanzânia, mas desempenha um papel crucial na regulação e estabilização do clima da Terra e no suporte à vida em nosso planeta. Cientistas costumam dizer que “o que acontece no Ártico não fica no Ártico”, e qualquer perturbação em seu habitat tem consequências de longo alcance para a humanidade.

As comunidades indígenas mantêm relações profundas com as terras que ocupam há gerações, e essa conexão íntima se reflete nas línguas que falam – na forma como descrevem a paisagem e expressam as crenças e costumes nos quais essas línguas se desenvolveram. Quando suas relações com a terra sofrem, suas línguas também podem ser afetadas.

Por exemplo, Vanuatu, um país insular no Pacífico Sul com a maior densidade de línguas do planeta (110 línguas em 12.189 km²), abriga 138 espécies de plantas e animais ameaçadas. O país também está entre os mais vulneráveis à elevação do nível do mar e a desastres naturais relacionados ao clima. Cientistas alertam que a crise climática se tornou o “prego no caixão” para muitas línguas indígenas, à medida que comunidades costeiras são forçadas a se realocar.

Mapeando a diversidade do mundo

No início dos anos 1990, enquanto ambientalistas alertavam para o alarmante declínio da biodiversidade, a linguista ítalo-estadunidense Luisa Maffi estudava a perda das línguas do mundo e percebeu que essas duas tendências poderiam estar conectadas.

“De repente, me ocorreu: todas essas são formas de diversidade da vida na Terra. Diversidade na natureza, mas também de culturas e línguas humanas. Elas estão interconectadas e são interdependentes. Portanto, o que acontece com uma afeta a outra.”

Em 1988, o Primeiro Congresso Internacional de Etnobiologia, realizado em Belém (PA), detectou a ligação indissociável entre diversidade cultural e biológica. Mas foi após outra conferência, em 1995 – onde Maffi conheceu o conservacionista David Harmon, que havia reunido dados sobre essa “crise de extinção convergente” –, que os dois fundaram a Terralingua. A ONG foca na “diversidade biocultural”, termo que eles popularizaram, que expressa como “biodiversidade, diversidade cultural e diversidade linguística estão interligadas”.

Na época, dados sobre as línguas do mundo eram difíceis de encontrar. Um dos poucos bancos abrangentes era o The Ethnologue, que começou a catalogar línguasem 1951. As línguas mudam rapidamente, e nem todos concordam sobre onde termina uma e começa outra. Assim, a Terralingua criou o Índice de Diversidade Linguística, que se define como “a primeira medida quantitativa das tendências da diversidade linguística mundial”.

O índice revelou que, entre 1970 e 2005, a diversidade linguística global havia diminuído cerca de 20%, sendo as línguas indígenas as mais afetadas. Esses dados, quando comparados a informações sobre biodiversidade, revelaram uma tendência surpreendente: as perdas linguísticas espelhavam o declínio da biodiversidade global. O Índice Planeta Vivo, do WWF (Fundo Mundial para a Natureza), constatou que, no mesmo período, as populações de espécies de plantas e animais diminuíram, em média, 27%.

“Demonstramos que cerca de três quartos das línguas do planeta são faladas em áreas de alta biodiversidade, o que corresponde a aproximadamente um quarto da superfície terrestre, excluindo a Antártida,” diz Larry Gorenflo, coautor do estudo e professor da Universidade do Estado da Pensilvânia (EUA).

As razões exatas por trás das conexões entre línguas e natureza não estão totalmente claras, segundo Gorenflo. Estudos anteriores sugeriram que áreas com um número elevado de recursos criam diversidade linguística porque as pessoas precisam se adaptar a ambientes mais complexos. Mas outros argumentam que isso ocorre porque recursos mais abundantes reduzem a necessidade de compartilhamento e, consequentemente, a necessidade de comunicação com grupos vizinhos em tempos de escassez.

Mundo tem mais de 8 mil línguas

Linguistas estimam que existam cerca de 8.324 línguas no mundo, sendo que, segundo o Ethnologue, 7.164 ainda são faladas hoje. No entanto, a distribuição da população global entre essas línguas é extremamente desigual. Mais da metade dos 8 bilhões de habitantes do planeta fala apenas uma das 25 línguas mais comuns. A maioria das outras 7.139 línguas tem poucos falantes. Cerca de metade de todas as línguas é falada por comunidades com 10 mil pessoas ou menos, enquanto centenas delas têm apenas dez ou menos falantes.

Línguas e sabedoria ecológica

De acordo com Gary Simmons, editor executivo do Ethnologue, uma língua morre aproximadamente a cada 40 dias. O linguista Kenneth Hale comparou a perda de uma única língua a “derrubar uma bomba no Louvre”, devido à riqueza cultural e intelectual que cada uma carrega. A taxa de extinção das línguas tende a crescer à medida que as crianças deixam de aprendê-las e os falantes mais velhos falecem. A maioria das línguas desapareceu sem deixar rastros, pois, ao longo da história, foram transmitidas apenas oralmente.

No oeste do Canadá e dos EUA, por exemplo, expressões em línguas indígenas indicam o momento ideal para a colheita de plantas silvestres. Os povos indígenas australianos definem as estações do ano com base na floração das árvores nativas. Os calendários tradicionais dos sámi possuem 13 meses baseados na atividade de plantas e animais em determinadas épocas do ano, como miessemánnu (mês do filhote de rena) e borgemánnu (mês da troca de pelagem da rena).

A língua como ferramenta de colonização

A notável concentração de línguas nas regiões mais diversas biologicamente – especialmente nos trópicos e áreas próximas à Linha do Equador – pode ser em parte explicada pelo papel protetor dessas áreas selvagens contra a colonização. Historicamente, a morte de línguas foi frequentemente impulsionada pelo colonialismo e, como argumenta Alfred Crosby em Ecological Imperialism, os colonizadores europeus geralmente preferiam regiões temperadas, com terras planas e aráveis, mais fáceis de ocupar e cultivar.

Nas áreas que colonizaram, os europeus logo perceberam que a língua era crucial para sua missão. Para dominar territórios política e economicamente, as potências colonizadoras identificaram a necessidade de dominá-los linguisticamente também. No início do século XX, séculos de colonialismo já haviam eliminado cerca de 20% das línguas indígenas na Austrália, EUA, África do Sul e Argentina.

Ao erradicar as línguas maternas dos povos colonizados, os colonizadores desconectaram as populações locais de sua cultura, memória, identidade comunitária e relação com a terra, que também havia sido tomada delas. “A língua, qualquer língua, tem um caráter duplo: é um meio de comunicação e um portador de cultura”, escreveu o romancista queniano Ngũgĩ wa Thiong’o.

Hoje, a perda de línguas muitas vezes é consequência do que muitas pessoas em sociedades industrializadas chamam de “progresso”: casamentos interétnicos, imposição de línguas mais “populares” nas escolas e imigração em busca de melhores oportunidades. As línguas indígenas se tornam difíceis de serem conservadas quando seus falantes se integram a novas realidades e deixam de usá-las nos contextos nos quais foram criadas.

Conservação e conhecimento 

Paradoxalmente, a ideia de que os seres humanos são separados da natureza também esteve no centro da ideologia da conservação ambiental. Durante uma viagem aos EUA em 1919, o Rei Albert I da Bélgica visitou três dos parques nacionais do país: Yellowstone, Yosemite e o Grand Canyon. Poucos anos antes, o presidente Woodrow Wilson havia assinado a criação do National Park Service, uma agência dedicada a proteger 35 parques e monumentos nacionais. Inspirado pelo que viu nos EUA, Albert decidiu criar seu próprio parque em 1925, no então Congo Belga, nomeado Parque Nacional Albert. Hoje conhecido como Parque Nacional de Virunga, ele é considerado o primeiro parque nacional da África.

O conceito de “parque nacional” surgiu do movimento conservacionista do século XIX, enraizado na ideia de que a natureza deveria ser separada e protegida dos povos que vivem dentro dela. As autoridades belgas alegavam que apenas 300 pessoas viviam na área do parque, mas, na realidade, milhares de hutus e tutsis foram violentamente expulsos.

Ao longo dos anos, a biodiversidade do parque foi ameaçada por conflitos, desmatamento, caça ilegal e exploração de petróleo e gás, enquanto seu modelo de conservação “fortaleza” – que mantém ambientes intocados pela influência humana – foi criticado por impedir que as populações locais acessassem seus próprios recursos naturais.

A preservação da língua como conservação

Para Luisa Maffi, a abundância de línguas, culturas e biodiversidade em uma região são elementos interdependentes. Dessa forma, preservar as línguas do mundo também pode ser considerado uma ferramenta essencial no combate à crise climática.

No Havaí, a tartaruga-verde, ou honu – uma espécie ameaçada protegida por leis federais dos EUA –, sempre foi um símbolo poderoso de cultura, representando sabedoria, proteção e orientação espiritual. Na crença tradicional havaiana, o honu é um ‘aumakua, um deus pessoal ou familiar, ou um ancestral deificado. Muitos ‘aumakua são animais, mas também podem ser plantas – uma tradição que lembra a forma como os Lakota veem outros seres vivos como “parentes”.

Além dessas tradições, a língua havaiana é fundamental para a identidade da ilha. No entanto, ambas sofreram uma queda devastadora no século XX: as populações de honu despencaram devido à caça excessiva, enquanto a língua havaiana quase desapareceu sob uma lei que determinava o inglês como única língua de instrução em todas as escolas públicas e privadas até 1987. Durante esse período, estudantes eram punidos e humilhados por falar havaiano.

Nas últimas décadas, porém, ambos se tornaram centrais para a revitalização da cultura havaiana. As populações de honu vêm crescendo 5% ao ano nos últimos 20 anos, enquanto o número de falantes de havaiano aumentou dramaticamente (de 1.500 em 1980 para 18.000 em 2016), graças a programas educacionais e à transmissão do idioma para as novas gerações.

A importância do multilinguismo

Linguistas preveem que entre 50% e 90% das línguas do mundo desaparecerão até o final deste século. O fato de estudantes com mais anos de escolaridade estarem mais propensos a perder sua língua materna indica que esse rápido declínio está enraizado em uma mentalidade monolíngue. Embora o multilinguismo seja a experiência humana dominante (cerca de 60% da população mundial fala mais de um idioma), muitos países se enxergam como estados-nação monolíngues, onde uma única língua é considerada essencial para preservar a identidade nacional.

“A ideia não apenas de unidade nacional, mas também de unidade e uniformidade linguística, veio com a criação do estado-nação na era moderna. Precisamos combater a ideia de que o multilinguismo é um inimigo”, diz Luisa Maffi.

Imagem: Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos/Domínio Público

Acesse a matéria na fonte: https://racismoambiental.net.br/2025/02/17/as-mudancas-climaticas-estao-matando-palavras-e-linguas/

MEC se posiciona contra o ensino a distância em comunidades tradicionais

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MEC se posicionou contrário a lei 10.820, que alterava a educação escolar em comunidades tradicionais, incluindo indígenas, quilombolas e ribeirinhos no Pará

17/02/2025

MEC se posiciona contra o ensino a distância em comunidades tradicionais

O Ministério da Educação (MEC) se posicionou contrário a lei 10.820, que alterava a educação escolar em comunidades tradicionais, incluindo indígenas, quilombolas e ribeirinhos no Pará. A lei foi derrubada pela Assembleia Legislativa do estado na última quarta-feira (12).

A decisão dos deputados ocorre após acordo com o governo, depois de intensa pressão de indígenas e professores que se manifestavam em uma ocupação na Secretaria de Educação do Pará há um mês.

“Não há amparo legal para a substituição do ensino presencial por aulas telepresenciais ou mediadas por tecnologia nessas comunidades”, diz o Mec. O governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), afirma que a mudança na legislação estadual não previa o fim do ensino presencial.

Ocupação de indígenas e professores no prédio da Secretaria de Educação do Pará (Seduc). (Foto: Nay Jinknss/@nayjinknss)

O MEC explica que “a legislação nacional e internacional garante o direito à educação diferenciada para esses grupos e estabelece a necessidade de consulta e participação das comunidades indígenas na formulação de políticas educacionais”. O MEC disse, também, que o posicionamento já havia enviado o parecer ao Ministério Público Federal (MPF), ao ser questionado.

“A Constituição Federal define a educação como direito público subjetivo, assegurando que o ensino seja ministrado com igualdade de condições e garantia de padrão de qualidade. Já a Lei de Diretrizes e Bases da Educação estabelece que a educação escolar indígena deve ser intercultural e ministrada de forma presencial, com respeito às línguas maternas e aos processos próprios de aprendizagem”, afirma o MEC.

Territórios Etnoeducacionais

Em nota, o MEC cita, ainda, que um decreto de 2009 determina que “a organização da educação escolar indígena deve ocorrer dentro dos Territórios Etnoeducacionais, respeitando as especificidades culturais e territoriais das comunidades”, e outro de 2017 regulamenta “a oferta de educação a distância no Brasil não inclui a educação escolar indígena, quilombola e do campo”.

A nota reconhece que “a tentativa de substituir o ensino presencial pelo ensino remoto vai contra as diretrizes internacionais de educação para povos indígenas, como a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que exige que políticas educacionais voltadas a povos indígenas sejam desenvolvidas em consulta com as próprias comunidades”.

MEC

O MEC disse que “não apenas se posiciona contra o ensino a distância nessas comunidades, mas também reafirma compromisso com a educação presencial e diferenciada”.

O parecer do MEC cita que para o o sistema aplicado no Pará adotar os territórios etnoeducacionais é preciso que:

  • a oferta de ensino deve respeitar a diversidade cultural e linguística das comunidades indígenas e quilombolas.
  • os currículos devem ser elaborados em conjunto com as comunidades e considerar conhecimentos tradicionais.
  • a formação de professores indígenas deve ser fortalecida, garantindo que eles sejam os principais educadores das comunidades.
  • a infraestrutura das escolas deve ser adequada, incluindo a construção de escolas em terras indígenas e rurais, e não a substituição dessas estruturas por centros de mídia urbana.
  • as políticas educacionais devem ser formuladas com a participação ativa das comunidades, garantindo que necessidades e reivindicações sejam respeitadas.

 

Veja mais em https://iclnoticias.com.br/mec-ensino-a-distancia-comunidades-tradicionais/

Cinema deve olhar para violações a indígenas na ditadura

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LÉO RODRIGUES – REPÓRTER DA AGÊNCIA BRASIL

Publicado em 28/01/2025
Rio de Janeiro (RJ) 28/01/2025 - Cena do filme - Cinema deve olhar para violações a indígenas na ditadura.Foto: Leo Fontes/UNIVERSO PRODUÇÃO/ DIVULGAÇÃO

© LEO FONTES/UNIVERSO PRODUÇÃO/ DIVULGAÇÃO

Há uma semana, o cinema brasileiro vem comemorando a indicação do filmeAinda Estou Aqui a três categorias do Oscar. O longa-metragem alcançou o feito inédito ao levar para as telas a história da família de Rubens Paiva, deputado federal que teve seu mandato cassado pela ditadura militar e que foi posteriormente torturado e morto.

Inaugurando o calendário do audiovisual brasileiro, a Mostra de Cinema de Tiradentes que ocorre ao longo desta semana na cidade de Tiradentes, em Minas Gerais, se tornou mais um espaço para se debater e se celebrar a conquista. Mas a programação também levou para as telas um filme que, de alguma forma, resgata uma história que realça uma marca pouco conhecida do mesmo regime militar: a violação aos povos indígenas.

“São memórias que o cinema nos dá uma chance de revisitar e que podem assim ser jogadas na cara do povo brasileiro de uma certa forma”, avalia o etnólogo e cineasta Roberto Romero, um dos diretores do documentário Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá.

Exibido no domingo (26), ele aborda o assunto de uma forma lateral. O documentário narra o reencontro de Sueli Maxakali com seu pai Luiz Kaiowá. “Eu não o conheci. Eu tinha seis meses de idade e minha irmã tinha cinco anos quando ele partiu”, conta Sueli, em debate sobre o filme realizado nessa terça-feira (27). Ela também é uma das diretoras do documentário.

Luiz Kaiowá é um indígena Guarani-Kaiowá que chegou, através da Fundação Nacional do Índio (Funai), para trabalhar na terra Maxacali, em Minas Gerais. Ele operava um trator e lá se casou com a mãe de Sueli. No entanto, ele acabou voltando para a terra dos Guarani-Kaiowá em Mato Grosso do Sul.

Tudo aconteceu “no tempo dos soldados” como dizem os indígenas mais velhos que dão seus depoimentos no filme. Eles relatam os maus-tratos a que foram submetidos e o desmatamento, relegando a aldeia a uma porção de terra reduzida que sequer tinha água.

“Boa parte desse território foi dividido durante a ditadura militar. O capitão Manoel dos Santos Pinheiro, que era o sobrinho do governador de Minas Gerais, foi enviado para lá para ser o dono daquela região e fazer o que quisesse. Ele dividiu a terra entre os próprios funcionários do SPI [Serviço de Proteção aos Índios] e depois da Funai”, conta Roberto Romero, lembrando que o militar também atuou para impedir a demarcação.

O filme Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá foi dirigido a oito mãos: além de Sueli Maxacali e Roberto Romero, o quarteto foi composto ainda por Isael Maxakali e Luísa Lanna. Um ônibus levou os Maxacalis até a aldeia Guarani-Kaiowá. Dessa forma, o reencontro entre Sueli e seu pai foi também o momento de uma comunhão entre os dois povos.

Luísa defende que o cinema olhe com mais atenção para a memória que os povos indígenas guardam do período militar. “As atrocidades que aconteceram foram muitas e elas são muito pouco conhecidas pela população de uma forma geral. Mas é importante pontuar que é um buraco que não é só na cinematografia. É na história também,” enfatiza.

Rio de Janeiro (RJ) 28/01/2025 - Luísa Lanna - Cinema deve olhar para violações a indígenas na ditadura.Foto: Leo Fontes/UNIVERSO PRODUÇÃO/ DIVULGAÇÃO

A diretora Luísa Lanna defende o que cinema olhe para violações a indígenas na ditadura.  Foto: Leo Fontes/UNIVERSO PRODUÇÃO/ DIVULGAÇÃO

Ela vê a possibilidade de uma evolução paralela. “As coisas vão andando juntas. Na medida que a historiografia for reconhecendo, a cinematografia vai reconhecendo. Uma coisa puxa a outra. E assim vai tornando possível que essas histórias sejam contadas e passem a integrar o repertório histórico da população brasileira. Mas, com certeza, acho que ter mais editais dedicados principalmente a autorias indígenas e realizadores indígenas [isso] pode contribuir para resgatar essas memórias.”

Violações

As violações de direitos no regime militar já foram exploradas por diferentes filmes. O Que é Isso Companheiro?, Zuzu Angel, Marighella, O ano em que meus pais saíram de férias e Batismo de Sangue são alguns títulos de referência, ao qual agora se soma Ainda Estou Aqui. No entanto, nenhum deles aborda o que ocorreu com os indígenas.

Alguns livros vêm buscando tirar essas histórias do anonimato. Um dos mais recentes é Tom Vermelho do Verde, lançado em 2022 pelo jornalista e escritor Frei Betto. A obra narra um drama que tem como pano de fundo o massacre dos indígenas Waimiri Atroari durante a abertura de rodovias na Amazônia entre as décadas de 1960 e 1980. Frei Betto, que participou de ações da resistência contra a ditadura, disse em recente entrevista à Agência Brasil que atualmente compreende que os indígenas foram as maiores vítimas da violência empreendida pelos militares.

No cinema, Luísa destaca como um dos trabalhos de referência o filme GRIN – Guarda Rural Indígena, lançado em 2016 sob direção de Roney Freitas e Isael Maxakali. Já no filme Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá, ela observa que essa memória da ditadura aparece de um jeito diferente dos registros produzidos pela cultura ocidental do homem branco. De acordo com a diretora, não é uma memória estanque.

“Ela se constrói a partir das várias histórias que são repassadas pelas falas das pessoas que testemunharam esse momento, que viveram esse momento. Elas vão contando cada uma sua memória, mas também as suas várias percepções dessa história, do que aconteceu. Produzem uma memória que é viva e visível. E ela é acima de tudo criativa e inventiva, nesse sentido de que mais de uma história é sempre melhor do que uma história só”, salienta.

A diretora considera que há uma desconstrução da ideia de uma história voltada para a uma busca por uma verdade única e universal. Através dos depoimentos do filme, segundo ela, são apresentadas vivências e percepções individuais.

Resistência

Os Maxakalis formam um povo com cerca de três mil pessoas vivendo na região do Vale do Mucuri em Minas Gerais, dividida em aldeias que ocupam pequenos territórios. Na maioria delas, não tem rio e a paisagem de Mata Atlântica foi substituída por pasto. O filme documenta também a luta liderada por Sueli e Isael para retomada de um novo território para cerca de 100 famílias. Em uma das cenas, uma placa é pintada para demarcar o local.

Rio de Janeiro (RJ) 28/01/2025 - Debate com diretores- Cinema deve olhar para violações a indígenas na ditadura.Foto: Leo Fontes/UNIVERSO PRODUÇÃO/ DIVULGAÇÃO

Debate sobre o papel do cinema reuniu diretores e indígenas – Foto:  Leo Fontes/UNIVERSO PRODUÇÃO/ DIVULGAÇÃO

“Antes de eu viajar para conhecer meu pai, eu queria deixar meu povo mais à vontade. Pintamos a placa para saber que ali está o meu povo”, conta Sueli. Para Roberto Romero, ao colocar o filme como parte do processo de retomada, os Maxakalis o transformam em um instrumento de resistência. Ele destaca ainda a decisão de gravar o documentário todo em idioma indígena. São faladas as línguas dos dois povos retratados: Maxakalis e Guarani-Kaiowás.

“Os Maxacalis perderam tudo de concreto, digamos assim. Mas preservaram a memória das palavras. Eles lembram os nomes de todos os animais da Mata Atlântica mesmo não convivendo com eles há décadas. E essas palavras são faladas como histórias, como narrativas. E também são cantadas. E a gente tenta mostrar isso no filme: que os cantos são parte vida social, da vida cotidiana. Para quase tudo se canta”, diz o diretor.

Para Isael Maxakali, preservar o idioma é uma das principais motivações para fazer filme. “É para não apagar o nosso histórico. Eu gosto de fazer filme também para que o Brasil possa conhecer nossa linguagem”, afirma.


Saiba mais puxando a rede IPOL:
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. Visite a página do filme… https://meupaikaiowa.com.br

. Aqui uma resenha do filme …Eis o mote inicial: Sueli Maxakali quer retomar o contato com o pai. Ele, a quem chamam Luiz, não é parte dos Maxakali; antes, é um Kaiowá andarilho, oriundo das bandas do Mato Grosso. De algum modo, ele foi levado para Teófilo Otoni, onde conheceu os Maxakali e a mãe de Sueli, antes de retornar para casa, anos depois.

Por que ele foi levado para tão longe? Porque estávamos na ditadura militar, e porque Luiz não tinha documentos, e porque os milicos aprisionavam os indígenas que, assim como ele, estavam soltos no mundo, forçando-os a trabalhar.

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. Matéria sobre o filme quando exibido no Festival de Brasilia: https://vertentesdocinema.com/yog-atak-meu-pai-kaiowa/
. Aqui 
. O livro citado acima, de Frei Betto, sobre o drama dos índios waimiri-atroari nos anos 1970 está aqui https://www.freibetto.org/livro/tom-vermelho-do-verde/?srsltid=AfmBOoprqk_HEVZBmyPNj9iOfXYuAo2TudP2-F2Zqg0t6PmQKktOjasQ
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. aqui matéria publicada em O Rascunho, um jornalde literatura no Brasil , editado em Curitiba e distribuído para todo o Brasil e exterior, é nacionalmente reconhecido
pela qualidade de seu conteúdo. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.
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.  matéria publicada em Continente! ,  revista contemporânea de jornalismo cultural com periodicidade mensal, produzida em Pernambuco desde 2000
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. Entrevista com Bruno Altmann gravada em 2022 sobre a publicação e a questão dos Waimiri-atroari

DOCUMENTÁRIO SOBRE DOUTRINAÇÃO DE NATIVOS NOS EUA CHEGA AO STREAMING

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Documentário cotado ao Oscar investiga a descoberta de possíveis sepulturas não identificadas na Escola Residencial Indígena St. Joseph, no Canadá.

Sugarcane | National Geographic Documentary Films

Felipe Sales Gomes, sob supervisão de Éric Moreira publicado em Aventuras na História, 14/01/2025

Registro de comunidade apache - Domínio Público via Wikimedia Commons

Registro de comunidade apache – Domínio Público via Wikimedia Commons

O documentário “Sugarcane”, que explora o legado devastador das escolas residenciais indígenas na América do Norte, está disponível nas plataformas Disney+ e Hulu.

Dirigido por Julian Brave NoiseCat e Emily Kassie, o filme já conquistou mais de uma dúzia de prêmios em festivais, incluindo o Sundance, onde levou o prêmio deMelhor Direção para Documentário dos EUA.

Recentemente indicado ao Gotham Awards na categoria de Melhor Documentário, ‘Sugarcane’ também recebeu oito indicações no Critics Choice Documentary Awards e figura nas listas de melhores documentários do ano do DOC NYC e do IDA.

O documentário investiga a descoberta de possíveis sepulturas não identificadas na Escola Residencial Indígena St. Joseph, localizada na Colúmbia Britânica, Canadá. Essa instituição, administrada pela Igreja Católica, foi palco de abusos físicos, psicológicos e sexuais contra crianças indígenas.

‘Sugarcane’ revela evidências de crimes horrendos, incluindo casos em que padres engravidaram alunas e, após darem à luz, os bebês foram incinerados.

Além de abordar o caso canadense, o filme também destaca o sistema de internatos indígenas nos Estados Unidos, maior do que o do Canadá, onde práticas semelhantes de abuso e assimilação cultural ocorreram.

Essas escolas, em ambos os países, buscavam apagar as línguas e culturas indígenas, forçando as crianças a adotar normas e costumes da sociedade branca.

Ecos do passado

Joe Biden após discurso à comunidade indígena do Rio Gila, nos arredores de Phoenix, no estado do Arizona

 

 

Na última sexta-feira, o presidente Joe Biden visitou a Reserva Indígena Gila, no Arizona, para reconhecer o impacto do sistema de escolas residenciais. Durante o discurso, ele pediu desculpas formalmente:

“Peço desculpas como presidente dos Estados Unidos da América pelo que fizemos. A política de internatos indígenas é uma marca de vergonha na história americana”.

Os cineastas Kassie e NoiseCat estiveram presentes na ocasião e destacaram a importância do reconhecimento presidencial: “O pedido de desculpas é um marco para as famílias e sobreviventes das escolas residenciais. Estamos honrados que ‘Sugarcane’ contribua para essa conversa tão necessária”.

O documentário foi exibido em cinemas nos EUA e Canadá durante o verão e também levado a comunidades indígenas por meio do “Rez Tour”. Essa iniciativa oferece exibições acessíveis e seguras para povos afetados diretamente pelas escolas residenciais, além de conectar espectadores a recursos de saúde locais.

‘Sugarcane’ também se conecta ao recente relatório do Departamento do Interior dos EUA, que revelou a morte de quase 1.000 crianças  nas mais de 400 escolas federais indígenas do país — número três vezes maior que o registrado no Canadá.

Produzido pela Kassie Films e Hedgehog Films, em parceria com Impact Partners e Fit Via Vi, o documentário conta com a atriz Lily Gladstone como produtora executiva, conforme repercute o Deadline.

https://aventurasnahistoria.com.br/noticias/historia-hoje/cotado-ao-oscar-documentario-sobre-doutrinacao-indigena-nos-eua-chega-ao-streaming.phtml

Assista o trailer:

Mais sobre o documentário: https://films.nationalgeographic.com/sugarcane

 


Siga a leitura neste artigo de agosto de 2024

EUA RECONHECEM MORTES DE CRIANÇAS INDÍGENAS EM INTERNATOS DO GOVERNO

Por décadas, o governo americano se esforçou para isolar crianças nativas americanas de suas famílias em internatos administrados pelo Estado

Maria Paula Azevedo, sob supervisão de Thiago LincolinsApublicado em 02/08/2024

Turma da escola de Genoa Indian Industrial School em Genoa, Nebraska, em 1910 - Divulgação/Arquivos Nacionais dos Estados Unidos

Na terça-feira, 30, o Departamento do Interior dos Estados Unidos informou no relatório “Federal Indian Boarding Schools Initiative” que ao menos 973 crianças indígenas morreram entre 1871 e 1969 em internatos administrados ou financiados pelo Governo dos EUA.

O documento aponta a existência de pelo menos 74 locais de sepultamento, tanto demarcados quanto não demarcados, em 65 escolas.

Além disso, estima-se que Washington tenha investido mais de US$ 23,3 bilhões no sistema federal,  além de “outras instituições semelhantes e políticas de assimilação associadas”.

“O Governo Federal – facilitado pelo Departamento que eu lidero – tomou medidas deliberadas e estratégicas por meio de políticas federais de internatos indígenas para isolar as crianças de suas famílias, negar-lhes sua identidade e roubar-lhes os idiomas, as culturas e as conexões fundamentais para os povos indígenas. essas políticas causaram traumas duradouros nas comunidades indígenas que o governo Biden-Harris está trabalhando incansavelmente para reparar”, admitiu Deb Haaland, Secretária do Interior dos EUA.

Reconhecimento

Bryan Newland, subsecretário de Assuntos Indígenas, afirmou que, pela primeira vez na história do país, Washington está sendo responsabilizada por seu envolvimento na administração dos internatos, conforme repercutido pela RT Brasil.

“Devemos usar todos os nossos recursos para fortalecer o que eles não puderam destruir. É fundamental que esse trabalho perdure e que os Governos Federal, Estadual e Tribal se baseiem no importante trabalho realizado no âmbito da Iniciativa [Federal Indian Boarding Schools].”, afirmou Newland.

https://aventurasnahistoria.com.br/noticias/historia-hoje/eua-reconhece-morte-de-criancas-indigenas-em-internados-do-governo.phtml

Sobre a realização do documentário, saiba mais nesta entrevista do Sundance Festival

Julian Brave NoiseCat e Emily Kassie, os cineastas por trás de “Sugarcane”

Por Lucy Spicer

Em 2021, notícias sobre a presença de túmulos de crianças suspeitas na propriedade da escola residencial indiana canadense fizeram manchetes internacionais e chamaram a atenção da documentarista Emily Kassie. “Senti um puxão no meu intestino”, lembra Kassie. “Eu relatei atrocidades em massa em todo o mundo, mas nunca virei minha lente para o meu próprio país.” Kassie começou a procurar nas Primeiras Nações que estavam no processo de obter acesso a outros possíveis locais de sepultura. “Entrei em contato com meu velho amigo e colega Julian (nos sentamos um ao lado do outro em nossos primeiros trabalhos de reportagem). O que eu não sabia é a pesquisa que eu consegui acesso para seguir em St. A Missão de Joseph foi a escola onde a família de Julian frequentou e onde seu pai nasceu.”

A colaboração de Kassie com Julian Brave NoiseCat traria Sugarcane, um documentário que conta com o trauma intergeracional causado pelo sistema escolar residencial, um sistema repleto de abusos que separava as crianças indígenas de suas famílias e culturas. O filme estreou nos EUA. Competição de Documentários no Festival de Cinema de Sundance de 2024, onde Kassie e NoiseCat venceriam os EUA. Prêmio de Direção de Documentário. (siga o link e a leitura)

https://www.sundance.org/blogs/give-me-the-backstory-get-to-know-julian-brave-noisecat-and-emily-kassie-the-filmmakers-behind-sugarcane/

 

. Sobre a premiação em Sundance:

Julian Brave NoiseCat recebe o Prêmio de Direção de Sundance pelo Documentário “Sugarcane”

O ex-membro do Centro de Justiça Racial Julian Brave NoiseCat, juntamente com a codiretora Emily Kassie, recebeu o Prêmio de Direção dos Estados Unidos pelo Documentário Sugarcane no Festival de Cinema de Sundance de 2024. Sugarcane segue uma investigação lançada em 2021 sobre “rumores de abuso físico e sexual há muito circulantes e há muito negados” em St. Missão de Joseph perto de Williams Lake, Colúmbia Britânica, um internato indígena de propriedade católica que funcionou até 1981.

“64 anos atrás, meu pai nasceu em uma escola indiana e foi deixado no incinerador da escola”, disse NoiseCat ao aceitar o prêmio. “Mas ele sobreviveu e aqui estamos.” (siga o link e a leitura)

https://racialjustice.umich.edu/news/2024/julian-brave-noisecat-receives-sundance-directing-award-sugarcane-documentary

 

PGTA (PLANO DE GESTÃO TERRITORIAL E AMBIENTAL) e Protocolo da TI Kayapó: o caminho para cuidar da terra, da floresta, dos rios e das pessoas

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Por Silia Moan – Jornalista do ISA

celebração kayapó no memorial dos povos indígenas

Ireô Kayapó puxa o ‘metoro’ de celebração no lançamento do PGTA e Protocolo de Consulta da TI Kayapó, no Memorial dos Povos Indígenas 📷 Kubekàkre Kayapó/Coletivo Beture 2024

Representantes das sete associações Mẽbêngôkre-Kayapó da Terra Indígena Kayapó (Pará) se reuniram no Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília, no último dia 4 de dezembro, para lançar oficialmente o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) e o Protocolo de Consulta da TI Kayapó. Estes instrumentos, construídos de forma coletiva, são considerados marcos para a proteção do território e do modo de vida do povo Kayapó.

Baixe o documento completo

lideranças mostram publicação

O evento de lançamento reuniu lideranças indígenas, autoridades e representantes de organizações parceiras. Em uma cerimônia marcada pela emoção, os presidentes das sete associações Mẽbêngôkre-Kayapó – Associação Floresta Protegida (AFP), Associação Angrôkrere, Associação Pôre, Associação Tuto Pombo, Associação Kranhmeiti, Associação Piôkrere e Associação Pykôre – receberam das mãos das lideranças mais velhas as publicações do PGTA e do Protocolo de Consulta.

 

O que são PGTAs?

De caráter dinâmico, os PGTAs têm como pano de fundo a expressão do protagonismo, autonomia e autodeterminação dos povos indígenas no seu, até agora, exitoso processo de proteção ambiental e controle territorial. Por essa razão, são tomados como estratégicos para a reflexão e planejamento do uso sustentável dos territórios indígenas, de forma a assegurar a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução física e cultural das atuais e futuras gerações e, de outro lado, tendo o não menos importante papel de fornecer subsídios para orientação de políticas públicas ambientalistas e indigenistas, ao demonstrar demanda, por meio de informações válidas e consistentes, de ações estruturantes nas Terras Indígenas a partir de uma correlação entre a política pública e a política indígena. Clique aqui para saber mais.

Para os kuben (termo para “não indígena” na língua Mẽbêngôkre-Kayapó), o protocolo de consulta estabelece as diretrizes e os procedimentos que devem ser seguidos quando decisões ou ações externas possam impactar diretamente direitos, territórios ou modos de vida, de povos indígenas e comunidades tradicionais. Já para os Kayapó é, além disso, um instrumento de união e futuro:

“Esses documentos são muito importantes não só para nós, mas para os nossos filhos e nossos netos. Os kuben, senadores e deputados, precisam respeitar esse documento. Hoje é um dia histórico e eu estou muito feliz por fazer parte disso,” declarou Kenkrô Kayapó, presidente da Associação Kranhmeiti.

Durante o processo de elaboração do PGTA, os Mẽbêngôkre-Kayapó traduziram o termo “Plano de Gestão Territorial e Ambiental” como Pyka mẽ bà mẽ ngô mẽ mẽ’ĩ mẽ ‘ã no am kadjy amĩ pry karõ djiri, que significa “o caminho para cuidar da terra, da floresta, dos rios e das pessoas”. Essa tradução reflete a visão dos Kayapó sobre a gestão de seu território, mostrando que, para eles, o significado da  promoção da gestão territorial e ambiental sustentável em Terras Indígenas transcende os limites de uma política pública ou de um plano técnico. Para os indígenas, cuidar da terra, da floresta, dos rios e das pessoas é um ato que perpassa o passado, presente e futuro. É a garantia de que os ensinamentos dos seus mais velhos continuam vivos, protegendo não apenas o território físico, mas a essência cultural e espiritual que sustenta o modo de ser Kayapó.

A gestão territorial, para os Mẽbêngôkre-Kayapó, é um compromisso com a vida. Não se trata apenas de proteger a biodiversidade ou evitar o desmatamento — embora isso também seja crucial —, mas de proteger a relação entre a floresta e os Mẽbêngôkre-Kayapó. Cada árvore, cada rio, cada animal carrega um significado profundo, conectado à história, aos mitos e às práticas cotidianas que nutrem as vidas das 70 aldeias da TI Kayapó.

Ao lançar o PGTA e o Protocolo de Consulta, os Kayapó reafirmaram sua autonomia e o direito de decidir sobre os rumos de suas terras, enfrentando as ameaças externas com organização e união. Esses instrumentos representam o fortalecimento de um caminho coletivo, onde o futuro do território é construído a partir de suas próprias perspectivas e prioridades, promovendo não apenas a proteção territorial, mas também de suas vidas.

PGTA e Protocolo de Consulta: União em Defesa do Território

A atualização do PGTA e a elaboração do Protocolo de Consulta da TI Kayapó tiveram início em 2021, articulado pela Associação Floresta Protegida.  Durante o processo de construção, as associações Angrôkrere, Pôre, Tuto Pombo, Kranhmeiti, Piôkrere e Pykôre se uniram à AFP, formando uma aliança histórica em defesa da TI Kayapó.

As sete associações da Terra Indígena Kayapó se reuniram na aldeia Gorotire para firmar um pacto pela proteção dos seus territórios

As sete associações da Terra Indígena Kayapó se reuniram na Aldeia Gorotire para firmar um pacto pela proteção dos seus territórios 📷 Beptemexti Kayapó/Coletivo Beture 2024

Durante a atualização do PGTA, as associações Mẽbêngôkre-Kayapó decidiram unir o Protocolo de Consulta ao PGTA. A decisão reflete a preocupação dos Kayapó com os impactos das pressões e ameaças sobre os seus territórios e comunidades. Os instrumentos se complementam: se por um lado o PGTA apresenta o planejamento para gestão ambiental e territorial dos Mẽbêngôkre-Kayapó, o Protocolo estabelece regras claras para consultas públicas que afetem o território, garantindo que o direito à consulta prévia, livre e informada seja respeitado.

“O PGTA e o Protocolo de Consulta são caminhos para o fortalecimento da nossa organização e do nosso modo de viver. O Protocolo de Consulta é muito importante para nós, pois nosso território está cercado de kuben, que querem expandir o plantio de soja. Quando houver qualquer autorização do Estado sem o nosso consentimento, teremos este instrumento fundamental para apresentar. Devemos fortalecer a nossa tradição, e este documento se torna um meio de reforçar a nossa própria organização social” destacou Kenaka Pombo, presidente da Associação Pôre Kayapó.

Setenta aldeias e sete associações participaram da construção do PGTA e do Protocolo de Consulta, fortalecendo a união entre diferentes regiões da Terra Indígena Kayapó. Para Adriano Jerozolimski, Diretor do Projeto Kayapó no Brasil da International Conservation Fund of Canada (ICFC), o processo foi tão significativo quanto o resultado obtido.

“Exigiu muita articulação política e um esforço de muitas lideranças para reduzir distâncias, estabelecer diálogos e quebrar uma polarização histórica na Terra Indígena Kayapó. Que essa união, propiciada pela construção dessas ferramentas, continue sendo fortalecida, e que os Kayapó possam contar com cada vez mais parceiros na sua luta,” afirmou.

Siga a leitura na fonte: https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/pgta-e-protocolo-da-ti-kayapo-o-caminho-para-cuidar-da-terra-da-floresta

 

Mais da metade da população indígena no Brasil vive em áreas urbanas, aponta Censo 2022

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Pâmela Dias

 — Rio de Janeiro

Mais da metade da população indígena no Brasil vive em áreas urbanas — Foto: Divulgação/Michael Fernandes

Mais da metade da população indígena no Brasil reside em áreas urbanas, de acordo com o Censo. O número saltou de 36,2% em 2010 para 54% em 2022. Por outro lado, o quantitativo dos que moram na zona rural diminuiu de 63,8% para 46% no mesmo período. Os dados foram divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nesta quinta-feira (19).

De 2010 para 2022, a população indígena em áreas urbanas teve uma variação de 181,6%, o que representa um aumento de 589.912 pessoas. Apesar de não ser mais predominante a presença desse grupo em contexto rural, o número de indígenas nessa área também cresceu 36,3% em relação a 2010 — uma crescente de 208.007 pessoas. (Veja infográfico abaixo)

O Sudeste tem o maior percentual de população indígena em situação urbana (77,25%), enquanto o Centro-Oeste tem o menor: apenas 37,95% dessa parcela populacional vivem no contexto urbano. Já o Norte apresenta cerca da metade da sua população indígena nesta condição e outra metade em situação rural.

De 2010 para 2022, a população indígena em áreas urbanas teve uma variação de 181,6%, o que representa um aumento de 589.912 pessoas. Apesar de não ser mais predominante a presença desse grupo em contexto rural, o número de indígenas nessa área também cresceu 36,3% em relação a 2010 — uma crescente de 208.007 pessoas. (Veja infográfico abaixo)

O Sudeste tem o maior percentual de população indígena em situação urbana (77,25%), enquanto o Centro-Oeste tem o menor: apenas 37,95% dessa parcela populacional vivem no contexto urbano. Já o Norte apresenta cerca da metade da sua população indígena nesta condição e outra metade em situação rural.

Indígenas residentes em áreas urbanas e rurais

De acordo com o IBGE, os dados vão ajudar a proporcionar uma análise detalhada sobre a condição da população indígena no país, mas alguns dos fatores que podem explicar o crescimento desse grupo em áreas urbanas é a migração para fins de educação, trabalho e acesso a saúde.

A idade mediana da população indígena em situação urbana fora de terras indígenas é de 32 anos. Isso significa dizer que metade dos habitantes tem essa idade. Já nas mesmas condições da zona rural, a idade mediana cai para apenas 18 anos.

Educação em áreas rurais e urbanas

A taxa de alfabetização entre os indígenas cresceu em todas as faixas etárias e grandes regiões do país. Apesar de ainda ser o grupo populacional com o maior índice de analfabetismo no Brasil, dados do Censo 2022 mostram que 85% da população sabem ler e escrever.

De 2010 para 2022, a taxa de analfabetismo das pessoas indígenas caiu de 23,4% para 15,1%. Ao fazer uma análise por cor ou raça, no entanto, o índice de pessoas autodeclaradas brancas segue mais de três vezes menor do que a dos indígenas.

— Parte dessa disparidade entre os indígenas se deve às diferentes línguas faladas pelos povos e ao fato de muitos não terem acesso à alfabetização da língua portuguesa. Mas também tem a ver com o fracasso de políticas específicas de ensino, que não levam em consideração as particularidades de cada povo — avalia a especialista em educação Claudia Costin, ex-diretora global de educação do Banco Mundial.

Ao analisar a taxa de alfabetização das pessoas indígenas, por situação urbana e rural do seu domicílio, os que vivem em áreas urbanizadas avançaram na educação, mas pouco: passaram de 87,7% em 2010 para 89,1% em 2022.

Já no contexto rural, o percentual dos povos tradicionais que sabem ler e escrever subiu de 67,8% para 78,8% no mesmo período.

Os dados do IBGE apontam ainda que houve uma queda na taxa de analfabetismo tanto no contexto urbano quanto rural. O percentual dos que não sabiam ler e escrever um bilhete simples reduziu de 32,16% em 2010 para 21,15% em 2022.

Em áreas urbanas, no mesmo período a taxa de analfabetismo passou de 12,3% para 10,8%.

O IBGE considera alfabetizadas as pessoas que sabem ler e escrever pelo menos um bilhete simples ou uma lista de compras, no idioma que conhece, independentemente de estar ou não frequentando escola ou de ter concluído períodos letivos. Também é levado em consideração indivíduos que utilizam o Sistema Braille e que tinham habilidade para a leitura ou escrita, mas se tornaram fisicamente ou mentalmente incapacitados.

Saneamento básico

O Censo apontou ainda que cerca de 70% dos indígenas conviviam com alguma forma de precariedade em relação ao abastecimento de água, à destinação do esgoto ou à coleta de lixo. Esse percentual é 2,5 vezes maior que o índice registrado entre o total de residentes do país, que apresentou 27,3% da população nestas condições.

Ao analisar a situação dentro das terras indígenas, esse número é ainda mais alarmante e alcança 96% dos moradores, o que equivale a quase 600 mil pessoas.

Nas localidades rurais fora de terras indígenas, 94,4% das pessoas vivem com acesso precário ao saneamento básico. No mesmo contexto da área urbana esse percentual cai para 44,3%.

Os dados apontam também que, enquanto a população brasileira total residente em domicílios particulares permanentes destina majoritariamente o esgoto para rede geral ou fossa séptica (75,74%), entre os indígenas a principal destinação é para fossa rudimentar, buraco, vala, rio, córrego ou mar, com 64,53% dos moradores (1.086.662 pessoas) usando esses meios.

Esgotamento sanitário da população indígena

Água encanada

Enquanto 97,28% da população urbana do país morava em domicílios com água encanada até dentro de casa proveniente da distribuição, poço, fonte, nascente ou mina, entre os indígenas que vivem nesse contexto esse percentual era de 86,67%.

Em situação urbana, o acesso à água em condições de maior precariedade é quase cinco vezes maior entre a população indígena (13,33%) do que entre a população residente no Brasil (2,72%).

Considerando inclusive apenas os moradores indígenas residindo fora de terras indígenas em situação urbana, o nível de precariedade no acesso à água é 3,7 vezes superior (10,08%) ao da população residente em situação urbana (2,7%).

Leia a matéria na fonte para outras leituras nos gráficos:

https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/12/19/mais-da-metade-da-populacao-indigena-no-brasil-vive-em-areas-urbanas-aponta-censo-2022.ghtml

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