‘Brasileiro não percebe a questão indígena como um problema seu’, diz analista ante marco temporal
Na quinta-feira (26), o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar se demarcações de terras indígenas devem seguir o chamado “marco temporal”. Por esse critério, indígenas só podem reivindicar a demarcação de terras que já eram ocupadas por eles antes da data de promulgação da Constituição de 1988, segundo o G1.
A decisão pode definir o rumo de mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas que estão em aberto no país. Nesta semana, índios de todo o Brasil acamparam na Esplanada dos Ministérios em protesto contra o marco.
“Na realidade é um retrocesso. […] Infelizmente o movimento indígena tem pouquíssimos representantes no Congresso, e isso mostra uma fragilidade e desvantagens para os povos indígenas. Por outro lado, a sociedade brasileira também se mostra apática em relação a esta pauta danosa aos ambientes e aos povos indígenas”, destacou Nelcioney José de Souza Araújo, professor de geografia da Universidade Federal do Amazonas citado pelo Correio Brasiliense.
A Sputnik Brasil entrevistou Ricardo Cid Fernandes, professor de antropologia do Departamento de Antropologia e programa de pós-graduação de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Paraná para entender mais sobre o assunto.
Fernandes diz que a sociedade brasileira se mostra apática a questões indígenas porque há pouco conhecimento e interesse sobre a questão, além disso, o brasileiro concebe, até hoje, uma visão do indígena associada ao passado e a lugares remotos e distantes.
“O brasileiro não percebe a questão indígena como um problema seu”, disse o professor.
O mesmo ainda ressalta que o assunto está mais em alta neste momento porque vem sendo associado ao discurso ambientalista, que também está em evidência no mundo todo.
Demarcação de terras indígenas
Fernandes elucida que a demarcação de terras para povos indígenas é de extrema importância uma vez que se trata “de um direito fundamental, é como um direito à vida”.
“O direito ao território é a compreensão da terra como local da história dos antepassados, local da vida possível do presente, local onde os simbolismos estão associados, local dos poderes da natureza. A garantia do direito territorial é fundamental, a vida só é possível considerando o direito ao território.”
O professor também salienta que as terras indígenas são as terras ambientalmente mais protegidas do Brasil, “a floresta está em pé onde os índios estão”.
“No Sul do país, onde houve retomada de terras nos últimos 30, 40 anos, as terras recuperaram sua qualidade ambiental e contrastam fortemente com o território de exploração da agricultura que são desmatados. Os indígenas prestam serviço ambiental de extrema importância que é o de manter a floresta em pé.”
Marco temporal
Conforme citado anteriormente, na semana passada, o Supremo começou a julgar se demarcações de terras indígenas devem seguir o chamado “marco temporal”, critério pelo qual índios só podem reivindicar a demarcação de terras que já eram ocupadas por eles antes da data de promulgação da Constituição de 1988.
Segundo Fernandes, o cerne da discussão acontece porque há dois tipos de interpretações diante da demarcação de terras. De “um lado os índios afirmam e a história comprova” que a presença indígena nas terras tradicionalmente ocupadas foi impossibilitada por vários processos oriundos da colonização.
“Ocupar tradicionalmente uma terra para os indígenas não significa estar permanentemente nela, significa reconhecer esse território, lutar por ele e demonstrar os processos de violação que acontecem em seus direitos territoriais.”
Já a outra interpretação, entende que para uma terra ser considerada tradicionalmente ocupada é preciso estar constantemente presente na mesma.
“Em resumo, a discussão sobre o marco temporal coloca em lados opostos os termos da Constituição, que definem que os indígenas têm direito às terras tradicionalmente ocupadas, e de outro lado, os instrumentos de aplicação dessa lei que são o decreto nº 1775 e a portaria nº 14, ambos de 1996, que são legislações que organizam e normatizam o processo de demarcação de terras. Por um lado, a Constituição garante terras tradicionalmente ocupadas, por outro, os estudos são baseados na caracterização da ocupação permanente das terras”, explicou o professor.
Diante desse cenário, Fernandes afirma que há “um desencontro entre Constituição e legislação infraconstitucional” e que esse desencontro é contornado através de estudos que “acabam demonstrando que a ocupação permanente pelos indígenas foi muitas vezes inviabilizada”.
“Terra tradicionalmente ocupada não significa terra permanentemente ocupada, e essa é a origem do problema”, complementou.
O professor clarifica que quem defende o marco temporal considera que não deve mais acontecer demarcações de terras indígenas no Brasil, ou seja, apenas as terras ocupadas pelos indígenas até 1988 teriam seu reconhecimento como pertencentes aos mesmos.
“Quem defende o marco temporal hoje exclui de todo um processo de demarcação a maioria dos indígenas do Brasil. […] Se pensarmos nos últimos 100 anos, a ocupação de terras no Sul, Sudeste, Nordeste, Centro-Oeste foi muito intensa, e o relato cotidiano de muitos indígenas envolve a reivindicação de terras que foram expropriadas. […] Há muitos casos documentados de grupos que foram violentados e exterminados por todo Brasil, e esses processos não ocorreram apenas após a Constituição, ocorreram ao longo de toda história da colonização.”
Adicionalmente, Fernandes diz que uma das formas de reparar a violência contra os indígenas é reconhecer seus direitos territoriais, reconhecimento esse que o marco temporal não legitima.
O especialista também explica que o caso foi parar no STF porque é um problema do Estado, a partir do momento que “as procuradorias estaduais entram com uma ação contra a União. É o Estado contra a Fundação Nacional do Índio [Funai], o Estado contra o Ministério da Justiça que demarcou a terra, e por isso está no STF”.
“Não podemos esquecer que a o território é tradicionalmente ocupado por indígenas, mas a terra é um bem da União, quem dispõe da terra em última estância é a União, os indígenas têm usufruto das terras, eles não são proprietários. Toda terra indígena está escrita no Departamento de Patrimônio da União”, esclareceu o professor.
Posição do governo federal
O professor afirma que o governo Bolsonaro é totalmente favorável ao marco temporal porque “considera que já há muitas terras demarcadas, e que o importante é o Brasil ter segurança jurídica, como eles dizem, terras que não serão reivindicadas por indígenas para que possa se desenvolver o agronegócio e a exploração de minas”.
“A posição é favorável ao marco temporal e ignora a luta e os massacres sofridos ao longo do século XX pelos indígenas. […] É um governo que não se posiciona perante a chave da reparação histórica, mas sim perante uma chave desenvolvimentista.”
Fernandes acredita que a chance da lei ser aprovada é grande, mas também enfatiza que a chance dos indígenas seguirem lutando é maior ainda.
“Se de certa forma eles sofreram calados e pressionados no século XX, no século XXI eles já demonstraram que encontraram parceiros e aliados, sabem operar com as mídias, sabem operar dentro do sistema legal e pressionar politicamente. Esse será um século mais indígena do que o XX, com certeza.”
Esse fato pode ser evidenciado após cerca de mil lideranças indígenas decidirem no sábado (28) continuarem acampadas em Brasília até o dia 2 de setembro, para esperar o julgamento do marco temporal pelo STF, segundo o G1.
O acampamento, chamado de “Luta pela Vida”, está montado desde domingo (22) e mostra que o índio de hoje não fica mais calado, e manifesta sua luta através da resistência.
Violência contra indígenas
Fernandes explica que a violência é um problema da colonização, pois esse processo ocorre na base da truculência e agressividade, e quando se trata de violência contra indígenas, mostra que “a colonização não é um fenômeno do passado, ela é um modo de ser que se reproduz constantemente”.
“A violência em terras indígenas precisa ser o assunto, ela não pode ser tratada como excepcionalidade ou como uma circunstância especifica, não, ela é um assunto do cotidiano das relações entre índios e não índios, entre os próprios indígenas, entre instituições e as relações exploratórias dos madeireiros”, elucidou.
O professor também enfatiza que a violência envolvendo índios “informa mais sobre a nossa sociedade do que sobre a sociedade indígena, informa mais sobre o lugar que nós reservamos a essa população na nossa sociedade” e que a dinâmica acontece de forma coletiva, por parte dos indígenas, mas de forma individual por parte de um agente de violência.
“O indígena sempre aparece como um direito coletivo, uma comunidade, do outro lado é sempre um agente de violência, um mandante, um fazendeiro com um projeto individual.”
Fernandes também chama atenção para as prisões de índios, uma vez que os dados sobre esses encarceramentos são de difícil acesso. Como exemplo, o professor cita que os dados do Departamento Penitenciário do estado do Paraná informam que não há indígenas presos, quando se sabe que existe, pois ao entrarem no sistema prisional eles perdem a sua condição indígena e viram “presos comuns”.
“Há presos no estado do Paraná que nem falam português, mas não são considerados índios. O problema da violência é um problema brasileiro que os indígenas acabaram fazendo parte, infelizmente.”
O que fazer para indígenas viverem em paz?
O especialista aponta que o direito à terra é fundamental, e estando com esse direito garantido, a “tranquilidade se instala”.
Fernandes também evidencia que esse direito à terra não pode ser “ter só um espaço” e vive-se ali de qualquer jeito. Essa terra tem que ser um território com tamanho apropriado para que o mesmo conceba e autorize um projeto indígena.
O professor afirma que ao olharmos para o mapa indígena do Brasil, 98% das terras estão concentradas na Amazônia, o restante, que somam apenas 2%, estão divididas pelo país, ou seja, esses 2% mostram como são pequenos esses territórios.
“Há terras com 200 hectares onde vivem mil pessoas, há terras como Dourados [MS] onde vivem 14 mil indígenas, terras superlotadas, além de terras que foram extintas e os índios vivem na margem de estradas em acampamentos em condições absolutamente marginais. Não há paz de espírito nessa condição.”
Fernandes complementa que o verdadeiro direito à terra, é direito a uma terra que tenha uma qualidade ambiental, que tenha referências com o sagrado, com os antepassados.
“Não adianta uma terra pequena com índios amontoados sem condição de produzir, sem condição de se reproduzir socioculturalmente, essa terra vai ser uma terra fonte de conflito. O equilíbrio demográfico, sustentável e fundiário é fundamental para que a paz de espírito se recoloque na questão indígena.”
Nada justifica o olho gordo em nossas terras
“Minha língua materna é a ze’egete, que significa “a fala boa”. Sou formada em letras, também conheço muito bem o português. “Narrativa”, palavra favorita dos seguidores do presidente Jair Bolsonaro, é definida no dicionário como “texto em prosa cujos personagens figuram situações fictícias, imaginárias”. E ela define a fala má dita na semana passada por Bolsonaro sobre o julgamento da tese do marco temporal no Supremo Tribunal Federal: “Se mudar o entendimento passado, de imediato nós vamos ter que demarcar, por força judicial, uma outra área equivalente à região Sudeste como terra indígena. Acabou o agronegócio”. Como é possível caber tanta ficção em apenas duas frases?”
Confira o Artigo de opinião completo de Sonia Guajajara na Folha
Acampamento Luta Pela Vida – Brasília
Com seis mil pessoas em Brasília, povos indígenas realizam maior mobilização pós Constituinte
Lideranças indígenas de 170 povos estão mobilizadas no acampamento Luta pela Vida, pela garantia de seus direitos originários e contra o marco temporal
Vindos de todas as regiões do país, cerca de 6 mil indígenas, de mais de 170 povos, estão mobilizados na capital federal, pela garantia de seus direitos originários e contra o marco temporal, nesta que tem sido a maior mobilização indígena pós-constituinte.
Mobilizados no acampamento “Luta pela Vida”, previsto para durar 7 dias, de 22 a 28 de agosto deste ano, a pauta principal está relacionada com o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), que é considerado pelo movimento indígena o processo mais importante do século sobre a vida dos povos indígenas, previsto para iniciar nesta quarta-feira, (25). Além disso, os povos também denunciam os projetos anti-indígenas em trâmite no Congresso Nacional e o agravamento das violências contra os povos originários dentro e fora dos territórios tradicionais.
Os ministros do STF irão analisar a ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang. Com status de “repercussão geral”, a decisão tomada neste julgamento servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça, também como referência a todos os processos, procedimentos administrativos e projetos legislativos no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios.
“A decisão tomada neste julgamento servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça, também como referência a todos os processos, procedimentos administrativos e projetos legislativos”
“Estamos realizando a maior mobilização de nossas vidas, em Brasília, porque é o nosso futuro e de toda humanidade que está em jogo. Falar de demarcação de terras indígenas, no Brasil, é falar da garantia do futuro do planeta com as soluções para a crise climática”, reforça Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Apib.
“O acampamento ‘Luta pela Vida’ já diz no nome os motivos que fazem os povos indígenas estarem, em Brasília, em plena pandemia. Estamos trabalhando todas as medidas sanitárias, incluindo a testagem dos participantes e reforçando a vinda de pessoas já vacinadas”, enfatiza Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib.
De acordo com a Apib, foram desenvolvidos para o acampamento protocolos sanitários dedicados a reforçar todas as normas já existentes e recomendadas para o combate à Covid-19. A equipe de saúde do acampamento conta com profissionais indígenas de saúde em parceria com a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), com a Fundação Oswaldo Cruz de Brasília e do Rio de Janeiro (Fiocruz DF e RJ), com o Ambulatório de Saúde Indígena da Universidade de Brasília (Asi/UNB) e com o Hospital Universitário de Brasília (HUB).
Com uma intensa programação de plenárias, agendas políticas, marchas, manifestações públicas e culturais, os indígenas ficarão acampados na Praça da Cidadania, na Esplanada do Ministérios.
“O acampamento ‘Luta pela Vida’ já diz no nome os motivos que fazem os povos indígenas estarem, em Brasília, em plena pandemia”
Texto da Assessoria de Comunicação do Acampamento Luta Pela Vida via CIMI
Fotografias do Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena
A cobertura colaborativa pode ser acessada aqui.
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Documento Final do I Encontro Virtual de Educação e Saúde Indígena do Amazonas e Roraima
CARTA ABERTA DO I ENCONTRO VIRTUAL DE EDUCAÇÃO E SAÚDE INDÍGENA DO AMAZONAS E RORAIMA
Nós, povos indígenas do Amazonas e Roraima, em conjunto com nossas organizações, preocupados com a situação atual e futura dos nossos povos, reunimo-nos no I Encontro Virtual de Educação e Saúde Indígena do Amazonas e Roraima, em 28 de julho, para demonstrar a nossa insatisfação e repudiar os rumos anti-indígenas das políticas adotadas pelo Governo Federal e pelos Governos dos Estados do Amazonas e de Roraima. Citamos alguns fatos:
No Amazonas, a falta de compromisso real com os povos indígenas pode ser bem ilustrada com o grave caso da anulação do direito constitucional – conquistado em 2018, após oito anos de duras lutas – aprovado na Constituição Estadual, que destinava 0,5% da receita corrente líquida, exclusivamente para o atendimento aos povos indígenas do Estado; a negação de diálogo mais amplo com o movimento indígena, ignorando as pertinentes propostas indígenas elaboradas e apresentadas em série de documentos encaminhados ao governo. Nada foi levado em conta.
Em Roraima, o governo estadual entrou no Supremo Tribunal Federal (STF) para excluir a garantia do direito na carreira dos professores indígenas do Plano de Cargos e Salários dos Servidores. O ato do governo contraria decisão da Assembleia Legislativa do Estado de Roraima que aprovou o Plano de Carreira da Educação Básica e da Educação Indígena, vetado pelo governo.
Neste I Encontro Virtual, falamos ao Brasil e ao mundo em nome de 20 povos e 30 organizações indígenas, incluindo lideranças, educadores, profissionais da saúde indígena e estudantes indígenas, todos duramente atingidos pela política governamental do País para as populações indígenas.
Há cinco meses vivemos um ciclo de recrudescimento das ameaças contra nossos povos e nossos territórios, exatamente quando a pandemia da Covid-19 amplia as dificuldades, nos castiga e mata muitos de nós. Já são mais de 10,3 mil indígenas contaminados e 544 mortos pela doença (dados da APIB, de 21/07/2020). Dados recentes da COIAB, informam que a Covid-19 já alcançou 34 povos indígenas no estado do Amazonas, causando 180 óbitos. Em Roraima, foram 6 povos, com 50 óbitos. Nestes dois estados, a Covid-19 está presente em terras indígenas de pelo menos 20 povos isolados. Estimativas sérias apontam que a população indígena está afetada, proporcionalmente, em pelo menos 400% a mais do que a média nacional, confirmando o alto nível de risco que isto representa.