‘Brasileiro não percebe a questão indígena como um problema seu’, diz analista ante marco temporal

Desde o dia 22, milhares de indígenas estão acampados em Brasília protestando contra o marco temporal. A Sputnik Brasil entrevistou analista para saber o que pode acontecer com a comunidade indígena brasileira se essa medida for aprovada.

Na quinta-feira (26), o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar se demarcações de terras indígenas devem seguir o chamado “marco temporal”. Por esse critério, indígenas só podem reivindicar a demarcação de terras que já eram ocupadas por eles antes da data de promulgação da Constituição de 1988, segundo o G1.

A decisão pode definir o rumo de mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas que estão em aberto no país. Nesta semana, índios de todo o Brasil acamparam na Esplanada dos Ministérios em protesto contra o marco.

“Na realidade é um retrocesso. […] Infelizmente o movimento indígena tem pouquíssimos representantes no Congresso, e isso mostra uma fragilidade e desvantagens para os povos indígenas. Por outro lado, a sociedade brasileira também se mostra apática em relação a esta pauta danosa aos ambientes e aos povos indígenas”, destacou Nelcioney José de Souza Araújo, professor de geografia da Universidade Federal do Amazonas citado pelo Correio Brasiliense.

A Sputnik Brasil entrevistou Ricardo Cid Fernandes, professor de antropologia do Departamento de Antropologia e programa de pós-graduação de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Paraná para entender mais sobre o assunto.

Indígena protesta contra o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e contra o marco temporal em Brasília, Brasil em 27 de agosto de 2021
© REUTERS / AMANDA PEROBELLI
Indígena protesta contra o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e contra o marco temporal em Brasília, Brasil em 27 de agosto de 2021

Fernandes diz que a sociedade brasileira se mostra apática a questões indígenas porque há pouco conhecimento e interesse sobre a questão, além disso, o brasileiro concebe, até hoje, uma visão do indígena associada ao passado e a lugares remotos e distantes.

“O brasileiro não percebe a questão indígena como um problema seu”, disse o professor.

O mesmo ainda ressalta que o assunto está mais em alta neste momento porque vem sendo associado ao discurso ambientalista, que também está em evidência no mundo todo.

Demarcação de terras indígenas

Fernandes elucida que a demarcação de terras para povos indígenas é de extrema importância uma vez que se trata “de um direito fundamental, é como um direito à vida”.

“O direito ao território é a compreensão da terra como local da história dos antepassados, local da vida possível do presente, local onde os simbolismos estão associados, local dos poderes da natureza. A garantia do direito territorial é fundamental, a vida só é possível considerando o direito ao território.”

O professor também salienta que as terras indígenas são as terras ambientalmente mais protegidas do Brasil, “a floresta está em pé onde os índios estão”.

“No Sul do país, onde houve retomada de terras nos últimos 30, 40 anos, as terras recuperaram sua qualidade ambiental e contrastam fortemente com o território de exploração da agricultura que são desmatados. Os indígenas prestam serviço ambiental de extrema importância que é o de manter a floresta em pé.”

Indígenas participam de protesto em Brasília contra o marco temporal em Brasília, 26 de agosto de 2021
© REUTERS / AMANDA PEROBELLI
Indígenas participam de protesto em Brasília contra o marco temporal em Brasília, 26 de agosto de 2021

Marco temporal

Conforme citado anteriormente, na semana passada, o Supremo começou a julgar se demarcações de terras indígenas devem seguir o chamado “marco temporal”, critério pelo qual índios só podem reivindicar a demarcação de terras que já eram ocupadas por eles antes da data de promulgação da Constituição de 1988.

Segundo Fernandes, o cerne da discussão acontece porque há dois tipos de interpretações diante da demarcação de terras. De “um lado os índios afirmam e a história comprova” que a presença indígena nas terras tradicionalmente ocupadas foi impossibilitada por vários processos oriundos da colonização.

“Ocupar tradicionalmente uma terra para os indígenas não significa estar permanentemente nela, significa reconhecer esse território, lutar por ele e demonstrar os processos de violação que acontecem em seus direitos territoriais.”

Indígenas da etnia Xokleng participam de protesto em Brasília, 25 de agosto de 2021
© REUTERS / AMANDA PEROBELLI
Indígenas da etnia Xokleng participam de protesto em Brasília, 25 de agosto de 2021

Já a outra interpretação, entende que para uma terra ser considerada tradicionalmente ocupada é preciso estar constantemente presente na mesma.

“Em resumo, a discussão sobre o marco temporal coloca em lados opostos os termos da Constituição, que definem que os indígenas têm direito às terras tradicionalmente ocupadas, e de outro lado, os instrumentos de aplicação dessa lei que são o decreto nº 1775 e a portaria nº 14, ambos de 1996, que são legislações que organizam e normatizam o processo de demarcação de terras. Por um lado, a Constituição garante terras tradicionalmente ocupadas, por outro, os estudos são baseados na caracterização da ocupação permanente das terras”, explicou o professor.

Diante desse cenário, Fernandes afirma que há “um desencontro entre Constituição e legislação infraconstitucional” e que esse desencontro é contornado através de estudos que “acabam demonstrando que a ocupação permanente pelos indígenas foi muitas vezes inviabilizada”.

Povos indígenas carregam um caixão improvisado durante protesto contra o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e pela demarcação de terras em frente ao Palácio do Planalto em Brasília, 27 de agosto de 2021
© REUTERS / AMANDA PEROBELLI
Povos indígenas carregam um caixão improvisado durante protesto contra o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e pela demarcação de terras em frente ao Palácio do Planalto em Brasília, 27 de agosto de 2021

“Terra tradicionalmente ocupada não significa terra permanentemente ocupada, e essa é a origem do problema”, complementou.

O professor clarifica que quem defende o marco temporal considera que não deve mais acontecer demarcações de terras indígenas no Brasil, ou seja, apenas as terras ocupadas pelos indígenas até 1988 teriam seu reconhecimento como pertencentes aos mesmos.

“Quem defende o marco temporal hoje exclui de todo um processo de demarcação a maioria dos indígenas do Brasil. […] Se pensarmos nos últimos 100 anos, a ocupação de terras no Sul, Sudeste, Nordeste, Centro-Oeste foi muito intensa, e o relato cotidiano de muitos indígenas envolve a reivindicação de terras que foram expropriadas. […] Há muitos casos documentados de grupos que foram violentados e exterminados por todo Brasil, e esses processos não ocorreram apenas após a Constituição, ocorreram ao longo de toda história da colonização.”

Adicionalmente, Fernandes diz que uma das formas de reparar a violência contra os indígenas é reconhecer seus direitos territoriais, reconhecimento esse que o marco temporal não legitima.

O especialista também explica que o caso foi parar no STF porque é um problema do Estado, a partir do momento que “as procuradorias estaduais entram com uma ação contra a União. É o Estado contra a Fundação Nacional do Índio [Funai], o Estado contra o Ministério da Justiça que demarcou a terra, e por isso está no STF”.

“Não podemos esquecer que a o território é tradicionalmente ocupado por indígenas, mas a terra é um bem da União, quem dispõe da terra em última estância é a União, os indígenas têm usufruto das terras, eles não são proprietários. Toda terra indígena está escrita no Departamento de Patrimônio da União”, esclareceu o professor.

Criança indígena é fotografada durante protesto no primeiro dia do julgamento do STF contra caso histórico sobre os direitos à terra dos indígenas em Brasília, 25 de agosto de 2021
© REUTERS / ADRIANO MACHADO
Criança indígena é fotografada durante protesto no primeiro dia do julgamento do STF contra caso histórico sobre os direitos à terra dos indígenas em Brasília, 25 de agosto de 2021

Posição do governo federal

O professor afirma que o governo Bolsonaro é totalmente favorável ao marco temporal porque “considera que já há muitas terras demarcadas, e que o importante é o Brasil ter segurança jurídica, como eles dizem, terras que não serão reivindicadas por indígenas para que possa se desenvolver o agronegócio e a exploração de minas”.

“A posição é favorável ao marco temporal e ignora a luta e os massacres sofridos ao longo do século XX pelos indígenas. […] É um governo que não se posiciona perante a chave da reparação histórica, mas sim perante uma chave desenvolvimentista.”

Fernandes acredita que a chance da lei ser aprovada é grande, mas também enfatiza que a chance dos indígenas seguirem lutando é maior ainda.

“Se de certa forma eles sofreram calados e pressionados no século XX, no século XXI eles já demonstraram que encontraram parceiros e aliados, sabem operar com as mídias, sabem operar dentro do sistema legal e pressionar politicamente. Esse será um século mais indígena do que o XX, com certeza.”

Esse fato pode ser evidenciado após cerca de mil lideranças indígenas decidirem no sábado (28) continuarem acampadas em Brasília até o dia 2 de setembro, para esperar o julgamento do marco temporal pelo STF, segundo o G1.

O acampamento, chamado de “Luta pela Vida”, está montado desde domingo (22) e mostra que o índio de hoje não fica mais calado, e manifesta sua luta através da resistência.

Indígenas no acampamento Luta pela Vida durante manifestação em defesa dos povos indígenas locais, em Brasília, 23 de agosto de 2021
© REUTERS / ADRIANO MACHADO
Indígenas no acampamento Luta pela Vida durante manifestação em defesa dos povos indígenas locais, em Brasília, 23 de agosto de 2021

Violência contra indígenas

Fernandes explica que a violência é um problema da colonização, pois esse processo ocorre na base da truculência e agressividade, e quando se trata de violência contra indígenas, mostra que “a colonização não é um fenômeno do passado, ela é um modo de ser que se reproduz constantemente”.

“A violência em terras indígenas precisa ser o assunto, ela não pode ser tratada como excepcionalidade ou como uma circunstância especifica, não, ela é um assunto do cotidiano das relações entre índios e não índios, entre os próprios indígenas, entre instituições e as relações exploratórias dos madeireiros”, elucidou.

O professor também enfatiza que a violência envolvendo índios “informa mais sobre a nossa sociedade do que sobre a sociedade indígena, informa mais sobre o lugar que nós reservamos a essa população na nossa sociedade” e que a dinâmica acontece de forma coletiva, por parte dos indígenas, mas de forma individual por parte de um agente de violência.

Indígena torce um pano durante um protesto em Brasília, 25 de agosto de 2021
© REUTERS / ADRIANO MACHADO
Indígena torce um pano durante um protesto em Brasília, 25 de agosto de 2021

“O indígena sempre aparece como um direito coletivo, uma comunidade, do outro lado é sempre um agente de violência, um mandante, um fazendeiro com um projeto individual.”

Fernandes também chama atenção para as prisões de índios, uma vez que os dados sobre esses encarceramentos são de difícil acesso. Como exemplo, o professor cita que os dados do Departamento Penitenciário do estado do Paraná informam que não há indígenas presos, quando se sabe que existe, pois ao entrarem no sistema prisional eles perdem a sua condição indígena e viram “presos comuns”.

“Há presos no estado do Paraná que nem falam português, mas não são considerados índios. O problema da violência é um problema brasileiro que os indígenas acabaram fazendo parte, infelizmente.”

O que fazer para indígenas viverem em paz?

O especialista aponta que o direito à terra é fundamental, e estando com esse direito garantido, a “tranquilidade se instala”.

Fernandes também evidencia que esse direito à terra não pode ser “ter só um espaço” e vive-se ali de qualquer jeito. Essa terra tem que ser um território com tamanho apropriado para que o mesmo conceba e autorize um projeto indígena.

O professor afirma que ao olharmos para o mapa indígena do Brasil, 98% das terras estão concentradas na Amazônia, o restante, que somam apenas 2%, estão divididas pelo país, ou seja, esses 2% mostram como são pequenos esses territórios.

Indígenas acendem velas e participam de protesto pela demarcação de terras e contra o governo do presidente, Jair Bolsonaro, junto ao Congresso Nacional em Brasília, 24 de agosto de 2021
© REUTERS / ADRIANO MACHADO
Indígenas acendem velas e participam de protesto pela demarcação de terras e contra o governo do presidente, Jair Bolsonaro, junto ao Congresso Nacional em Brasília, 24 de agosto de 2021

“Há terras com 200 hectares onde vivem mil pessoas, há terras como Dourados [MS] onde vivem 14 mil indígenas, terras superlotadas, além de terras que foram extintas e os índios vivem na margem de estradas em acampamentos em condições absolutamente marginais. Não há paz de espírito nessa condição.”

Fernandes complementa que o verdadeiro direito à terra, é direito a uma terra que tenha uma qualidade ambiental, que tenha referências com o sagrado, com os antepassados.

“Não adianta uma terra pequena com índios amontoados sem condição de produzir, sem condição de se reproduzir socioculturalmente, essa terra vai ser uma terra fonte de conflito. O equilíbrio demográfico, sustentável e fundiário é fundamental para que a paz de espírito se recoloque na questão indígena.”

Por Via Sputnik Brasil  

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