O que o mundo perde quando morre uma língua

Quando Yang Huanyi faleceu, em 2004, morreu também o nushu, um sistema de escrita silábico conhecido apenas pelas mulheres de uma área remota da província chinesa de Hunan. Aos 98 anos, ela era a última detentora de um conhecimento passado de mãe para filha que, durante séculos, permitiu que as mulheres se comunicassem secretamente entre si e burlassem o controle dos homens, ainda que fossem proibidas de receber educação formal.

De acordo com o Atlas Interativo das Línguas em Perigo, da UNESCO, mais de 100 línguas desapareceram nos últimos 10 anos e outras 2.572 são consideradas vulneráveis ou em risco de extinção. Dessas, 519 estão em situação crítica e 51 são faladas por uma única pessoa. A organização afirma que uma língua morre a cada 14 dias. Nesse ritmo, metade dos 7.000 idiomas falados hoje no mundo desaparecerá até o final do século 21, alguns deles sem nunca terem sido gravados ou documentados.

Só na América do Sul são 420 línguas ameaçadas, faladas por algo entre 8,5 milhões e 11 milhões de pessoas. O Brasil é o país com a maior diversidade linguística da região, mas também aquele que mais possui línguas ameaçadas de extinção. São 178 idiomas que podem deixar de existir nos próximos anos. Entre eles o ofayé, compartilhado por menos de 20 pessoas, e o guató, que não soma 50 falantes.

Poesia em Nahuatl no centro histórico da Cidade do México

Mas por que é importante preservar línguas faladas por tão poucas pessoas? O idioma é a nossa forma de expressão primária. É por meio dele que interpretamos a realidade, criamos e compartilhamos arte, cultura e ciência. Ou seja, as palavras e estruturas de uma língua são a base a partir da qual um povo cria sua cosmovisão, que é a maneira subjetiva de ver e entender o mundo, as relações humanas e o nosso lugar na sociedade, assim como as respostas a questões filosóficas básicas, como a finalidade da vida humana e a existência de algo após a morte.

Uma reportagem do El País sobre o tema afirma que “quando uma língua morre não se perdem apenas as palavras, mas todo o universo cultural ao qual davam forma: séculos de histórias, lendas, ideias, canções transmitidas de geração em geração que desaparecem ‘como lágrimas na chuva’, junto com valiosos conhecimentos práticos sobre plantas, animais, ecossistemas, o firmamento. Um dano comparável à extinção de uma espécie”. Defender as línguas é defender nada menos que a diversidade.

Não é à toa que a primeira forma de dominação de um povo é através da língua. Francisco Franco, ditador que governou a Espanha por quase quatro décadas, sabia disso ao proibir as línguas minoritárias no país. Durante o período, o basco, o catalão e diversos idiomas foram perseguidos e sobreviveram de forma clandestina, como um movimento de resistência na preservação da identidade de um povo. Gala Grau, uma amiga de Barcelona, conta que na casa de seu avô chegaram a contrabandear livros em catalão e compartilhá-los com os vizinhos para que as crianças continuassem a ter contato com a língua em casa, uma vez que o ensino havia sido banido das escolas.

 Hoje, tanto o catalão quanto o euskera, a língua basca, são as línguas primárias utilizadas nas escolas públicas de suas respectivas comunidades e são consideradas por seus falantes como um dos pilares de sua cultura. “Abandonar o catalão pelo espanhol seria abrir mão da minha identidade. Seria matar uma parte de mim, diretamente”, conta Gala. Outras línguas faladas na Espanha não resistiram tão bem à hegemonia castelhana e se encontram em risco de extinção, como o aragonês, o asturiano, o ansotano e o gascão do Val d’Aran.

Leia também: A relação entre língua e cultura

Salvar um idioma da extinção é um processo que pode durar décadas. É preciso programas governamentais voltados para a preservação, ensino formal com professores qualificados, material didático específico e o trabalho de reduzir o preconceito contra as línguas minoritárias, que podem sofrer com o desprestígio social quando comparadas às línguas dominantes. Se os falantes mais jovens sentem vergonha de sua língua e resolvem abandoná-la por considerarem antiquada, em muito se reduzem as chances de mantê-la viva.

Projetos que buscam documentar, produzir conteúdo nessas línguas e chamar a atenção da sociedade para a importância da preservação também são importantes formas de resistência linguística. O livro The Last Speakers (Os Últimos Falantes), escrito por K. David Harrison, conta a trajetória do autor por todos os continentes na tentativa de documentar idiomas em alto risco de extinção.

A publicação faz parte do projeto Enduring Voices (Vozes Resistentes), da National Geographic, uma série de documentários que, entre 2007 e 2013, catalogou mais de 100 línguas minoritárias em diversas partes do mundo. Já o Endegered Languages (Línguas Ameaçadas), do Google, busca disponibilizar por meio de uma plataforma colaborativa informações atualizadas e abrangentes sobre idiomas em risco, além de amostras em áudio, texto ou vídeo dessas línguas, com o objetivo de aumentar a presença delas na rede.

Na última semana, eu e um grupo de amigos nos reunimos na Cidade do México para também dar nossa pequena contribuição sobre o tema. Nos próximos meses, viajaremos pela América Latina para documentar algumas das centenas de línguas originárias do continente. Os resultados de nossa pesquisa vocês acompanham pelo blog Wakaya, no InstagramTwitter e Facebook do projeto e também em posts especiais que serão publicados uma vez por mês aqui no 360meridianos. Ao final da viagem, produziremos um webdoc interativo com o material que coletaremos no caminho.

Proyecto Wakaya

Fonte: 360 Meridianos

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