Vozes do Multilinguismo: Dra. Rosângela Morello (IPOL) | Parte 2
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Entrevista com Dra. Rosângela Morello (IPOL) | Parte 2
Contribuições do IPOL: Multilinguismo, Fronteiras e Parcerias Globais
Por Leonardo Alves e Caroline Schirmer Götz
O multilinguismo é um fenômeno complexo, atravessado por dinâmicas históricas, políticas e sociais que determinam o status, a circulação e a valorização das línguas em diferentes contextos. Nesta série de entrevistas, membros do GT Geopolíticas do Multilinguismo se revezam para dialogar com especialistas de diversas áreas, explorando as interseções do multilinguismo com tradução, direitos linguísticos, mediação intercultural, migrações, internacionalização, informação e comunicação, ensino de línguas, entre outros temas.
O objetivo é reunir diferentes perspectivas sobre as políticas linguísticas, os desafios da preservação e revitalização de línguas, as relações entre idiomas em espaços de fronteira e a influência de fatores geopolíticos na organização do multilinguismo. A partir dessas conversas, buscamos ampliar o debate e fomentar reflexões críticas sobre os modos como as línguas circulam e se transformam no mundo contemporâneo.
Nesta edição, entrevistamos Rosângela Morello, Doutora e Mestre em Linguística pela Unicamp, com doutorado-sanduíche na Universidade Paris VII. Licenciada em Língua e Literatura Portuguesa, é diretora do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Políticas Linguísticas (IPOL) e vice-líder do Grupo de Pesquisa CNPq: Observatório de Políticas Linguísticas. Representa o IPOL no Grupo de Trabalho Nacional para a Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032) da UNESCO. Atua em políticas linguísticas e educacionais, mapeamento de línguas, diagnósticos sociolinguísticos e coordena projetos voltados à valorização de línguas indígenas, de imigração e de fronteira.
Alves e Götz: Como o IPOL tem abordado as complexidades das línguas de fronteira no Brasil e o que o Programa Escolas Interculturais Bilíngues de Fronteira trouxe de mais inovador para a educação bilíngue?
A questão das fronteiras é particularmente sensível na geopolítica brasileira, considerando que o país possui a terceira maior linha de fronteira terrestre do mundo, atrás apenas da Rússia e da China. São 16.886 quilômetros que separam o Brasil de dez países sul-americanos – apenas Equador e Chile não são limítrofes. Essa faixa de fronteira, com 150 km de extensão a partir da linha limítrofe, abrange 27% do território nacional e inclui 588 municípios distribuídos por 11 estados em três regiões (Sul, Centro-Oeste e Norte). Desses municípios, 122 são diretamente limítrofes e 32 constituem cidades-gêmeas, isto é, compartilham fronteira seca ou fluvial e, por isso, apresentam grande potencial de integração econômica, cultural e linguística.
Essas regiões são profundamente multilíngues e multiculturais. Nelas convivem as línguas oficiais dos países vizinhos (espanhol, guarani, quéchua, aimará, inglês e francês), além de diversas línguas indígenas, línguas alóctones e formas híbridas resultantes do contato linguístico, como o Galibi Marworno, o Karipuna do Norte, o Palikur (falado no Oiapoque, na fronteira com a Guiana Francesa) e o chamado “portunhol” nas áreas fronteiriças com países hispano-falantes.
Nesse contexto, entendemos o multilinguismo transfronteiriço como um campo privilegiado para o desenvolvimento de políticas linguísticas conjuntas e multilaterais, que reconheçam e valorizem essas línguas – em especial, o português e o espanhol como línguas de comunicação internacional e de integração regional. Foi com esse espírito que surgiram iniciativas como o Programa das Escolas Interculturais Bilíngues de Fronteira (PEIBF) e o Observatório da Educação na Fronteira (OBEDF), ambos com participação ativa do IPOL. O PEIBF teve um papel pioneiro, sendo a primeira iniciativa educativa multilateral com gestão compartilhada pelos países do MERCOSUL.
Pelo Tratado de Assunção que criou o MERCOSUL em 1991, o português e o espanhol foram declarados línguas oficiais do bloco, prevendo “a necessidade de difundir a aprendizagem do português e do espanhol através dos seus sistemas educativos formais e informais” (Programa das Escolas Interculturais Bilíngues de Fronteira, Modelo de Ensino Comum, MEC/Brasil, p. 02), O Plano de Ação do Setor para 2001-2005, assinado em Assunção, Paraguai, aprofundou a compreensão da educação como “espaço cultural para o fortalecimento de uma consciência favorável à integração, que valorize a diversidade e reconheça a importância dos códigos linguísticos e culturais“ (Programa das Escolas Interculturais Bilíngues de Fronteira, Modelo de Ensino Comum, MEC/Brasil, p. 02). A Declaração Conjunta de Brasília, 2003, assinada por Brasil e Argentina, coroou esse processo, estabelecendo um conjunto de ações em ambos os países.
Em 2004, em Buenos Aires, uma nova Declaração Conjunta referendou os passos dados avançando no estabelecimento do Convênio de Cooperação Educativa entre esses dois países, no âmbito do qual foi formulada a proposta de construção de um Modelo de Ensino Comum em Escolas de Zona de Fronteira, a partir do desenvolvimento de um Programa para a Educação Intercultural com ênfase no ensino do Português e do Espanhol. Essa proposta foi apresentada e aprovada na XXVI Reunião de Ministros de Educação do MERCOSUL, Bolívia e Chile realizada em Buenos Aires, em 10 de junho de 2004, marcando o início do Programa das Escolas Interculturais Bilíngues de Fronteira (PEIBF) a partir de um acordo bilateral entre Brasil e Argentina[1]. Em 2008, Uruguai, Paraguai e Venezuela aderem ao PEIBF, que entra para o Setor Educacional do Mercosul (SEM-MERCOSUL).
O programa propôs a construção de um modelo comum de educação bilíngue português-espanhol, com base em diagnósticos sociolinguísticos realizados nas fronteiras. As escolas parceiras foram selecionadas para desenvolver projetos pedagógicos específicos, centrados em abordagens político-pedagógicas próprias. Entre suas inovações, destacam-se o intercâmbio de docentes entre escolas de países vizinhos, o planejamento didático conjunto, a utilização de projetos de pesquisa como eixo formativo e a atuação de assessores especializados que acompanhavam continuamente os docentes.
Os encontros mensais de assessores com os professores e diretores nas escolas para o planejamento conjunto dos projetos, os seminários regionais semestrais e os multilaterais garantiam uma formação continuada em locus e um diálogo constante entre as equipes, dirimindo dúvidas e dando encaminhamentos acordados. Os projetos de ensino via-pesquisa estruturavam abordagens procedimentais e conteudísticas conduzindo a um currículo pós-feito.A gestão institucional do programa era compartilhada pelos Ministérios e Secretarias dos países, comandada por equipes nomeadas para tal[2]. O IPOL foi parte da equipe brasileira de 2004 a 2010.
A principal inovação do PEIBF foi reconhecer e valorizar os conhecimentos linguísticos e culturais de alunos e professores, bem como os modos de vida nas regiões de fronteira, transformando-os em recursos pedagógicos e agentes do processo educativo. O sucesso da iniciativa levou à sua expansão: em 2010, já envolvia sete países e 28 escolas de educação fundamental em fronteiras com países hispano-falantes. No caso da fronteira com o Paraguai, o fato de a língua Guarani ser oficial do Estado paraguaio fez com que essa língua fosse também contemplada nas ações pedagógicas das escolas na fronteira do Brasil com esse país.
Em 2012, no Brasil, o Programa passou a ser regulamentado pela Portaria nº 789, de 19 de junho de 2012[3], que então remodelou o seu funcionamento, designando-o como Programa das Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF), com exclusão do foco nas línguas. A partir de 2016 o Programa foi extinto pelo Governo Brasileiro, conforme consta em um texto de minha autoria com o professor Gilvan Müller de Oliveira (2019).
Nesse texto, Gilvan e eu apresentamos detalhes sobre o PEIBF/PEIF, e convido a todos a acessá-lo aqui. Retomando um dos argumentos deste trabalho, o PEIBF inovou nas práticas educativas, mobilizando de forma significativa as equipes escolares, incluindo os gestores. No entanto, para garantir sua continuidade, seria necessário promover mudanças nas diretrizes de ensino no Brasil, de modo a incorporar e viabilizar o multilinguismo de forma efetiva.
Com esse objetivo, em 2010 foi encaminhada ao Conselho Nacional de Educação uma proposta para a criação de diretrizes que assegurassem o ensino multilíngue até o nível médio. Infelizmente, essa iniciativa não avançou. Em vez disso, houve um processo de retração, e o Programa foi rigidamente atrelado a uma estrutura educacional de base monolinguista e nacionalista.
As mudanças geopolíticas na América Latina, marcadas pelo retorno de governos de direita e pela adoção de políticas neoliberais, comprometeram ainda mais a base ideológica da integração regional, o que afetou diretamente projetos de cooperação fronteiriça e linguística, como era o caso do PEIBF/PEIF.
Se, por um lado, a trajetória de sucesso seguida pela desmobilização do PEIBF/PEIF revela a frágil institucionalização das políticas linguísticas para a educação no Brasil e na região, por outro, os dez anos de prática de um bilinguismo intercultural cooperativo nas fronteiras deixaram um legado técnico e político de enorme importância para o futuro do bilinguismo português-espanhol.
Prova disso é o crescente interesse de pesquisadores e universidades brasileiras em temas linguísticos e culturais relacionados às fronteiras, bem como o surgimento de projetos interculturais na fronteira entre Espanha e Portugal, desenvolvidos a partir da experiência latino-americana e impulsionados pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI).
Alves e Götz: Como tem sido o trabalho conjunto entre o IPOL e a Cátedra UNESCO em Políticas Linguísticas para o Multilinguismo e de que forma essa parceria, junto aos projetos prioritários do IPOL, tem contribuído para o fortalecimento da diversidade linguística no Brasil e dialogado com outras iniciativas globais na área de políticas linguísticas?
Participar da Cátedra UNESCO em Políticas Linguísticas para o Multilinguismo é um marco na trajetória do IPOL. A Cátedra reúne pesquisadores de 25 instituições de ensino e centros de pesquisa de diferentes partes do mundo – como Indonésia, Índia, Rússia, África do Sul, Brasil, entre outros – com o objetivo de compartilhar pesquisas em andamento, novos projetos, publicações e eventos. Também há a possibilidade de mobilidade acadêmica, permitindo que pesquisadores realizem viagens de curta duração para atividades nas instituições envolvidas.
Sobre essas mobilidades, destaco que, entre julho e agosto de 2022, tivemos a honra de receber, em parceria com a UFSC, a professora Dra. Umarani Pappuswamy, do Central Institute of Indian Languages, de Mysuru, Índia. Durante sua estada no Brasil, ela desenvolveu atividades em várias universidades e nos brindou com palestras no IPOL, sobre os Processos de produção de escrita para línguas indígenas no âmbito da Educação Bilíngue na Índia, e na UFSC, com a temática Translation Studies and Linguistics in Multilingual India. Mais recentemente, entre outubro e novembro de 2024, recebemos o professor Dr. José Antonio Flores Farfán, do Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social (CIESAS), que realizou uma palestra e uma exposição de materiais em línguas indígenas mexicanas.
Esses intercâmbios têm sido extremamente enriquecedores, pois são momentos de intenso aprendizado, em que compartilhamos desafios, conhecemos experiências de outras partes do mundo e abrimos novas possibilidades de parcerias e projetos conjuntos. Ainda, aprofundamos as relações de trabalho, ampliamos nosso campo de conhecimento e fortalecemos sinergias fundamentais para impulsionar novas ações em políticas linguísticas, a exemplo da organização do II Encontro Nacional de Municípios Plurilíngues (II ENMP), realizada em parceria entre o Grupo de Trabalho de Geopolítica da Cátedra e o IPOL. Essa atuação conjunta tem sido essencial, especialmente em um momento em que o IPOL enfrenta restrições de tempo e recursos, tornando essa colaboração ainda mais valiosa para nós.
De modo geral, as políticas linguísticas desenvolvidas no Brasil, muitas vezes com a participação direta do IPOL, têm se destacado como iniciativas inovadoras. Por isso, é cada vez mais comum sermos convidados a compartilhar essas experiências em eventos científicos e fóruns multilaterais ao redor do mundo. Pode parecer pouco, mas são as ideias que fazem as revoluções, não é? Acreditamos que, mesmo aos poucos, vamos realizando microrrevoluções. A Cátedra UNESCO é, em essência, um grande caldeirão de ideias – assim como o IPOL também é. Gosto de pensar que nos inspiramos mutuamente.
Alves e Götz: O IPOL tem desenvolvido metodologias pioneiras para o mapeamento e diagnóstico sociolinguístico. Quais aspectos dessas metodologias a senhora considera que podem servir de modelo para outros países e como esses diagnósticos contribuem para o planejamento de políticas públicas mais inclusivas e eficazes?
O Brasil é um país que ainda carece de informações sistematizadas sobre as línguas faladas por seus cidadãos e cidadãs. Diferentemente de muitos outros países, os censos nacionais brasileiros não incluem pesquisas abrangentes sobre as línguas. Em 2010 e 2022, a investigação realizada pelo IBGE limitou-se àqueles que se declararam indígenas, o que representa menos de 2% da população. Dessa forma, todas as demais comunidades linguísticas foram apagadas dessa importante radiografia social, tão necessária para o planejamento de políticas públicas.
Historicamente, as únicas contagens de falantes de línguas diferentes do português ocorreram nos censos de 1940 e 1950, com foco específico na identificação de falantes de alemão e italiano no sul do país, vistos à época como ameaça à segurança nacional. Esse contexto de repressão, somado à violência histórica contra falantes de línguas indígenas e africanas, moldou a memória social brasileira, deixando marcas profundas de insegurança linguística – tanto entre os falantes, que tendem a desqualificar suas próprias línguas e seu domínio do português, quanto entre gestores públicos, que muitas vezes não sabem como lidar com a gestão de políticas multilíngues.
Há, ainda, um desconhecimento mais profundo: uma interdição da memória, na qual eventos e sentidos silenciados deixam de ser acessíveis, como se houvesse uma espécie de amnésia coletiva que, embora invisibilizada, continua produzindo preconceitos e justificando violências.
Assim, qualquer mapeamento linguístico no Brasil é, necessariamente, uma ação sobre essa memória histórica. Ainda que o resultado final de um mapeamento possa parecer apenas uma “contagem”, o processo exige uma abordagem sensível, que reconheça os silêncios, as lacunas e as dificuldades que muitas pessoas têm em falar sobre sua própria história linguística. Em uma entrevista não seria possível aprofundar o entrelaçamento histórico e subjetivo desse processo. Essa perspectiva define o modo como concebemos os mapeamentos no IPOL, sejam eles no formato de censos – como os realizados de forma pioneira em Santa Maria de Jetibá (ES) e em Antônio Carlos (SC) –, de diagnósticos sociolinguísticos, que aprofundam as investigações por meio de grupos focais, ou de inventários linguísticos, sobre os quais já falei anteriormente. Nossa metodologia valoriza a autodefinição, presta atenção às nuances na fala dos participantes e entende que cada instrumento de coleta é, ao mesmo tempo, uma ferramenta técnica e uma ação política.
Quando conduzimos os diagnósticos para a instalação do Programa das Escolas Interculturais Bilíngues de Fronteira (PEIBF) ou para o Observatório da Educação na Fronteira (OBEDF), percebemos mudanças de posicionamento nas pessoas ainda durante o processo da pesquisa. Essa transformação é, em si, profundamente política.
Em pesquisas de maior escala, reconhecemos que há condicionantes – de tempo, de recursos – que exigem uma certa objetividade nas perguntas. Porém, é fundamental formar os pesquisadores para compreenderem as condições históricas que atravessam a interação com os entrevistados e, sobretudo, incluir todos os cidadãos e cidadãs no processo, reconhecendo o plurilinguismo não como ameaça ou problema, mas como recurso: uma potência para novas formas de vida, de relação e de conhecimento.
Sobre quais aspectos dessas metodologias poderiam servir de modelo para outros países, acredito que isso depende muito dos objetivos específicos de cada contexto. No entanto, considero que a visão sensível à história social das línguas e de seus falantes possa ser uma inspiração positiva e necessária em qualquer lugar.
Quanto à contribuição dos mapeamentos para políticas públicas mais inclusivas e eficazes, é exatamente para isso que trabalhamos no IPOL. Reconheço, contudo, que esse caminho ainda é percorrido lentamente. Ainda se repetem políticas linguísticas que não alcançaram os objetivos pretendidos e que mereceriam ser reavaliadas a partir de diagnósticos atualizados. Investir em mapeamentos e diagnósticos linguísticos parece ser um passo imprescindível para qualificarmos de fato nossas políticas públicas.
[1] Para as tratativas, fundamentos e diretrizes desse Programa, ver o documento PROGRAMA ESCUELAS INTERCULTURALES BILÍNGÜES DE FRONTERA (PEBF) “Modelo de enseñanza común en escuelas de zona de frontera a partir del desarrollo de un programa para la educación intercultural, con énfasis en la enseñanza del portugués y el español”. MEC. Brasil. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Escolafronteiras/doc_final.pdf.
[2] Para detalhes, ver o documento “Princípios Teóricos e Pedagógicos e Orientações Metodológicas para Projetos de Ensino em Escolas de Fronteira e para a Formação de Professores”, OEI, 2019.
[3] Portaria nº 798, de 19 de junho de 2012. Institui o Programa Escolas Interculturais de Fronteira, que visa a promover a integração regional por meio da educação intercultural e bilíngue. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 jun. 2012. p. 30.
Confira a Parte 1 da entrevista aqui.
Acesse o link: https://geomultling.ufsc.br/vozes-do-multilinguismo-dra-rosangela-morello-ipol-parte-2/#_ftn1
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