Parece história de filme: trabalho de intérprete de aluno da USP no tribunal ajuda a inocentar haitiano

O réu fala apenas crioulo haitiano. Um compatriota fluente em português o acusou de assassinato e ele ficou 16 meses preso. Sua versão dos fatos foi ouvida somente no julgamento, com a ajuda de mestrando da USP

Durante um ano e quatro meses, um imigrante haitiano ficou preso em São Paulo, acusado de assassinar a esposa. Mas nunca conseguiu dar a sua versão dos fatos, porque domina apenas o crioulo haitiano, língua oficial do Haiti. Desde que foi preso, ninguém entendia o que ele falava. Um parente deles, haitiano fluente em português, o acusou de ser autor do crime. A história mudou no dia do julgamento, realizado em janeiro deste ano, no Fórum da Barra Funda, na capital paulista, quando o aluno de mestrado em Linguística da USP, Bruno Pinto Silva, fluente em crioulo haitiano, serviu de intérprete no tribunal. Foi a primeira vez, em 16 meses, que alguém ouvia e entendia o que o réu falava. E, finalmente, o relato dele elucidou o que, de fato, havia ocorrido: o verdadeiro autor do crime teria sido o tal parente. O depoimento coincidia com várias provas coletadas pela perícia, além de outras evidências, o que levou o júri popular a absolver o imigrante haitiano.

A história poderia render um livro ou mesmo nos faz lembrar do filme Amistad, lançado em 1997, com direção de Steven Spielberg (leia quadro abaixo), em que um intérprete teve um papel fundamental para definir o destino de homens e mulheres negros em plena escravidão nos Estados Unidos de 1839.

O filme Amistad

Em 1839, um grupo de homens e mulheres negros aprisionados em um navio se revoltam, matam a tripulação e deixam apenas dois tripulantes vivos para guiá-los durante a viagem. O barco é interceptado pelos Estados Unidos. Começa então uma batalha jurídica nos tribunais americanos para saber quem eram os “donos” daquelas pessoas, que passaram a ser reivindicadas pelo reino da Espanha, por comerciantes cubanos e pelos próprios EUA. Eles falam um idioma específico, não entendem inglês ou espanhol, e ninguém consegue traduzir o que eles dizem. Até que os advogados de defesa encontram um homem que fala a língua deles e, a partir da tradução dos depoimentos, consegue-se trazer elementos jurídicos que ajudam a definir o destino daquelas pessoas.

Banner do filme Amistad - Foto: Reprodução

Banner do filme Amistad – Foto: Reprodução

“No dia do julgamento, o defensor público citou a importância da presença de um tradutor ou intérprete para o réu”, conta ao Jornal da USP o mestrando Bruno Pinto Silva. Segundo o pesquisador, a lei a que o defensor público se referiu é o Pacto de São José da Costa Rica, da Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário:

Bruno Pinto - Arquivo Pessoal

Bruno Pinto Silva – Foto: Arquivo pessoal

Segundo o Artigo 8º, Parágrafo 2, Alínea A:
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal;

Bruno atualmente é aluno de mestrado no Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, onde desenvolve uma pesquisa sobre o crioulo haitiano em uma comunidade de imigrantes no bairro de Perus, região norte da capital paulista. A pesquisa é realizada sob a orientação do professor Paulo Chagas de Souza.

O mestrando explica que o crioulo haitiano é falado pela grande maioria da população do Haiti. “Apesar de cerca de 90% do vocabulário da língua ter se originado do francês, a estrutura sintática para a construção das frases nos dois idiomas é totalmente distinta. Quanto à pronúncia, existem algumas similaridades, porém, as diferenças, tanto na sintaxe como na pronúncia, fazem delas duas línguas diferentes. Quem fala francês não entende crioulo haitiano e vice-versa. Algo semelhante ao que ocorre com o português e o espanhol, por exemplo. Essas diferenças ajudam a explicar o fato de o réu ter conversado anteriormente com um intérprete que fala francês. Mas um não conseguiu entender o que o outro dizia.”

20220324_paulochagas

Paulo Chagas de Souza – Foto: Arquivo pessoal

A língua francesa, diz Bruno, é falada por uma minoria, cerca de 5% a 7% dos haitianos. Porém, há uma grande contradição nisso: apesar de a Constituição do Haiti decretar o crioulo haitiano como língua oficial, as escolas locais, bem como todo o sistema de justiça do país caribenho, usam a língua francesa em suas comunicações, esclarece o mestrando. “Isto tem mudado nos últimos tempos, muito lentamente, mas ainda é um problema no Haiti”, diz o pesquisador.

Sobre o estudo de mestrado que está desenvolvendo, Bruno explica que uma das diferenças entre o francês e o crioulo haitiano é que, no francês, há um arredondamento de vogais: é o famoso “biquinho”: blé é trigo, mas bleu, com a pronúncia fazendo o biquinho, é azul. Já em crioulo haitiano, a pronúncia blé vale tanto para as palavras trigo e azul.

Em sua pesquisa, Bruno está trabalhando com a hipótese de que alguns haitianos acabam usando esse arredondamento pensando em uma aproximação com a língua francesa, pois isso representaria um prestígio, um refinamento, diante da sociedade haitiana. Os testes deverão ser realizados nas próximas semanas em uma escola de jovens e adultos em Perus, que conta hoje com cerca de 700 alunos haitianos matriculados.

 

Aprenda Crioulo Haitiano

Bruno relata que, desde criança, sempre foi apaixonado por línguas estrangeiras e se interessava por aprender outros idiomas. Antes de entrar na adolescência, já era fluente em português, inglês e espanhol. Quando adulto, aprendeu italiano e, antes de aprender francês, aprendeu crioulo haitiano. Seus primeiros contatos com a língua oficial do Haiti datam de 2014, quando ele começou a trabalhar em projetos sociais com haitianos residentes na cidade de Jundiaí, em São Paulo, ministrando aulas de português. A partir dessas aulas, ele começou a observar as características do idioma. Desse contato, nasceu o blog Aprenda Crioulo Haitiano.

Capa do Jornal de Jundiaí relatando a história de Bruno Pinto – Foto: Reprodução

Conforme se aprofundava no idioma e divulgava o blog, Bruno passou a ser chamado para trabalhar como intérprete, ajudando, principalmente, em situações ligadas às áreas da saúde e jurídica. Certa vez, ajudou uma parturiente haitiana que estava há quase um mês em um hospital, mas não era liberada pois era cardiopata e precisava receber informações sobre o tratamento de forma muito precisa antes da alta médica. Em outro caso, se ofereceu para ajudar um haitiano que estava hospitalizado com amnésia, mas, infelizmente, a pessoa estava em uma situação delicada de saúde e morreu alguns dias após o contato. Porém, eles conseguiram localizar a família do rapaz em Três Lagoas, em Mato Grosso do Sul.

Crioulo haitiano: uma língua subestudada

O mestrando ressalta que, pelas suas características, o crioulo haitiano é uma língua totalmente desenvolvida, não é um dialeto. Porém, é subestudada. Ele diz que, atualmente, observando-se o que há de pesquisas nacionais e internacionais sobre o idioma, “parece que essas pesquisas pararam no tempo”.

“As coisas avançaram muito, hoje a gente tem tecnologia auxiliando muito no aprendizado dos idiomas. Eu, por exemplo, lido com o som das línguas, então a gente tem tecnologia para descrever com mais detalhes a articulação dos sons, mas não tem estudos nesse nível, sejam experimentais ou instrumentais, para o crioulo haitiano”, lamenta.

Ele destaca algumas iniciativas importantes de estudos envolvendo o crioulo haitiano, como a MIT-Haiti Initiative, projeto “que relaciona a luta por direitos humanos e justiça social à Linguística”, desenvolvida pelo pesquisador haitiano Michel DeGraff, professor de linguística do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos.  Em seu Twitter, DeGraff já fez críticas ao uso do francês nos tribunais do Haiti, chegando a comentar o trabalho de intérprete de Bruno no caso do haitiano (veja quadro ao lado).

O mestrando da USP escreveu uma resenha sobre o projeto MIT-Haiti Initiative, disponível neste link.

Twitter do - Foto: Reprodução

Twitter do Michel DeGraff – Foto: Reprodução

Na USP, Bruno Silva já ministrou, por três vezes, o curso Noções introdutórias da gramática do crioulo haitiano pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). E, pela mesma faculdade, é um dos integrantes do Grupo de Estudos em Tipologia Linguística (Tipoling), coordenado pelo professor Paulo Chagas de Souza.

Em 2021, Bruno ganhou uma bolsa do Centro de Estudos Brasileiros da América Latina para desenvolver um material que vai servir para treinar intérpretes para o crioulo haitiano, tanto comunitários como forenses. Esse material está para ser lançado. Posteriormente, o pesquisador participou do Seminário do Curso Formação de Tradutores e Intérpretes Comunitários, realizado no segundo semestre de 2021. Em dezembro, ele foi contatado pelo Fórum para saber da disponilidade em trabalhar como intérprete no julgamento do haitiano.Para Bruno, é de fundamental importância que outras pessoas se formem em crioulo haitiano, principalmente servidores públicos, para que possam se comunicar com esses imigrantes e ajudá-los a conseguir os diversos auxílios a que eles têm direito, finaliza.

 

Cerca de 150 mil haitianos no Brasil

Segundo o Relatório Anual 2021, divulgado pelo Portal da Imigração, do Ministério da Justiça e Segurança Pública , “entre 2011 e 2020, se estima, conforme os registros administrativos de solicitações de residência e de reconhecimento da condição de refugiado, que estavam residindo no Brasil, aproximadamente, 1,3 milhão de imigrantes, liderados por venezuelanos (172.306) e haitianos (149.085)”. Segundo dados da Polícia Federal, na cidade de São Paulo vivem cerca de 293 mil imigrantes, e a maioria são bolivianos, chineses e haitianos.

Mais informações: e-mails bpsilva@usp.br, com Bruno Pinto Silva, e pcsouza@usp.br, com o professor Paulo Chagas de Souza
Autor: Valéria Dias
Arte: Ana Júlia Maciel

Deixe uma resposta

IPOL Pesquisa
Receba o Boletim
Facebook
Revista Platô

Revistas – SIPLE

Revista Njinga & Sepé

REVISTA NJINGA & SEPÉ

Visite nossos blogs
Forlibi

Forlibi - Fórum Permanente das Línguas Brasileiras de Imigração

Forlibi – Fórum Permanente das Línguas Brasileiras de Imigração

GELF

I Seminário de Gestão em Educação Linguística da Fronteira do MERCOSUL

I Seminário de Gestão em Educação Linguística da Fronteira do MERCOSUL

Clique na imagem
Arquivo
Visitantes