O (des)acordo volta a rachar a língua portuguesa
O Presidente dos consensos meteu a língua num vespeiro. Ao reabrir a discussão sobre Acordo Ortográfico, Marcelo Rebelo de Sousa reacendeu os ânimos de partidários e opositores. Aqui não há mesmo consensos possíveis
Texto: Christiana Martins, Com Isabel Leiria
Para quem gosta de gerar consensos, Marcelo Rebelo de Sousa escolheu mal o tema. O acordo ortográfico (AO) continua a mover paixões e a dividir os especialistas e a intenção do Presidente da República de promover nova discussão sobre o documento, caso falhem as vias diplomáticas de ver o texto ratificado por Angola e Moçambique, reavivou os ânimos de defensores e opositores.
Já está tudo a mexer-se no mundo da linguística. Esta terça-feira, o Ministério dos Negócios Estrangeiros dará uma conferência de imprensa sobre as “iniciativas do Dia da Língua Portuguesa e da Cultura da CPLP”, que se comemora na quinta-feira. Um evento que também não ficará imune à polémica.
O “pai” do acordo ortográfico, o linguista João Malaca Casteleiro, diz ao Expresso que está “muito apreensivo” com a possibilidade de reabrir o debate. Embora aceite a hipótese de se proceder a acertos de conteúdo, defende que, em primeiro lugar, os países de língua portuguesa deveriam ratificar o documento e só depois modificá-lo. Porque, sustenta, “num acordo é preciso transigir”.
“Se Angola visse que todos os outros países tinham aprovado o acordo, também acabaria por aderir. O que falta é recorrer à via diplomática, que não tem sido devidamente exercida”, afirma o linguista. Casteleiro avança que Moçambique — país que, juntamente com Angola, ainda não ratificou o AO —, já elaborou o vocabulário ortográfico nacional, elemento considerado essencial para dar seguimento ao acordo, o que, na sua opinião, significa um avanço em direção à adoção da nova ortografia. “Fiquei surpreendido por ver o Presidente meter-se numa questão tão complexa e que será prejudicial ao futuro da língua portuguesa no mundo.”
O ex-vice-reitor da Universidade do Minho e professor jubilado de Literatura Vítor Aguiar e Silva, por sua vez, mostra-se satisfeito com a possibilidade de se voltar a discutir o AO. “É uma intenção bem-vinda porque, do ponto de vista jurídico-formal, a situação era pouco transparente e o fundamental, do ponto de vista linguístico, é que prejudica gravemente a língua portuguesa, afastando-a das línguas europeias (românicas e germânicas).”
O professor reconhece, contudo, que uma eventual revogação do AO trará sempre “graves prejuízos de ordem material, para pais e editoras, e cultural, para as crianças que já se alfabetizaram com as novas regras”. Mesmo assim, “vale a pena suspendê-lo”, afirma Vítor Aguiar, defendendo que, num eventual reexame, deve ser convocada a participação da Academia das Ciências de Lisboa.
O presidente desta instituição de consulta do Governo para questões linguísticas, Artur Anselmo, em nome da Academia, diz ao Expresso que “é propício que se reabra a discussão”. “A academia respeita a opinião individual dos académicos acerca da aprovação, ou não, do AO90. Não lhe compete, por isso, tomar partido sobre uma questão que está longe de suscitar unanimidade dos que usam a língua portuguesa na sua forma escrita. Quando muito, compete-lhe chamar a atenção para a necessidade de um consenso nacional, que, aliás, só poderá ser fruto de reunião alargada entre partidários e adversários do referido acordo, através de instituições representativas da comunidade científica.
Individualmente, Artur Anselmo, também filólogo e linguista, “com 40 anos de serviço à língua portuguesa”, vai mais longe: “Sou favorável ao respeito das ortografias nacionais e o que aconteceu em Portugal foi de uma enorme ligeireza, um ato despótico, porque este não é um problema político nem diplomático, é uma questão científica”. Sublinha ainda que, para adoção do AO90, a academia nunca foi consultada: “Nunca tocou o nosso telefone”.
Carlos Reis, um dos professores cuja imagem ficou mais associada à defesa do acordo, lembra que “a intenção manifestada pelo Presidente da República de reabrir a discussão é ainda vaga e difusa”. Diz que parece estar “inquinada por contradições que são as do próprio prof. Marcelo Rebelo de Sousa acerca do assunto”. Lembra que, “no passado e conforme o Expresso notou, o prof. Marcelo Rebelo de Sousa teve um ‘percurso equívoco’ em relação ao AO – ora rejeitou, ora aceitou”, para concluir que “ficar pela discussão sobre o AO é pouco e é arriscado”.
“É pouco, porque o AO deveria ser entendido como aquilo que nunca foi: um instrumento entre outros (e nem sequer o mais importante), no quadro de uma política de língua com visão estratégica e com capacidade de congregar os esforços e o compromisso de outros países de língua oficial portuguesa; se é nisso que o PR está a pensar, muito bem, porque é isso que lhe compete por força dos poderes que tem. E muito tem a fazer nesse domínio”, conclui Carlos Reis, recordando que, “a este propósito, valerá a pena pensar o que acha o Governo, porque lhe cabem funções executivas que lidam
Fraturas expostas
O tema é de tal forma fraturante que o presidente da Associação Portuguesa de Escritores prefere falar a título individual do que em nome da instituição. José Manuel Mendes diz que, “tal como se encontra, o AO é nocivo e a posição de reponderação, que está por trás da intenção do Presidente, é muito adequada, porque o acordo não deve continuar em vigor”.
Para Edviges Ferreira, presidente da Associação de Professores de Português (APP), “independentemente da posição da APP sobre o acordo ortográfico, seria um descalabro abrir essa questão”. “Neste momento, não há nenhum aluno do 1º ano ao 12º que aprenda e escreva de acordo com a antiga grafia. Todos os manuais escolares estão feitos com as regras do AO. Todos os documentos oficiais foram adaptados. Foram gastos milhares de euros a montar este sistema.” Edviges Ferreira diz que é preciso ser-se “coerente e responsável”: “Se quisessem pensavam nessas questões antes de ratificar o AO ou um ano ou dois depois. Não agora. O debate até pode ser aberto, mas não se justifica voltar atrás. As dúvidas que são levantadas são-no apenas por uma faixa etária mais envelhecida que não aceita estas mudanças”.
No segundo semestre, em setembro ou outubro, um congresso de professores de Português vai reunir partidários e adversários do acordo na Escola Secundária Pedro Nunes, onde o próprio Marcelo estudou. E, sobretudo, explica Rosário Andorinha, presidente da Associação Nacional de Professores de Português (ANPROPORT), o evento vai “lançar as bases para a realização de um referendo sobre o tema”.
A professora explica ainda que “os prejuízos causados por este AO são demasiados e as crianças não podem continuar a ser penalizadas”. Uma das soluções, defende Andorinha, passaria pela adoção de um período transitório, no qual as duas grafias fossem aceites nas avaliações. Mas, antes do congresso e do referendo, a ANPROPORT será autora de duas ações jurídicas contra o acordo, uma em defesa dos professores e outra dos alunos, avançando nos tribunais contra o (des)acordo.