A experiência da Lombardia

O pesquisador Humberto Cunha encerra séria com artigo sobre legislação cultural da região italiana

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O carnaval de Milão: proteção do patrimônio cultural imaterial na região italiana da Lombardia permite paralelos com a legislação brasileira, em especial o caso cearense

O patrimônio cultural intangível da Região da Lombardia, na Itália, passou a ser formalmente salvaguardado a partir de 28 de outubro de 2008, data em que ocorreu a publicação da Lei Regional nº 27, aprovada cinco dias antes. Nela, o artigo 1 revela o âmbito de aplicação e a finalidade e especifica que “a Região, de acordo com as disposições do seu próprio Estatuto e inspirada na Convenção para a Proteção do Patrimônio Cultural Imaterial” , reconhece e valoriza, em suas diferentes formas e expressões, o mencionado patrimônio que se faça “presente na Lombardia ou em comunidade de cidadãos Lombardos que residem no exterior e façam referência às tradições lombardas”.

Essa legislação, que especificava as linhas de ação, definia as formas de a Região intervir e estabelecia as regras financeiras necessárias, teve vigência por oito anos, até que a Lombardia adotou a Lei Regional nº 25, de 7 de outubro de 2016, publicada quatro dias depois, em favor de “Políticas Regionais em Matéria Cultural e sua Reordenação Normativa”. Com efeito, trata-se daquilo que no Brasil é chamado de “Lei Geral da Cultura”, uma vez que se propõe a sistematizar a atuação da Região nessa matéria. Isso significa que a salvaguarda jurídica do patrimônio cultural imaterial passou a ser tratada no contexto de toda a política cultural disciplinada na referida lei, e não isoladamente, como é feito por aqui.

Deste modo, por ser possuidora de uma estrutura que por si só já oferece grande valor comparativo, principalmente pelo tratamento integrado de diversos campos culturais, antes de tratar especificamente do patrimônio cultural imaterial, convém sintetizar a lei lombarda, composta de 46 artigos, os quais integram nove Títulos.

Títulos

O Título I contém as “Disposições Gerais” e nelas são apresentadas as finalidades da Lei e seu âmbito de aplicação; ademais, indicam-se as funções da Região, das províncias e dos municípios (comunas) que a integram; ainda, faz-se o reconhecimento de instituições e locais de cultura, disciplinam-se as atividades de relevância regional e especificam-se quais os organismos participantes das políticas culturais.

O Título II disciplina os “Instrumentos de Planejamento e Organismos Consultivos”, como os planos anual e trienal para a cultura, além de amplos colegiados consultivos temáticos, que são chamados de “Mesas da Cultura”.

O Título III é designado “Bens e Entidades Culturais”; quanto aos bens, há uma disciplina específica para os de interesse arquitetônico, artístico, histórico, arqueológico, paisagístico, arquivístico, bibliográfico e documental, e outra para os que compõem o patrimônio etno-antropológico e patrimônio cultural imaterial, que merecerão mais atenção adiante. Sobre as entidades culturais, veem-se normas relativas a bibliotecas e sistemas bibliotecários; arquivos históricos; museus e sistemas museológicos; áreas arqueológicas e parques; sítios incluídos na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco; ecomuseus; e roteiros culturais. Há, ainda, referência expressa à “Gestão e Valorização dos Bens Culturais de Propriedade Regional”, com normas tópicas sobre o Arquivo de Etnografia e História Social (AESS) e sobre o Arquivo Regional da Produção Editorial e o Centro de Documentação Regional, já existentes.

O Título IV também trata de tema que será oportunamente aprofundado, que é a “Salvaguarda da Língua Lombarda”, promovendo suas variedades locais, sendo indispensável, para tanto, a promoção de consultas aos diretamente interessados. Com essa atitude, a Região se encaixa no movimento europeu emergente do respeito mínimo que é devido à diversidade linguística.

O Título V trata dos valores e atitudes de regência da “Ação Cultural”, especificando a promoção da educação e da cultura; estimulando a experimentação enquanto inovação cultural; fortalecendo a integração europeia; incentivando as empresas culturais e criativas; acautelando os direitos culturais das novas gerações; e difundindo o respeito pelos direitos de propriedade intelectual.

O Título VI trata especificamente da temática do “Espetáculo”, com disciplinas particulares para os que se desenvolvem ao vivo; também para as atividades cinematográficas e audiovisuais, e para os espaços em que uns e outros se desenvolvem.

O Título VII apresenta os “Procedimentos e Instrumentos de intervenção” disponíveis à Região para que ela implemente as políticas culturais; nele são especificadas as modalidades de apoio financeiro; os beneficiários de financiamentos; os planos integrados de cultura; os sistemas de informação cultural; as pesquisas aplicadas à valorização do patrimônio cultural; a garantia de financiamento da experimentação cultural; e um sistema de avaliação das políticas realizadas e/ou omitidas.

O Título VIII refere-se às “Disposições Financeiras”, instituindo um fundo para a cultura e especificando os recursos orçamentários para cada um dos grupos de atividades previstos ao longo da norma.

O Título IX trata das “Disposições Finais e Transitórias”, e nelas institui um observatório cultural; ainda, revoga uma quantidade expressiva de leis que, desde 1974, tratavam esparsamente da temática; e, por fim, fixa normas transitórias entre o antigo sistema e o que se implanta.

Conceituação

Conhecido o contexto legal em que se inserem as normas de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial da Região da Lombardia, convém agora conhecê-las e analisá-las, tomando por base principal o Art. 13 da Lei acima sintetizada, segundo o qual os entendimentos sobre a matéria devem ser sempre adotados de forma coerente com Convenção da Unesco relativa ao patrimônio cultural imaterial e com o Código de Bens Culturais e Paisagem da Itália.

Sob essa estrutura de organização verticalizada e sistêmica, o legislador lombardo reitera que o patrimônio cultural imaterial é compreendido a partir de práticas, representações, expressões, conhecimentos, saberes, bem como as ferramentas, objetos, artefatos e espaços culturais associados a eles, que comunidades, grupos e, em alguns casos, indivíduos reconhecem como parte de sua herança, sua história e sua identidade com particular consideração para: tradições e expressões orais, incluindo história oral, narrativa e toponímia (nomes dos lugares); música e artes cênicas tradicionais, representadas de forma estável ou itinerante, bem como expressão artística de rua; costumes sociais, eventos rituais e festivos, manifestações históricas; saberes, práticas, crenças relacionadas ao ciclo do ano e da vida, à natureza e ao universo; saberes e técnicas tradicionais relacionados com atividades produtivas, artesanais, comerciais e artísticas.

Em termos da atuação espacial, é interessante notar que, por óbvio, como já o fazia a Lei de 2008, a Região promove e apoia o conhecimento, a identificação, a preservação e o aprimoramento dos bens etno-antropológicos e do patrimônio cultural imaterial presente em seu território, mas também fora dele, onde quer que haja comunidades de cidadãos lombardos que desenvolvam atividades relacionadas ao objeto de proteção legal.

Dentre os meios de salvaguarda, estão os instrumentos e apoios referidos acima (ver síntese dos Título VI e VII), mas também, especificamente, a criação de inventários do patrimônio imaterial e o favorecimento de seu registro nas listas preparadas pela Unesco, realizando uma função de consultoria e de acompanhamento de processos que correm nas instituições nacionais e internacionais responsáveis pela temática.

Língua

Um patrimônio cultural imaterial específico é tratado apartadamente pelo Art. 24, que é a língua lombarda em todas as suas variações locais, promovendo-lhe a revitalização, o aprimoramento e a disseminação, o que deve ser feito, através da realização de atividades e reuniões destinadas a difundir o seu conhecimento e uso; da criação artística; da divulgação de livros e publicações, da organização de secções específicas em bibliotecas públicas de entidades locais ou de interesse local; da publicação e programas de rádio e televisão; e da pesquisas sobre topônimos. Ademais, a Região reforça e promove todas as formas de expressão artística do patrimônio linguístico, como espetáculos de teatro tradicional e moderno em língua lombarda, música folclórica da Região, teatro de fantoches e bonecos, poesia, prosa literária e cinema na referida língua.

Na seara acadêmica, a Região promove, também em colaboração com as universidades da Lombardia, os institutos de pesquisa, as instituições do sistema regional e outros entes culturais públicos e privados qualificados, a pesquisa científica sobre o patrimônio linguístico histórico da Lombardia, incentivando todas as atividades necessárias para promover a disseminação da língua lombarda na comunicação contemporânea, inclusive através da inserção de neologismos lexicais (palavras novas), a harmonização e codificação de um sistema de transcrição; realizando atividades de arquivo e digitalização; e promovendo diretamente ou por meio de concursos e bolsas, textos em verso ou prosa, obras literárias, técnicas e científicas, bem como a tradução de textos em língua lombarda e a sua divulgação em formato digital.

A legislação apresentada deu suporte normativo para que até agora fossem reconhecidos como patrimônio cultural imaterial lombardo 101 bens, de algum modo salvaguardados, nos domínios da arte e espetáculo; natureza e universo; oralidade; ritualidade; e saberes artesanais, observando-se a preponderância do reconhecimento de atividades coletivas, muitas das quais lembram bem que também se fazem presentes na realidade do Brasil e do Ceará, como distintos carnavais, práticas agrícolas tradicionais, festas profanas e religiosas, atividades de pífaros e de marionetistas.

Humberto Cunha Filho 
Professor do PPG-Direito da Universidade de Fortaleza (Unifor), pesquisador visitante da Universidade de Milão – Bicocca  e advogado da União

Fonte: Diário do Nordeste

 

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