“Indianos acham que português é língua que cria boas oportunidades de carreira”

Almoço com Shiv Kumar Singh, professor de Estudos Indianos na Universidade de Lisboa e autor do Dicionário Hindi-Português-Hindi

Estou já sentado no Natraj, restaurante indiano na lisboeta rua do Sol ao Rato, quando chega Shiv Kumar Singh, que, sabedor, foi quem escolheu o local. Não está atrasado o professor de Estudos Indianos e de Hindi na Faculdade de Letras, fui sim eu que cheguei um pouco antes, minutos suficientes para perceber pela ementa que se trata de um restaurante de comida do Norte da Índia, tão diferente da do Sul do país. Recebo logo um presente: o Dicionário de Hindi-Português-Hindi que Singh publicou em 2017 (o ano da visita do primeiro-ministro António Costa à Índia e de Narendra Modi a Portugal) e que é o primeiro por cá editado dedicado à mais falada das línguas indianas. No passado, pela ligação histórica à costa do Malabar e a Goa, foi dada primazia aos dicionários de Malaiala-Português e de Konkani-Português, explica o meu convidado, num português fluente.

O português por destino

Comecemos, então, pela língua portuguesa. Como é que um jovem indiano nascido no grande estado do Uttar Pradesh (200 milhões de habitantes!) e que estava a tirar um mestrado em Informática em Nova Deli começa a aprender português? “Foi de repente. Como na Universidade Jawaharlal Nehru não se é admitido em nenhum curso sem exame de ingresso, fiz exame para italiano e português, depois de me preparar. Tive boa classificação nas duas provas, mas não se pode fazer dois cursos de línguas ao mesmo tempo e então tive de perguntar a um meu colega veterano qual devia escolher. Ele disse que italiano tinha muita gente e que ia ter mais êxito em português e eu segui a palavra dele”, conta Singh, hoje com 37 anos. Isto passou-se há pouco mais de uma década e em 2008, graças a uma bolsa do Instituto Camões, a única dada então a um indiano, aconteceu a primeira visita a Portugal e o início de uma ligação à Universidade de Lisboa que perdura.

Estamos a demorar na escolha da comida. Fico a saber que Singh, um hindu, é vegetariano. Conta-me que, porém, só conseguiu seguir uma dieta vegetariana depois de sair de casa e ir estudar para Nova Deli, porque os pais “insistiam muito que comesse carne para crescer mais forte”. Digo que vou alinhar também na opção vegetariana e que confio nas suas escolhas. Bhindi Masala e Palak Panner, acabam por ser os pedidos. Singh diz gostar especialmente do primeiro prato, que é à base de quiabos; o segundo, com espinafres e queijo, agrada-me mais, mas provo o Bhindi Masala e cada vez estou mais convencido de que graças à magia das especiarias um omnívoro pode dar-se bastante bem numa aventura pelas iguarias vegetarianas da gastronomia indiana.

De regresso ao tema da ligação a Portugal, digo a Singh, casado com uma indiana que também estudou português, que se não fosse a paixão partilhada pela língua de Camões e provavelmente nem sequer se teriam conhecido. “Sim, exatamente”, confirma, sorrindo. “Ou talvez isto tudo tenha sido destinado à volta do português. Por isso é que digo que eu não escolhi o português, foi o português que me escolheu”, acrescenta. Peço pormenores:”Dimple era minha veterana na universidade em Deli, no curso de português, e no início quando ela falava eu sonhava falar português como ela. Foi uma das razões da amizade nossa, ficava com ela para praticar português, ela corrigia-me. Depois eu fui o primeiro a conseguir a bolsa do Instituto Camões e vim para cá para estudar o curso superior de Cultura e Língua Portuguesas e no ano seguinte tive contrato de professor na Faculdade de Letras e ela também consegue bolsa anual da Fundação Oriente para estudar Língua e Cultura Portuguesas na Universidade de Coimbra”.

Foi preciso ainda uma segunda bolsa, agora do Instituto Camões, para Dimple Rajput Singh conseguir ficar de vez em Portugal, para fazer mestrado, mas aconteceu. O caloiro e a veterana acabaram por casar e têm um filho, Vedansh, um menino de quatro anos, nascido em Portugal, português de nacionalidade. A família fixou-se em Lisboa e hoje vive em Campolide. Aproveito a simpatia de Singh e o facto de já nos conhecermos de atividades organizadas pela embaixada da Índia, para o provocar um pouco, perguntando se a mulher ainda fala melhor português, como nos tempos da universidade em Deli. “Sim, em algumas coisas. A pronúncia dela é muito melhor do que a minha”, responde, bem-humorado, mas também modesto, porque o português que o meu convidado fala é mesmo bom.

Os pais contam muito na hora de casar

Servimo-nos de um segundo copo de Cobra, uma cerveja indiana muito suave. E Singh, sempre delicado, oferece-me mais uma porção de Bhindi Masala, antes de se servir. Mostra-me como se pode usar o roti, pão indiano, como talheres, explicando que o truque está na posição dos dedos, sobretudo do polegar. Tento, mas acabo por voltar ao garfo e faca. Admito que nas três vezes que estive na Índia, sempre em reportagem para o DN, várias foram as vezes em que não tinha alternativa ao roti, como aconteceu numa ida a uma aldeia do estado de Haryana para entrevistar o antigo primeiro-ministro Chandra Shekhar.

Comento com Shing que além das reportagens na Índia entrevistei também em 1998 o então presidente Kocheril Raman Narayanan, de visita a Lisboa para a Expo98. E que foi uma conversa complicada por causa de temas como as castas (Narayanan era o primeiro intocável, ou dalit, a chegar à chefia do Estado) ou a memória de Vasco da Gama, que a exposição internacional celebrava, pois acontecia exatamente 500 anos depois da chegada do navegador a Calicute, na tal costa do Malabar, o atual Kerala. O académico indiano admite que as castas continuam a ter muita força na Índia e até me dá um exemplo curioso, que acontece nessa região onde os portugueses chegaram antes dos outros europeus: “No Kerala, há cristãos que casam com hindus apesar da diferença de religião, porque sabem que apesar da conversão são da mesma casta”.

Comento recordar-me de ler a edição impressa de jornais como o Times of India, o maior do mundo em língua inglesa, que traziam pequenos anúncios de casamento, onde se exigiam certas qualidades ao noivo ou à noiva. Singh admite que, tirando nas grandes cidades, onde por vezes as relações não são oficializadas, a opinião da família continua a ser decisiva sobre com quem um filho ou filha se casa. “Não se trata de impor um noivo ou uma noiva. Podemos sempre recusar quem é sugerido, mas no fim tem de ser alguém que os pais achem adequado”. No seu caso, a situação foi um pouco diferente, confessa. Ele e a mulher conheceram-se na universidade na Índia e acabaram por se aproximar em Portugal, tudo sem a influência habitual dos pais. “Mas antes de perguntarmos às nossas famílias se estavam de acordo com o casamento, combinámos que aquilo que decidissem nos respeitaríamos”, conta.

Português língua de oportunidades

Depois de o português ter durante décadas perdido terreno em Goa, onde o inglês foi-se afirmando a par do konkani como língua do estado, hoje há, porém, um número crescente de indianos a aprender português e não só na antiga colónia, fico a saber durante a conversa. Diz-me Singh que “há três universidades em Deli e uma em Goa em que há curso de português. Em Goa até pode fazer mestrado em português”. E isto, acrescenta o meu companheiro de almoço, porque “acham que é um língua que cria boas oportunidades de carreira. Ultimamente um bocado menos por causa da crise no Brasil e em Angola, mas muita gente está a aprender português para ter uma oportunidade de trabalhar nestes mercados. Também há muitas empresas que estão a transferir os seus escritórios e call-centers para a Índia e a usar o português como uma das línguas. Por exemplo, a American Express, a sua secção de cartão de crédito, está a controlar o mercado português a partir da Índia”.

Chega a hora da sobremesa. Escolho kulfi de pistáchios, um gelado típico indiano tão fresco como saboroso, servido em pequenos cubos. Singh aceita dividir comigo a dose, mas acaba por tirar apenas um ou dois pedacinhos. Elogio a coragem que teve de publicar um dicionário de Hindi-Português-Hindi, de utilização por uns potenciais 700 milhões de pessoas, pois há cerca de 500 milhões de falantes de hindi e a estes somam-se mais de 200 milhões de lusófonos. E uma palavra que deu muito trabalho a traduzir, explica o autor, foi “saudade”, porque “há significados vários neste contexto em hindi mas pôr um termo fixo é para nós difícil”.

Aproveito que falamos de saudade e pergunto a Singh se ao fim destes anos todos longe da Índia e a viver em Portugal se sente integrado. “Não pareço português, mas uma coisa que me integra na sociedade é que abrindo a boca e falando bem português estão estabelecidos aqueles códigos de afinidade e sinto-me logo integrado. Claro que a minha posição na universidade também ajuda”. E acrescenta que comparado com outros países europeus, “Portugal continua a ser bastante aberto, mais acolhedor. A minha última viagem foi à Holanda e senti isso”. Discordo de Singh quando diz que não parece português, basta pensar em tantos milhares de portugueses que há de origem indiana, desde o próprio primeiro-ministro até figuras da cultura ou dos negócios, muitos deles goeses, outros de origem gujarate. Ri-se.

Se a comunidade indiana é uma herança dessa ligação com mais de meio milénio iniciada em 1498 por Vasco da Gama, “o intrépido marinheiro que todos os alunos na Índia conhecem”, como disse há dias ao DN, Nandini Singla, embaixadora em Lisboa, também vem de tempos antigos um grande encanto dos portugueses pelo grande país da Ásia do Sul. Singh fala mesmo de fascínio: “têm fascínio, quer queiramos quer não. Tanto no contexto da Índia como de Portugal somos relacionados por várias razões históricas. E ainda neste último curso de verão dedicado à Índia tivemos 43 inscrições e o perfil dos alunos também foi interessante: alguns estudantes universitários, mas também investigadores, diplomatas, professores, reformados”.

Peço a conta e fico surpreendido com o preço, pela positiva. Percebo que tivemos ofertas várias, desde a salada à cerveja de litro. Singh comenta comigo que conhece o dono, Palwinder Singh, um sikh. Aliás, aproveito para esclarecer uma dúvida: Singh, que quer dizer leão, pode ser nome de hindu e nem todos os sikhs são Singh, fico a saber graças ao convidado.

Mais ricos e mais consumistas

Hindus, que são a grande maioria dos 1300 milhões de indianos, mas também muçulmanos, cristãos, sikhs, budistas, jainistas, zoroastristas, até uma ínfima minoria de judeus. A diversidade é a regra na Índia, que nos últimos anos tornou-se um caso de sucesso económico, com taxas de crescimento semelhantes às da China ou superiores. Singh diz-me que todos os anos visita a sua pátria e que as transformações são constantes, às vezes com consequências negativas. ” A minha última visita foi em Abril. A cada viagem, encontro sempre uma Índia diferente. O crescimento económico está a melhorar as condições de vida para milhões de pessoas mas está também a criar problemas para o país. Um dos maiores problemas é a poluição. Em Abril o que me incomodava mais não era a humidade ou o calor, era a poluição. Aquilo está a chegar a um nível alarmante”. Admite que a vida dos próprios pais reflete essa mudança: “tradicionalmente a sociedade indiana é muito poupada. Há 10 ou 15 anos os meus pais pensavam duas vezes em gastar, hoje não. São mais consumistas. Também tem que ver com facto de a capacidade financeira ser superior ao que era há 10 anos. Mas isto está a acontecer com toda a gente. Ainda há muita gente pobre mas cada vez mais gente têm telemóvel ou vai ao cinema. Cada camada da sociedade indiana está a ser influenciada pelo crescimento económico. Se virmos os dados da ONU, nos últimos 20 anos a Índia conseguiu retirar centenas de milhões do limiar da pobreza – claro que ainda há muito para fazer”

Diversidade e democracia

Insisto na questão da diversidade, marca tão forte da Índia e que explica, por exemplo, que a par do hindi haja outras línguas com grande tradição como o bengali (do Nobel Tagore), o penjabi ou o tâmile. Continua a ser a realidade, apesar das críticas que se fazem à emergência do nacionalismo hindu, ideologia do atual partido no governo? Singh reflete um pouco e responde: “sim, continua a ser assim. A diversidade é a regra e a aceitação dessa diversidade é também a regra. No meu caso, tenho alguns amigos de infância que são muçulmanos e não fizemos nunca esta diferença na linha das religiões. Somos só amigos, não faço questão de mostrar o meu lado hindu nem eles o lado muçulmano deles. Não é um caso singular, há milhões de casos destes que mantêm a Índia unida. Claro que às vezes há confusões e motins, mas mesmo em termos de governação as várias religiões estão bastante bem representada. Na ONU o embaixador indiano é muçulmano, por isso não podemos dizer que não há espaço para os muçulmanos. E há tantos outros casos. Este governo é acusado de ser nacionalista, mas claro que o discurso político é uma coisa e a prática é outra coisa. O que estamos a ver é que a Índia continua a ser uma grande democracia, um país bastante tolerante e a avançar depressa.”

Fonte: Diário de Notícias

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