Morte de anciãos por covid-19 ameaça línguas indígenas do Brasil
“Estamos muito preocupados”, lamenta líder indígena. “Eles têm tanto a contar.”
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Crianças do povo guarani mbya, como Manuela Vidal, aprendem sobre a língua e a cultura em escolas públicas, mas a pandemia de Covid-19 obrigou o fechamento das escolas. FOTO DE RAFAEL VILELA
Eliézer Puruborá, um dos últimos indígenas que cresceu falando a língua puruborá, morreu em decorrência da Covid-19 no início deste ano. Sua morte, aos 92 anos, reduziu ainda mais o pouco domínio que seu povo tem da língua.
As línguas indígenas no Brasil estão ameaçadas desde a chegada dos europeus. Apenas cerca de 180 das 1,5 mil línguas que outrora existiram ainda são faladas – a maioria é utilizada por menos de mil pessoas. Alguns grupos indígenas, sobretudo os com populações maiores, como a etnia guarani mbya, conseguiram preservar a língua materna. Mas as línguas de grupos menores, como a dos puruborás, atualmente com apenas 220 indivíduos, estão à beira da extinção.
A pandemia deixa a situação, que já é precária, ainda pior. Estima-se mais de 39 mil casos de coronavírus entre indígenas brasileiros, incluindo seis entre os puruborás, e até 877 mortes. A Covid-19 tira a vida de idosos como Eliézer, que costumam ser os guardiões dos idiomas. O novo coronavírus também força o isolamento dos membros da comunidade, impede os eventos culturais que mantêm as línguas vivas e prejudica o lento progresso da preservação da língua (O coronavírus se aproxima perigosamente dos “indígenas flecheiros”, isolados na Amazônia”).
Para os puruborás, preservar língua e cultura é uma luta de longa data. Há mais de um século, seringueiros atuando com o apoio do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão federal que administrava assuntos indígenas, chegaram às aldeias de Rondônia, na Amazônia. Colocaram homens e meninos indígenas, incluindo Eliézer, para trabalhar na coleta de látex dos seringais e distribuíram mulheres e meninas para seringueiros não indígenas como prêmios. O português era a única língua autorizada nos locais (Mulheres indígenas lutam para não perderem a guarda de seus filhos no Brasil).
“Tudo que fosse relacionado à nossa cultura era proibido”, afirma Hozana Puruborá, que se tornou a líder dos puruborás após a morte de sua mãe, Emília. Emília era prima de Eliézer. Quando crianças, os dois primos, ambos órfãos, cochichavam em puruborá quando não havia ninguém por perto para ouvir. “Mantiveram a língua viva em segredo.”
Em 1949, o SPI declarou que não havia mais indígenas na região porque haviam sido “miscigenados” e “civilizados”. Oficialmente, o povo puruborá havia desaparecido.
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O SARS-CoV-2 ameaça a vida de anciãos como Hortencio Karai, com 107 anos, que costumam ser os guardiões da língua de uma cultura. FOTO DE RAFAEL VILELA
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Adolescentes como Richard Wera Mirim, com 17 anos, e seus amigos também se apegam à cultura, conta a líder comunitária Sonia Ara Mirim. “O nhandereko — o modo de vida guarani – vive dentro de nós”, explica ela. “A criança pode passar o dia inteiro no celular, no computador, vendo televisão, mas ninguém tira nosso modo de vida de nós.” FOTO DE RAFAEL VILELA