O país com mais de 10 línguas oficiais
O rancho poeirento de Traveller’s Rest fica a 260 km da Cidade do Cabo, no seio da região montanhosa da cordilheira de Cederberg.
As montanhas se elevam majesticamente e formam uma proteção natural para a área de cultivo de cítricos ao norte. Essa barreira natural mantém a chuva – e a maioria dos turistas – no sul.
Para além dela, a terra vira uma paisagem quase marciana de rochedos esculpidos pelo vento, com laranjeiras e habitada por leopardos e babuínos.
Algumas das pinturas feitas por nativos San datam de 8 mil anos atrás.
É um lugar conhecido como Rocklands (algo como “a terra das rochas”), coração da região dominada pela língua africâner, que resultou da interação de colonos holandeses com locais e falantes de outras línguas indo-europeias nesta parte do sul da África.
Colonização
Muitos das fazendas nessa região já existiam nos anos 1740 na época dos Trekboers, colonos holandeses de fé calvinista que depois virariam apenas bôeres.
Frida, a atendente que me cumprimenta quando retornamos à pousada, trata os visitantes por “you people”, como na saudação “oi, pessoas”.
“You people” é uma expressão comum na África do Sul, uma tradução direta do africâner “julle mense”.
Ambas as línguas também são inseparáveis da própria história africana. Da mesma forma que se influenciam uma à outra, foram enriquecidas pela migração e o contato forçado entre colonizadores e colonizados.
Exprimem a personalidade de todos que passaram por estas terras ao longo dos tempos: são uma colcha de retalhos de mundos distintos.
Mas nenhuma das línguas coloniais está entre as mais faladas (como primeira língua) nesta nação de 11 idiomas. No censo de 2011, o isiZulu apareceu como a língua mais falada pelos sul-africanos em casa, seguida pela xhosa.
O africâner era a primeira língua de 13,5% dos sul-africanos, enquanto o inglês era a língua nativa de apenas 9,6% da população.
Apesar disso, o inglês acabou virando a língua franca do país, amplamente falado e compreendido, às vezes em variantes próximas de um dialeto enriquecido pelas línguas nativas da região.
Disputa europeia
Durante o domínio holandês na colônia do Cabo, nos séculos 17 e 18, missionários britânicos, de outros países europeus e americanos levaram o inglês às comunidades africanas.
No início do século 19, após a segunda guerra dos bôeres (1899-1902) e a tomada britânica da colônia do Cabo, o inglês se tornou a única língua do governo e do comércio.
Isso marginalizou os falantes do holandês e criou um ressentimento “que ainda se nota em alguns grupos de falantes de africâner até hoje”, segundo Penny Silva, autor de um dos principais estudos da língua inglesa na África do Sul.
A independência sul-africana, em 1909, significou a ascendência da cultura e da língua africâner, proclamada língua oficial em 1925.
Durante o apartheid (literalmente “separação”, em africâner), entre 1948 e 1994, o inglês foi adotado como língua do partido de Nelson Mandela, o Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em inglês) – e logo visto como a linguagem da liberdade para muitos sul-africanos oprimidos.
Favelas vivendo sob o apartheid tinham acesso a uma educação falha e normalmente transmitida em uma das nove línguas africanas que, junto com o inglês e o africâner, formam parte do conjunto de línguas oficiais do país.
Línguagem e política
Em 1996, apenas dois anos após o fim oficial do regime de discriminação, Penny Silva publicou sua obra que se tornaria uma referência nesse campo de estudo: A Dictionary of South African English on Historical Principles, ou em tradução livre, “Dicionário de Inglês Sul-Africano baseado em Princípios Históricos”.
A obra procurou definir o inglês sul-africano segundo seu contexto histórico e político. Mas criou polêmica, na medida em que as palavras foram, elas mesmas, instrumentos de opressão no país.
Silva diz que muito do trabalho de pesquisa foi feito nos anos 1970 e 1980, documentando a etimologia da língua usando dezenas de livros proibidos pelo regime.
“Quando publicamos o dicionário, em 1996, o governo Mandela estava no poder, portanto todos os livros que usamos podiam ser referenciados no dicionário”, disse Silva.
“Havíamos guardado citações em lugares secretos esperando o dia de publicá-las.”
Hoje, o africâner ainda é amplamente falado na região de Cederberg, onde muitos moradores mais velhos sequer falam inglês. Certo domingo, em Traveller’s Rest, um grupo se reunia para conversar acompanhados de chá de rooibos, o arbusto local, e falar na sua língua.
Já a geração mais jovem, que abraçou a globalização e está mais interessada em capitalizar nos ganhos do turismo – a região virou um destino para escaladores de rocha -, fala inglês fluentemente.
“Devo admitir que, se não fossem os turistas, estes seriam tempos de desespero para os trabalhadores do rancho”, diz o proprietário de Traveller’s Rest, Charité van Rijswijk. “Estamos na pior seca da região em 130 anos.”
Mistura charmosa
Conversando com van Rijswijk, confesso ter uma certa queda pela charmosa estrutura formal do inglês sul-africano. Como australiana, percebo que as contrações da língua aqui não são tão comuns quanto no inglês da minha terra.
Silva sugere que isso provavelmente se deve ao fato de o inglês ter sigo uma segunda língua por aqui.
A língua é carregada de termos de origem africâner, portuguesa, indiana e malaia, sem contar as influências das línguas nativas.
“Lekker”, disse van Rijswijk certo dia, quando o convidei para o almoço. A palavra significa, literalmente, “delicioso”, mas seu uso se expandiu tanto que ultrapassou o contexto ligado à comida. Sua conotação é como o “legal” do português brasileiro – termo que também é aplicado de maneira bastante diferente do significado literal.
Meus ouvidos australianos se aguçavam ao ouvir palavras como “bakkie” em vez de “pick-up truck” (picape); “braai” no lugar de “barbecue” (churrasco); “lank” para se referir a uma grande quantidade (“lank braai”, por exemplo). Todas palavras emprestadas do africâner.
“Hey bru (brôu): Howzit (como vai)!”, cumprimentou-me Doug, durante uma visita ao acampamento de Pakhuys para participar de um churrasco.
Veio chegando com sua “dumpie” (cerveja) na mão e espero que não tenha bebido muito e tido uma “babalaas” (ressaca) no dia seguinte.
Geração ‘arco-íris’
Assistindo à nova geração da “nação arco-íris” gracejando e fazendo piadas enquanto o churrasco ficava pronto, não pude deixar de pensar na relação entre os jovens que nasceram depois de 1994 e a língua que eles falam.
O dicionário de Penny Silva, nesse contexto, é um instrumento de mudança política.
Em certo momento, uma “disputa” surge do outro lado da festa. “Ei, esse é o meu jantar, seu ‘skollie’!”
De alguma maneira, o grego skolios (criminoso) também entrou no léxico local.
É um falar tão “arco-íris” quanto a composição étnica e a geografia humana da África do Sul atual.
Os visitantes se deparam com línguas que, no passado, competiam entre si. Mas que hoje se influenciam umas às outras, criando resultados que são únicos do seu tempo e espaço – exclusivamente sul-africanas.
- Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site da BBC Travel
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