Em quase 20 anos, 4 mil surdos foram inseridos no mercado de trabalho em Maceió
Comunidade surda ainda tenta driblar o preconceito, que sempre bate à porta; associação tenta desmistificar conceitos
E quem disse que pessoa surda não pode se comunicar de forma perfeita e, inclusive, atuar no mercado de trabalho? O pensamento filosófico de que “o trabalho dignifica o homem” precisa ser extensivo para todo aquele que, independentemente da deficiência, lança-se para ultrapassar as barreiras da falta de comunicação através do diálogo com o outro, ainda que o preconceito persista. Em quase 20 anos, quatro mil surdos foram inseridos no mercado de trabalho em Maceió, após conhecer a Língua Brasileira de Sinais (Sinais), o segundo idioma mais falado no país.
A reportagem foi conferir, de perto, o resultado desse engajamento profissional, fruto de um trabalho desempenhado pela Associação dos Amigos e Pais de Pessoas Especiais (AAPPE), cuja sede funciona no bairro da Jatiúca, em Maceió, e que terá sua estrutura ampliada na metade deste ano.
A titular do sonho de criação da AAPPE é Iraê Cardoso, que preside o local. Em sua fala, por alguns momentos embargada devido à emoção de atender aos anseios de pessoas com várias deficiências, ela relata que a morte de um irmão surdo, aos 15 anos, gerou a descoberta do projeto.
“Cheguei aqui em 1992, em uma estrutura completamente acanhada. Não tínhamos muito a oferecer, mas já oferecíamos algo, e isso era de grande valia. Porém, eu queria radicalizar os atendimentos e construir a história da comunicação dos surdos. A partir daí, formamos professores para ensinar aos surdos essa língua maravilhosa, que é a Libras. Fomos responsáveis pela formação dos primeiros intérpretes aqui no estado, e, no ano de 1999, encaminhamos os 30 primeiros surdos para uma rede de supermercados. Com o trabalho intenso, chegamos hoje à marca de quatro mil surdos que já foram empregados”, comenta a presidente, lamentando o fato de muitos não estarem mais atuando por motivos diversos.Iraê pontua que, no ano passado, cerca de 100 surdos conseguiram o tão sonhado emprego, e a meta, agora, é encaminhar mais 250 até o final do ano, para empresas dos mais diversos ramos. Para a presidente da Associação, este trabalho fez com que Alagoas fosse o 6º estado do país a reconhecer a Libras como idioma oficial.
“Não podemos esquecer o apoio incondicional de algumas empresas que aceitaram os surdos em suas dependências, aderindo à ideia e quebrando os preconceitos que atrasam, que destroem indivíduos, famílias. Oferecemos a experiência da diversidade para os funcionários, e a sociedade é feita disso, do pluralismo”, destacou.
De acordo com a psicóloga e coordenadora de Mercado de Trabalho da AAPPE, Aline Trindade, é necessário que a população aprenda a Língua Brasileira de Sinais, considerada a segunda mais falada no país. A profissional lamenta que a disseminação desta língua ainda esbarra no preconceito dos que não conhecem ou não querem nenhum contato com ela e seus falantes.
“A estimativa é de que, em um ano, mais de duas mil pessoas na sociedade em geral aprendam a Língua de Sinais e se insiram no mercado. No ano passado, fechamos parceria com 31 empresas, mas é preciso caminharmos mais, porque o preconceito bate à porta sempre. Tem muita gente que cria dificuldade, e isso tende a deixar o surdo no limbo, à margem de tudo. Esquecemos, no entanto, que eles têm as mesmas capacidades que nós temos e podem desenvolver diversas habilidades. Para isso, tanto eles quanto empregadores precisam se dedicar, ter disposição para aprender e não ter medo do desconhecido”, explicou a psicóloga.
Dentre as empresas parceiras da instituição, está a Santa Casa de Misericórdia de Maceió. Nos últimos meses, a unidade de saúde realizou capacitações, e profissionais surdos conquistaram espaço em suas dependências. Dois colaboradores foram os primeiros beneficiados com os efeitos dos treinamentos, ou seja, conquistaram uma vaga no hospital. Um foi designado para atuar como costureiro no setor de Rouparia enquanto o outro como balconista de farmácia.
Em entrevista à Gazetaweb, o surdo Leandro Macário esbanjava felicidade ao entregar um currículo e saber que tem potencial para trabalhar com serviços gerais na própria Associação. “Já sofri preconceito, muita gente desprezando quando ia entregar currículos, mas, graças a Deus, consegui um trabalho”, comentou Leandro, falando em Libras.
Surdos dialogam com ouvintes sobre mercado de trabalho
Imagens: Jobison Barros
O coordenador do curso de Libras da Associação, Jerlan Pereira Batista, externou que a maior dificuldade enfrentada pelos alunos é a comunicação direta com o professor, que é surdo, uma vez que, no início, os estudantes ainda estão se acostumando com esse contato. Porém, à medida que o contato aumenta, a dificuldade diminui, fazendo com que a comunicação flua normalmente.
“Quanto ao mercado de trabalho, vejo como uma iniciativa importante das empresas disponibilizar a acessibilidade ao surdo, pois, se o funcionário aprende, ao menos, o básico da comunicação, conseguirá se comunicar e conversar com o surdo que chega em qualquer um dos espaços sociais, como loja, clínica, hospital, escola, banco etc”, expôs Jerlan.
INSTITUTO BILÍNGUE
E por falar em extensão da Associação, um novo prédio vai abrigar o Instituto Bilíngue de Qualificação e Referência em Surdez, situado na antiga Avenida Amélia Rosa, na Jatiúca. O espaço, que será um centro profissional, deve começar as atividades em julho. O instituto visa capacitar a comunidade surda, além de preparar empresas e promover cursos de Libras para qualquer pessoa que queira simplesmente aprender a Língua de Sinais.
A associação oferece cursos duas vezes por ano, nas modalidades iniciante, básico, intermediário, avançado e tradução/interpretação. A procura maior se dá nos três primeiros níveis, com as turmas funcionando temporariamente na unidade AAPPE, no Farol. Com a inauguração do IRES, as aulas serão ofertadas lá.
LÍNGUA OFICIAL
No último dia 23, o país celebrou o Dia Nacional da Língua Brasileira de Sinais, instituído principalmente como alerta para as grandes dificuldades em acessibilidade que esses cidadãos enfrentam, da socialização ao mercado de trabalho.
O sistema de Libras é considerado pelas comunidades surdas como sua língua materna, antes mesmo do idioma nativo. Ao contrário do que muita gente pensa, não se trata de uma linguagem composta apenas por gestos e mímicas: apresenta uma série de palavras, sinais e expressões que formam uma estrutura gramatical e semântica própria. É um meio de comunicação e interação social, que abre as portas para oportunidades pessoais e profissionais.
Surdo relata preconceito sofrido em empresa
Imagens: Jobison Barros
Somente em 2002, por meio da Lei nº 10.436, o método passou a ser reconhecido como meio legal de comunicação e expressão. A regulamentação ocorreu em 2005, quando um decreto presidencial incluiu, dentre suas determinações, a inserção da Língua Brasileira de Sinais como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior.
O decreto prevê, ainda, que a Libras seja ensinada na educação básica e em universidades por docentes com graduação específica de licenciatura plena em Letras.
Vídeo mostra importância da Língua Brasileira de Sinais
Imagens: Divulgação
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