Domínio da língua escrita dificulta inclusão de surdos na universidade
Domínio da língua escrita dificulta inclusão de surdos na universidade
Por Igor Truz e Giovanna Bellini, Redação JC/USP
Diferenças no processo de aprendizado entre português e língua brasileira de sinais são obstáculos adicionais para acesso de surdos ao ensino superior convencional
As palavras escritas também são mudas. Ao menos para grande parte dos surdos. Apesar de não ser de conhecimento geral, pessoas com deficiência auditiva não sabem, necessariamente, ler e escrever na Língua Portuguesa. Idiomas oficiais do Brasil, a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e o Português são duas línguas diferentes. Enquanto, mesmo na escrita, o Português é processado a partir de sons, a Libras trabalha exclusivamente com a comunicação visual.
“A leitura e escrita do Português são baseadas nas ideias dos sons do Português e por isso estão ligadas a esse processamento de linguagem baseado em experiências auditivas. Isso não ocorre na mente de pessoas surdas como ocorre na mente de pessoas ouvintes e, por isso, é tão difícil para o surdo ler e escrever”, explica Felipe Barbosa, professor do Departamento de Linguística da FFLCH e responsável pelas disciplinas obrigatórias de Libras para as licenciaturas e para o curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina.
A dificuldade implica, inevitavelmente, em obstáculo adicional para a entrada e permanência de surdos no ensino superior convencional. Após pesquisa do Jornal do Campus, apenas um estudante surdo foi localizado pela reportagem com matrícula regular na USP. O aluno não quis se identificar.
“A questão da língua escrita é complicada, pois mesmo na legislação brasileira, a libras não se superpõe ao português. Então, está claro que é necessária a proficiência no português escrito [para cursar o nível superior]. Imagine um texto interessante, um documento legal. Um vídeo Libras nunca vai substituir um documento escrito. Para ganhar conhecimento, um aluno de uma universidade tem que conseguir ler e escrever. A Fuvest é toda baseada em interpretação de texto”, afirma Lúcia Filgueiras, ex-coordenadora executiva do USP Legal, programa responsável pela articulação de ações para a inclusão de alunos e funcionários com deficiência na Universidade.
De acordo com a legislação vigente, o sistema educacional brasileiro deve garantir a inclusão de pessoas com deficiência em todos os níveis. Na educação básica, as escolas devem ser inclusivas e alunos com deficiência devem frequentar o mesmo espaço e as mesmas aulas que todos os outros estudantes. Cabe às escolas garantir a inclusão, com todos os instrumentos necessários para tanto.
“Para você passar na Fuvest, a linguagem exigida é o português escrito. Isso é um grande problema para o acesso dos alunos surdos, que vai diminuindo ao longo de toda a escola inclusiva. O problema vai sendo resolvido devagarzinho, ao longo de toda a vida escolar. Quando o indivíduo chega no ponto de prestar vestibular, ele já tem outra estrutura”, diz Lúcia, que é professora do departamento de Engenharia Elétrica da Escola Politécnica.
Para contribuir com a equidade no acesso ao sistema educacional, na FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), a Comissão de Cotas do PPGAS (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) propôs à USP a reserva de 5% das vagas do programa para pessoas com deficiência, além de reservas de vagas para pretos, pardos e indígenas. O documento já recebeu parecer positivo de todas as devidas instâncias da USP e aguarda, desde março, o sinal verde da Câmara de Normas da Pró-Reitoria de Pesquisa para ser aprovado em caráter terminativo.
“A aprovação dessa proposta representa um passo importante dentre várias ações e políticas que precisam contemplar as pessoas com deficiência, inclusive as pessoas surdas”, afirma Cibele Assênsio, mestranda do PPGAS e integrante da Comissão de Cotas. “Além das cotas, outra medida fundamental para surdos que têm a Libras como seu meio próprio de comunicação é a contratação de tradutores-intérpretes, conforme prevê legislação”, acrescenta. A estudante, que atualmente desenvolve pesquisas sobre surdez, teve o primeiro contato com o tema em 2009, ainda na graduação.
“De lá para cá não foram poucas as vezes que recebemos mensagens, emails de alunos surdos interessados em acessar o ambiente da universidade. Por conta da falta de acessibilidade, das dificuldades de acesso e permanência, poucos foram aqueles que insistiram, mesmo que fossem apenas para participar de atividades abertas a alunos de fora da universidade”, relata Cibele.
Bilinguismo
O Programa de Pós-Graduação em Linguística também pretende implantar um processo seletivo diferenciado, neste caso exclusivamente para surdos. A proposta é que os candidatos surdos concorram entre si e sejam avaliados em Libras, sem a prova de Língua Estrangeira.
“O Departamento de Linguística recebeu a proposta muito bem e estamos trabalhando para implementá-la o quanto antes”, afirma Felipe Barbosa.
O professor, no entanto, ressalta que, apesar de privilegiar a avaliação do conhecimento de uma pessoa surda em língua de sinais, a importância do português não pode ser relativizada. De acordo com ele, o bilinguismo para a educação de surdos é uma conquista grande, que deve ser valorizada, mas isto não pode significar a desvalorização da língua portuguesa.
“Mesmo diante de tantas possibilidades tecnológicas que facilitam a comunicação, a veiculação do conhecimento se dá muito pelo meio escrito”, afirma. “Na minha opinião, existe a necessidade do aprendizado do português na modalidade escrita. Isso dá ao surdo maior acesso à informação e maior possibilidade de comunicação. O processo é difícil, mas não é impossível”, conclui.
Fonte: Jornal do Campus/USP