Dobragem ou legendas?
Desenhos animados dobrados em português ou apenas com legendas? O EDUCARE.PT esteve à conversa com especialistas na matéria para perceber se a televisão pode contribuir para ensinar inglês às crianças.
Andreia Lobo
Na televisão começa o Karate Kid, de 2010, com Jaden Smith no papel principal. Entusiasmado, Gonçalo, de 8 anos, vai sentar-se no sofá com a mãe. Vão ver o filme no idioma original, com recurso a legendas em português. Se a família vivesse em Espanha ou no Brasil, só para dar dois exemplos, ouviria as falas das personagens dobradas na sua língua nativa. Assim, vai ouvi-las em inglês. Portugal, ao contrário do país vizinho e do país-irmão, não recorre com tanta frequência à dobragem. Filmes, séries televisivas, desenhos animados tendem a manter as “vozes originais”. Exceção feita aos que são dirigidos às crianças. Na televisão há programas infantis com e sem legendas. Sendo o inglês predominante no mundo audiovisual, será que a tendência para legendar em vez de dobrar traz vantagens na aprendizagem do idioma? Vamos por partes.
Antes importa perceber quem decide se uma série ou desenho animado é dobrado ou legendado e que critérios estão subjacentes a essa decisão? Andrea Basílio, responsável pelo Departamento Infantojuvenil da RTP, explica que uma série de desenhos animados ou de imagem real é dobrada ou legendada conforme o público a que se destina.
“No caso da RTP, optamos por legendas sempre que um conteúdo se destina a uma criança que já tenha destreza de as ler, o que acontece por volta dos 9 anos, de um modo geral. ”Por essa razão, continua, no “ZIG ZAG”, um programa dirigido às crianças do pré-escolar e do 1.º ciclo, transmitido pelo canal público, a opção é “dobrar quase todas as séries”.
Em 2002, durante a pesquisa para a sua tese de doutoramento ligada à programação televisiva para crianças, Sara Pereira percebia como as razões económicas pesavam contra a dobragem. “É mais caro dobrar do que legendar”, explica a investigadora da Universidade do Minho, autora dos livros Por Detrás do Ecrã (Porto Editora, 2007) e A minha TV é um Mundo (Campo das Letras, 2007).
Maria Emília Brederode Santos, membro do Conselho de Opinião da RTP, confirma: “A dobragem é muito mais cara que a legendagem. Esse é um fator que as empresas de televisão têm certamente em conta, [porque] existem para terem espectadores.”
Ainda assim, admite Sara Pereira, “há empresas que fazem dobragens muito baratas [com pouca qualidade], às quais as televisões recorrem”. O que acarreta alguns riscos, alerta: “Se a dobragem não é bem feita a criança perde a riqueza do programa.”
Um outro aspeto, diz a investigadora, “devia ser tido em conta” por todos os canais de televisão, públicos ou privados: “Dobragens mal feitas criam vozes disparatadas ou que não condizem com a personagem. E, muitas vezes, a própria criança passa a não gostar de ver aquele desenho animado porque é mais sensível a essas questões das vozes.”
Limite: saber ler
Sejam quais forem os argumentos, é possível chegar a um consenso sobre esta matéria: Até que a criança saiba ler, a dobragem, desde que bem-feita, é a mais recomendada. A partir daí as legendas são bem vindas.
“A tendência nos vários países europeus é para a dobragem dos programas infantis”, explica Maria Emília Brederode Santos. “Quando isso não acontece é em geral em países com línguas minoritárias e sem concorrência televisiva. Ou quando se trata de uma obra muito cuidada em que se considere que é importante manter a interpretação original – e isto também pode acontecer em Portugal.”
“Se o desenho animado não é dobrado e a criança não sabe ler acaba por perder muito da história”, argumenta Sara Pereira. “Vai perceber algumas coisas pela imagem, pelos sons, pelas cores e a música, mas a história acaba por ficar contada a meio.” A dobragem ganha importância quando permite à criança perceber a história na totalidade. “É fundamental para que a criança compreenda a narrativa.”
A partir do momento em que começa a ler o cenário é outro, como explica Sara Pereira: “Passa a ser importante [ouvir na voz original] porque a criança precisa de criar velocidade na leitura da legenda, uma competência que não adquire logo que aprende a ler, e a televisão apela a essa capacidade.”
A favor da dobragem persiste a ideia de que o dobrado acabava por ser apelativo a todos os públicos mais pequenos. Saibam ou não ler. Nessa perspetiva, o legendado pode ser mais seletivo. Mas há consenso quanto ao limite das duas opções. As crianças mais pequeninas precisam da dobragem, as mais crescidas já podem ver os programas com legendas.
Maria Emília Brederode Santos coloca a questão legendas versus dobragem nos desenhos animados noutros moldes. “As legendas foram durante anos uma boa motivação para as crianças aprenderem a ler e uma boa oportunidade de praticarem a leitura. Mas isso era no tempo em que só havia um canal de televisão.”
Ora, a chegada dos canais privados introduziu novas regras na programação. “Basta que haja um canal que dobre os desenhos animados em vez de os legendar para que as crianças o prefiram.” Por isso, para Maria Emília Brederode Santos a questão ultrapassa o que “deve” ou “não deve” ser feito. “Por muito útil que seja a legendagem – para a leitura em português, para as crianças aprenderem expressões noutras línguas e apreciarem essa diversidade e para ouvirem a interpretação original – não serve para nada se não tiver telespectadores.”
Boa dobragem
Uma dobragem bem feita tem de incluir uma tradução cuidada e, se for preciso, uma “adaptação cultural”, resume Sara Pereira, que viu vários exemplos de boas e más dobragens durante a pesquisa para o doutoramento sobre a programação televisiva para crianças.
Bons exemplos, onde a própria música era adaptada à cultura portuguesa. Ou seja, em vez de se usar a música original, se os produtores permitiam, era colocada música portuguesa. Uma forma de “glocalizar” os programas infantis que são produzidos em países tão diversos como a França ou o Japão. Sara Pereira explica o significado de “glocalização”: “É ter um produto global, mas que com a dobragem se torna local.”
Entre muitos dos trabalhos realizados por uma equipa de dobragem da RTP, entretanto desmantelada, Sara Pereira recorda um episódio onde se chegara a recorrer a um cancioneiro de poesia infantil portuguesa para encontrar um poema que substituísse o estrangeiro, pois não fazia sentido dobrá-lo.
“A dobragem neste aspeto faz sentido porque ajuda a trazer para a televisão e para estes programas infantis um pouco da nossa cultura que também é importante para as crianças”, garante a investigadora.
Mas persiste a dúvida sobre se é possível aprender inglês ao assistir a programas que mantenham a voz original?
Andrea Basílio não está convencida disso. “Não é pelo facto de vermos séries inglesas, francesas, dinamarquesas que aprendemos a língua. Cria-se uma familiaridade com os sons e até podemos perceber alguns vocábulos, mas não ficamos a perceber a língua, senão seríamos todos facilmente poliglotas.”
“A questão fundamental não é a aprendizagem da língua”, admite Sara Pereira, “mas a familiaridade com a sonoridade da língua”. Mas não significa que a televisão não possa dar uma ajuda.“Existem programas para crianças que se destinam à aprendizagem de línguas, no ZIG ZAG temos o ‘Mundo das Palavras’ que ensina inglês e tal é mais eficaz”, sugere Andrea Basílio.
Liliana Gonçalves, a mãe do Gonçalo, é professora de Inglês no 1.º ciclo. Durante as aulas está constantemente a ouvir os alunos a pronunciarem corretamente palavras em inglês. Mesmo que depois as escrevam tal como soam e não com a grafia correta. “Os alunos mais velhos conseguem ler as legendas e perceber o significado de uma palavra ou uma frase.”
A experiência de sala de aula diz-lhe que a televisão ao emitir programas infantis em inglês está a ajudar os alunos a adquirir uma pronúncia correta. “Vão ouvindo os sons e interpretando as frases através das imagens e se conseguirem ler as legendas – porque às vezes também são rápidas de mais – também conseguem associar o que leem ao que ouvem.”
Sentado no sofá a ver o Karate Kid, é isso que Gonçalo está a fazer. Tem a mãe ao lado, a ajudar quando é preciso. No filme o personagem interpretada por Jaden Smith está repetidamente a atirar o casaco ao chão e a progenitora zangada a pedir-lhe que o apanhe. Atento, Gonçalo faz a ligação entre a imagem, a palavra e a legenda e surpreende a própria mãe: “Pick up the jacket é apanha o casaco!”
Fonte: EDUCARE.PT