Direto da roça
A inusitada herança agrária da linguagem
Luiz Costa Pereira Junior
Nos primórdios, o latim era um dialeto restrito às margens do rio Tibre, língua de lavradores e pastores, que suavam para superar o terreno difícil e os pântanos do Lácio, região central da atual Itália. Parada para caravanas que cruzavam o norte e o sul italianos, o Lácio virou base de propagação do latim. A origem de muitas palavras herdadas do latim é rural. Mas mesmo termos criados há pouco ou importados de idiomas não românicos parecem ter um pé na cultura agrícola.
Ler e escrever
Legere, matriz do português “ler”, significava “colher” frutos. Scribere, ancestral de “escrever”, nomeava o ato de gravar inscrições em árvores ou gado. É sugestiva a ideia de encarar a leitura como um ato de colheita e a escrita como forma de deixar uma marca no mundo.
Delirar
Os camponeses do Lácio tinham em alta conta a habilidade de cultivar e cuidar dos animais – por tabela, condenando tacitamente o trabalho displicente. Por isso, “delirar” nomeava a negligência de quem erra a pontaria ao jogar uma semente no sulco da terra, na “lira”.
Caducar
No mesmo contexto de “delirar”, “caducar” carrega o sentido de decadência explícito: caducus (do verbo cadere, cair) é o fruto que desaba de uma árvore, de tão apodrecido.
Leitura
“Leitura” deriva do latim tardio lectura (comentário). Surgiu quando “ler” já perdera o vínculo agrícola, passando a significar o ato de percorrer o olho por algo, para decodificá-lo. Ler é colher com os olhos, capturar com a vista. A leitura seria um passo além, o de tecer comentário. Há quem leia sem fazer, de fato, leitura, sem usar o ato de ler para captar todas as possibilidades do texto.
Glocal
O neologismo veio da combinação de “global” e “local”, numa ideia modelada conforme o termo japonês dochakuka (de dochaku, “viver em sua própria terra”), palavra que indica o princípio agrícola de adaptação das técnicas de cultivo gerais às condições locais. O termo foi usado na economia japonesa dos anos 90 para indicar a perspectiva global adaptada às especificidades regionais. A informação é do Oxford Dictionary of New Words.
Rival
“Rival” (competidor, inimigo) veio do latim rivalis, por sua vez derivado de rivus (rio), que também procriou o adjetivo rivalem (ribeirinho). Associar um rio à inimizade e à concorrência era desdobramento semântico compreensível para os agricultores da antiga Itália. Afinal, o fornecimento de água era temerário, havendo quem disputasse o mesmo canal de irrigação do vizinho.
Na literatura
A tese é do escritor Ricardo Piglia: a tensão com o mundo rural iletrado por bom tempo inspirou a literatura latino-americana a pensar a oralidade. Nomes como Juan Rulfo, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa buscavam a língua de favelados e marginais, o idioma campesino dos sertões.
Hoje os jovens escritores não parecem atraídos pela relação entre oralidade e cultura, mas entre imagem e cultura. O escrito passa pela imagem, não pela voz, como antes. A inquietação é sobre o que fazer com o mundo das imagens, com a escritura, não a riqueza experimental da oralidade.
Cultura
A palavra era usada para cuidados agrícolas (cultura do arroz, algodão, etc.) antes de migrar para todo cuidado de interesse humano (educação, devoção, história tribal, etc.). No século 18, passou a indicar as ideias de civilização, boa educação (“sem cultura”: não ter tradição linguística), “produzido” (não ter relação com a natureza, mas com ação humana, urbanidade e arte). Os antropólogos mostraram a cultura como algo mais: tudo o que é feito em sociedade (o que inclui móveis, culinária, artefatos, jeitos de caminhar, gesticular, falar e pensar).
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