“Amnésia ou ignorância?” Artigo de Evanildo Bechara sobre o Acordo Ortográfico
Amnésia ou ignorância?
Evanildo Bechara*
Enquanto não passavam de desacertadas opiniões de pessoas desinformadas da história das propostas iniciais, expostas em 1885 e consubstanciadas na primeira reforma ortográfica, de 1911, íamos mostrando, em jornais e revistas, a tais reformistas a sem-razão de adotar oficialmente algumas sugestões de simplificação ortográfica, entre as quais a abolição do h inicial – oje por hoje – ou a redução da forma quero em qero. Embora os defensores dessas simplificações nunca tenham chamado a atenção dos seus leitores para o fato de que algumas dessas propostas muito parecidas já tivessem sido anunciadas, cabe lembrar que a pretensa novidade data, pelo menos, do século 19.
A própria Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1907, tentou um movimento simplificador, que teve no filólogo João Ribeiro grande adepto. Todavia ele reconheceu: “Tudo aconselha a adotar um sistema conservador, embora difícil, em vez de outro qualquer, arriscado e susceptível de anarquizar a escrita”.
Até aqui combatíamos propostas. Mas, agora, senadores que integram a Comissão de Educação, Cultura e Esporte (CE), sensibilizados com a tese – falsa na sua essência – de que a simplificação ortográfica é fator decisivo do sucesso da alfabetização, e na certeza – certeza não comprovada – de que o Acordo Ortográfico (AO) de 1990 precisa ser repensado, criaram um grupo de trabalho que tem como um dos colaboradores o principal membro do movimento “Acordar melhor”, hoje projeto “Simplificando a Ortografia”.
A aproximação da comissão do Senado a esses reformistas já produziu seu primeiro efeito deletério com o decreto presidencial que prorrogou a data de entrada em vigor definitiva do Acordo Ortográfico no Brasil para 2016, sob a alegação – não comprovada – de que professores e alunos ainda não conhecem as bases do acordo.
A adesão do presidente da Comissão de Educação, senador Cyro Miranda (PSDB-GO), está patente na declaração feita ao jornal O Parlamento de 22 de agosto: “Tínhamos um acordo que não era acordo. A reforma (sic!) foi feita sem ouvir ninguém. A comissão resolveu botar ordem na casa e tomamos a medida de convocar o debate”.
Afirmar que órgãos especializados e que a Academia Brasileira de Letras deviam “participar mais dos debates” é não ter levado em conta as repetidas vezes que pela imprensa, na voz de seus representantes legítimos, mostraram o caminho errado de tais procedimentos simplificadores. Nesse sentido basta lembrar que, em 5 de junho passado, a professora-doutora Marília Ferreira, presidente da Associação Brasileira de Linguística, encaminhou ao senador Cristovam Buarque (PDT-DF) e demais membros da Comissão de Educação longa exposição técnica em que estranha a notícia publicada pela Agência Senado (7/3) da criação de um Grupo de Trabalho Técnico “para simplificar e aperfeiçoar a ortografia”.
Esse documento fala por todas as instituições e por aqueles especialistas brasileiros nessas áreas, e por isso vale lembrá-lo aos leitores de tão importante órgão da imprensa deste país.
“A ortografia não existe para representar a fala, mas é uma representação abstrata e convencional da língua. Para poder ser de fato funcional, a ortografia deve necessariamente afastar-se da diversidade da fala. Só assim se poderá garantir um sistema ortográfico estável e perene em que haja uma única representação gráfica para cada palavra. É essa representação única que torna possível que a palavra seja reconhecida em qualquer texto independentemente de suas inúmeras pronúncias no espaço e no tempo.
É por essa razão que nunca foram feitas reformas ortográficas em línguas como o inglês e o francês, que fixaram suas ortografias há mais de 300 anos. (…) Por fim, é importante lembrar que o Acordo Ortográfico de 1990 não propôs uma reforma ortográfica, já que não foi alterado o núcleo duro das bases da ortografia estabelecidas em 1911. Houve, sim, cedências de parte a parte, adotando umas soluções já existentes na grafia dos outros.
Os filólogos da geração de Antônio Houaiss, portugueses e brasileiros, tinham um único objetivo: superar a duplicidade de ortografias oficiais do português. Em nenhum momento tiveram o objetivo de reformar ou simplificar a ortografia.
(…) O Acordo foi implantado no Brasil sem qualquer problema já em 2009. Eventuais dúvidas de interpretação de um ou outro aspecto do texto não justificam propor mudanças, até porque essas dúvidas estão sendo equacionadas com a próxima publicação do Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa que está sendo elaborado sob a supervisão do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), órgão da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) a quem cabe hoje a gestão técnica das questões ortográficas.
(…) Não precisamos, portanto, mexer no Acordo de 1990. Contudo é importante não esquecer que qualquer retrocesso na sua implantação no Brasil implicará enormes prejuízos para as editoras nacionais, além de incalculável e injustificável desperdício de dinheiro público, considerando que todos os milhões de livros do Programa Nacional do Livro Didático têm sido impressos, desde 2010, com a ortografia prevista no AO.
Manifestamos aqui a esperança de que – ponderados devidamente os prejuízos econômicos, culturais e educacionais que uma eventual ‘simplificação’ ortográfica trará ao País e à unidade ortográfica da língua – a CE não leve à frente a proposta de ‘simplificar’ a ortografia, mas assuma a liderança de um debate que resulte no apoio aos esforços que os educadores brasileiros vêm fazendo no sentido de garantir que todas as nossas crianças sejam alfabetizadas no tempo certo.”
*Evanildo Bechara é filólogo e membro da Academia Brasileira de Letras
Fonte: O Estado de S.Paulo