A participação de intérpretes no contato com um povo indígena isolado

No mês de junho de 2014, enquanto o país se preparava para assistir aos jogos da Copa do Mundo que ocorreriam no Brasil, uma sequência de acontecimentos se passava na longínqua fronteira do Brasil com o Peru, produzindo uma atualização dos mais de quinhentos anos de colonização em território hoje brasileiro. Por iniciativa própria, um pequeno grupo de indígenas isolados “apareceu” em uma aldeia do povo indígena Ashaninka, localizada no alto rio Envira, no estado do Acre. A Funai (Fundação Nacional do Índio) foi comunicada do acontecimento via rádio e providenciou o deslocamento de uma equipe para o local. Em articulação com a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) foi elaborado um Plano de Contingência para prestar assistência em saúde caso os indígenas isolados retornassem – como, de fato, aconteceu. Devido à constatação de que estes falavam uma língua da família linguística Pano, a Funai providenciou a ida de indígenas do povo Jaminawa para atuarem como intérpretes – os Ashaninka, por sua vez, falam uma língua da família Arawak. Os Jaminawa conseguiram se comunicar com os indígenas isolados e auxiliar na interlocução com os profissionais de saúde, que por sua vez conseguiram administrar medicamentos e vacinas.

Nos meses que se seguiram, o grupo que era composto inicialmente por sete pessoas passou a somar trinta e cinco, entre homens, mulheres e crianças. Os diferentes núcleos familiares foram gradativamente saindo da mata e estabelecendo moradia nas imediações da Base de Proteção Etnoambiental Xinane, estrutura mantida pela Funai no alto rio Envira, acima da aldeia Simpatia, onde vivem os Ashaninka. Na ausência de um etnônimo reivindicado pelo grupo, a Funai tem, desde então, se referido a eles como povo indígena de recente contato do Xinane, ou, de forma abreviada, povo do Xinane, em função da localização de suas moradias nas cabeceiras deste igarapé, afluente do rio Envira.

Essa narrativa simplificada, no entanto, não faz jus a um processo tão complexo, repleto de dilemas e desafios para os diferentes atores envolvidos. Em minha tese de doutorado, descrevi e analisei alguns aspectos e momentos do processo de contato que se deflagrou a partir de quando o povo do Xinane saiu da mata. De forma mais específica, a tese apresenta uma etnografia deste processo de contato centrado na participação dos Jaminawa como intérpretes a serviço da Funai, ao longo de três anos e meio após os primeiros encontros na aldeia Simpatia.

A QUAL PERGUNTA A PESQUISA RESPONDE?

A pesquisa analisa uma rede relacional que foi sendo tecida no decorrer dos primeiros anos após um povo indígena de recente contato, conhecido atualmente como povo do Xinane, estabelecer contato pacífico e permanente com outros povos indígenas e com não indígenas. Trata-se de um processo que vem se desenrolando desde junho de 2014, na Terra Indígena Kampa e Isolados do Rio Envira, no município de Feijó, no Acre, próximo à fronteira com o Peru. De modo mais específico, a análise centrou-se na participação de indígenas do povo Jaminawa, que foram convidados pela Funai para atuarem como intérpretes neste processo de contato. A inteligibilidade mútua entre as línguas faladas pelos Jaminawa e pelo povo do Xinane, associada às semelhanças socioculturais, contribuiu para que os intérpretes indígenas fossem assimilados como “parentes” pelos indígenas de recente contato. Por outro lado, por falarem português e se relacionarem com os brancos, eles puderam exercer também um papel importante na transmissão de conhecimentos e novos hábitos. Diante deste contexto etnográfico, a pesquisa buscou conhecer as pessoas que ocuparam essa posição e refletir sobre diferentes situações vivenciadas por elas ao longo deste processo.

POR QUE ISSO É RELEVANTE?

Existe uma produção historiográfica que remonta à expansão das civilizações europeias para outros continentes e examina a figura dos intérpretes no encontro entre povos nativos e colonizadores. No processo de colonização das Américas, por exemplo, ingleses, espanhóis e portugueses reconheceram a importância da comunicação com povos indígenas por meio de intérpretes nativos como uma estratégia importante para a Conquista (Todorov 1982). Cultural brokers ou go-betweens são alguns dos termos utilizados para caracterizar a atuação destes personagens históricos que ocupam o lugar da dobradiça que conecta dois universos distintos, exercendo papéis como de mediador cultural, tradutor linguístico, guia de viagem, negociador, dentre outros. Igualmente, os intérpretes estão presentes na formação do Brasil ao longo de seus mais de cinco séculos de colonização. No século 16, por exemplo, existiram os chamados “línguas”, pessoas bilíngues em português e “em tupi”, que atuaram como intérpretes para os jesuítas, viabilizando tanto as relações mercantis quanto a conversão religiosa dos nativos no país .

Em uma perspectiva mais recente, embora dispersas em etnografias que falam sobre histórias de contato, existem menções à participação de intérpretes indígenas em expedições de atração e pacificação de povos indígenas isolados. Este, no entanto, permanece sendo um tema pouco explorado na antropologia. Nesse sentido, uma das contribuições da pesquisa é dar visibilidade à atuação destes intermediários, com frequência silenciados ou ocultos nos registros históricos, mas que estiveram (e ainda estão) presentes em uma diversidade de “primeiros encontros” envolvendo os povos indígenas e os brancos ao longo da história, da Conquista da América até os dias de hoje.

RESUMO DA PESQUISA

O período abarcado pela pesquisa concentra-se nos primeiros quatro anos após o povo do Xinane ter saído da mata e estabelecido relações pacíficas e permanentes com outros povos indígenas e com os não indígenas. Desde que saíram da mata, a Funai presta atendimento permanente ao povo do Xinane por meio da execução da política de proteção aos povos indígenas isolados e de recente contato, que em seu nível local é operacionalizada pela FPEE (Frente de Proteção Etnoambiental Envira), cuja sede administrativa fica em Rio Branco, no Acre. Foi nesta cidade que ocorreu a maior parte da pesquisa de campo, embora os acontecimentos narrados falem de outros tempos e lugares. A partir de entrevistas, conversas e encontros com os Jaminawa que trabalhavam como intérpretes e com os servidores da Funai que trabalhavam na FPEE, foi possível reconstituir algumas situações e refletir sobre outras tantas que estavam em curso.

Constituída por quatro capítulos, a tese apresenta uma narrativa sobre os primeiros encontros do povo do Xinane com os Ashaninka, com os funcionários da Funai e com os Jaminawa. A análise das cenas descritas mostrou como os primeiros encontros entre desconhecidos geraram sentimentos de desconfiança e medo em todas as partes envolvidas. Alguns Jaminawa contaram terem usado um preparo de ervas perfumadas para amansar seus “parentes brabos”. Porém, segundo eles, logo que começaram a conversar, viram que conseguiam se entender e passaram a se chamar por termos de parentesco. Assim, a presença dos intérpretes contribuiu para o estabelecimento de vínculos de confiança e para apaziguar conflitos, especialmente nos primeiros meses após o povo do Xinane ter saído da mata.

Entretanto, para além de traduzir mensagens, a relação dos Jaminawa com o povo do Xinane envolveu trocas materiais, transmissão de conhecimento e de novos hábitos, contribuindo para que estes viessem a se acostumar com a vida fora da mata e entre os brancos. Neste sentido, a tese mostra que o conhecimento mobilizado entre os intérpretes e seus interlocutores não se restringiu ao domínio de códigos linguísticos, abrangendo também um entendimento do comportamento cultural e da dinâmica das relações sociais. Esta atuação não poderia, portanto, ser dissociada das suas histórias de vida, da sua curiosidade e dos seus interesses, bem como de suas perspectivas no que diz respeito às situações de isolamento e de contato. Neste contexto, alguns Jaminawa tiveram maior envolvimento e protagonismo na relação com os indígenas do povo do Xinane. No segundo semestre de 2017, por exemplo, indígenas do povo do Xinane fizeram suas primeiras viagens às cidades e, nestas, o encontro com os intérpretes Jaminawa apareceu como elemento mobilizador dos deslocamentos. Por sua vez, essas viagens estremeceram a relação já conturbada que a FPEE mantinha com os Jaminawa, levando ao término dessa colaboração, em dezembro de 2018.

Por fim, é possível dizer que, em certa medida, a tese apresenta uma etnografia da execução da política pública para povos indígenas de recente contato – e da participação indígena em sua implementação. Embora não me debruce na estrutura e implementação desta política em contexto nacional, alguns dilemas e reflexões característicos a essas situações emergem na análise do caso etnográfico. Cabe destacar que a existência de uma política pública específica permitiu que durante os primeiros anos após o contato não houvesse nenhuma morte por doença infectocontagiosa entre o povo do Xinane. Essa situação se distingue drasticamente das experiências históricas de contato, nas quais a perda populacional, decorrente de epidemias e falta de assistência sanitária, costumava ser de proporções alarmantes.

QUAIS FORAM AS CONCLUSÕES?

Olhar para o processo de contato do povo do Xinane por meio da atuação dos intérpretes indígenas permitiu refletir sobre o papel do intermediário que contribuiu para que o diálogo entre as partes viesse a acontecer. Grosso modo, as situações de contato costumam ser entendidas como processos binários constituídos por dois atores: os indígenas isolados e os não indígenas. No entanto, o que a tese mostra, a partir de um caso etnográfico específico e contemporâneo, são nuances e complexidades de um processo que envolve pelo menos três atores: os agentes do estado, os indígenas recém-contatados e os indígenas mediadores. Na pesquisa a ênfase recai sobre os Jaminawa que atuaram na função de intérpretes, mas podemos seguir a mesma lógica para analisar, por exemplo, a participação dos indígenas Ashaninka, especialmente das aldeias vizinhas à Bape, neste mesmo processo.

A pesquisa mostra como a interação entre os Jaminawa e os indígenas do povo do Xinane foi importante para o estabelecimento de vínculos de confiança e para a transmissão de comportamentos considerados adequados, como, por exemplo, a substituição de ameaças por novas formas de comunicar suas demandas à Funai. Por outro lado, essa mesma interação foi apontada como um problema, na medida em que se transmitiam valores e conhecimentos relacionados à vida na cidade e ao mundo dos brancos. Com o passar do tempo, acumularam-se situações nas quais falas ou comportamentos dos intérpretes causaram repercussões negativas entre os servidores da Funai. Não raras vezes, os intérpretes Jaminawa levaram ao povo do Xinane conhecimentos sobre o uso do dinheiro, hábitos de higiene e de alimentação. Para eles, informar e ensinar novos modos de se comportar era condizente com a posição que ocupavam. Estavam ali a serviço da Funai, mas também para ajudar seus parentes a adquirir bens e conhecimentos para viver melhor, ou seja, para que se acostumassem a viver fora da mata.

QUEM DEVERIA CONHECER OS SEUS RESULTADOS?

As narrativas de primeiros encontros entre povos indígenas e as frentes de contato não indígena costumam fascinar e alimentar diferentes imaginários, nos quais ideias a respeito dos povos indígenas e dos brancos são postas em jogo. Como expresso por Manuela Carneiro da Cunha (1992), a ideia dos indígenas como sujeitos ativos e não apenas vítimas das situações de contato pode ser uma novidade para nós, brancos, mas para os povos indígenas parece ser costumeira. Essa tese, portanto, pode interessar a pessoas de diferentes formações que queiram refletir, a partir do caso etnográfico narrado, a respeito deste(s) encontro(s) de mundos. A tese também pode interessar àqueles que queiram conhecer mais sobre os povos indígenas que vivem na Amazônia, sobretudo na região de fronteira entre Brasil e Peru; uma ampla região, que abriga milhares de hectares de floresta preservada, na qual vive uma diversidade de povos indígenas que mantêm redes históricas e complexas de relacionamentos entre si.

No campo acadêmico, a pesquisa pode interessar a pesquisadoras e pesquisadores de antropologia, etnologia indígena, línguas indígenas, dentre outras áreas de pesquisa. Ademais, a tese pretende dialogar com os dilemas e desafios enfrentados pela política de proteção a povos indígenas isolados e de recente contato, podendo interessar às pessoas que atuam na formulação e implementação desta política pública. Em específico, àqueles que trabalham diretamente com o povo do Xinane, espera-se que a presente pesquisa contribua com reflexões importantes de serem feitas no processo de criação e implementação de programas de ação específicos para esse povo indígena de recente contato.

REFERÊNCIAS

Albert, Bruce, e Ramos, Alcida. (org). 2000 [2002]. Pacificando o Branco. Cosmologias do contato no Norte-Amazônico. São Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial do Estado.

Almeida, Luana. 2021. Parentes Estrangeiros: intérpretes indígenas no processo de contato com o povo do Xinane (Acre, Brasil). Tese (Doutorado em Antropologia Social), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.

Carneiro da Cunha , Manuela. 1992. “Introdução a uma história indígena”. In: Carneiro da Cunha, M. (Org). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, pp. 09-26.

Pérez Gil , Laura, 2019. “No limite da existência: o povo do Xinane”. In: Ricardo, F. e Gongora, M. (orgs). Cercos e Resistência: povos indígenas isolados na Amazônia brasileira. São Paulo: Instituto Socioambiental. pp. 165-169.

Todorov, Tzvetan. 1982 [2016]. A conquista da América. A questão do outro. São Paulo: SP, Martins Fontes.

Luana Machado de Almeida é antropóloga, com mestrado e doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. É pesquisadora vinculada ao Laboratório de Antropologia da Arte, Ritual e Memória – LARMe. Tem experiência em pesquisa na área de etnologia indígena, tendo desenvolvido mestrado com o povo Munduruku, na região do alto rio Tapajós, no Pará, e doutorado com o povo Jaminawa, no estado do Acre. Desde 2010, trabalha como servidora pública na Funai (Fundação Nacional do Índio), atuando na formulação, execução e monitoramento de políticas públicas voltadas aos povos indígenas no Brasil. De 2010 a 2015 atuou na Coordenação Regional Alto Purus, com sede em Rio Branco, no Acre, trabalhando com povos indígenas na região do Acre e sul do Amazonas, sobretudo falantes de línguas das famílias arawak e pano. Desde 2019 trabalha na Coordenação Geral de Gestão Ambiental, na temática de interface entre política indigenista e política ambiental, na sede da Funai, em Brasília, DF.

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