A encruzilhada da conciliação sobre direitos indígenas no STF

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Os direitos indígenas estão no centro do embate entre os poderes Judiciário e Legislativo

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Por Karol Moura Dos Santos, Maria Judite da Silva Ballerio Guajajara, Lucas Cravo de Oliveira, Ednaldo Rogerio Tenorio Vieira, Carolina Santana e Carla Juliana Rodrigues Moraes
Brasil de Fato | Manaus (AM) em 30 de julho de 2024

Manifestação na Esplanada dos Ministérios contra marco temporal – Antônio Cruz/Agência Brasil

Recentemente voltou à tona o tema infindável acerca da constitucionalidade da tese do marco temporal. Depois de quinze anos de debates em diversos âmbitos da sociedade (de 2009 a 2023) e um processo judicial com mais de 10 protelações do julgamento (RE 1.017.365) o STF rejeitou a teoria do “marco temporal”, que condicionava o reconhecimento de territórios indígenas à presença física nas áreas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, reforçando a proteção constitucional dos direitos territoriais dos povos indígenas e do meio ambiente. Ou seja, o Supremo decidiu que a tese do marco temporal é inconstitucional.

Porém, junto com alguns outros temas, os direitos indígenas estão no centro do embate entre os poderes Judiciário e Legislativo e, por essa razão, os parlamentares tramitaram, ao mesmo tempo em que ocorria o julgamento do RE 1.017.365, uma ofensiva contra a decisão de inconstitucionalidade do marco temporal. Assim, poucos meses após a decisão judicial, foi editada a lei nº 14.701/2023 que, entre outros fatores de ataque aos direitos territoriais indígenas, apresenta dispositivos que afirmam a tese do marco temporal.

Surpreendentemente, o ministro relator determinou, entre outras coisas, que as partes envolvidas apresentem propostas para solucionar o impasse político-jurídico por meio de métodos consensuais de solução de litígios, com apoio do Núcleo de Solução Consensual de Conflitos (Nusol) do STF. Além da decisão, o ministro relator emitiu um despacho determinando a composição da mesa de conciliação e o início das audiências para o mês de agosto.

Diante disso, algumas perguntas e conclusões são possíveis e necessárias: 1) Cabe edição de lei cujo conteúdo já tenha sido julgado inconstitucional pelo STF? 2) Cabe conciliação a respeito da constitucionalidade em matéria de direitos indígenas?

Quanto à primeira questão, sabe-se que sim, que é possível que o parlamento edite lei cujo conteúdo já tenha sido julgado inconstitucional pelo STF. Todavia, é preciso que (i) a nova lei esteja embasada em argumentos não enfrentados pelo STF quando da declaração da inconstitucionalidade ou (ii) que haja circunstância fática diversa daquela que ensejou a declaração de inconstitucionalidade pela Corte (Godoy, 2017, p. 34 e Mendes, 201, p. 215-216).

A lei 14.701/2023 não se adequa a nenhum destes dois critérios e, por isso, estamos diante da mesma causa e da mesma questão constitucional contida e superada do RE 1.017.365/SC. Por esta razão, a Lei 14.701/2023 nasce com presunção de inconstitucionalidade e as ADIs sequer deveriam ter sido conhecidas pelo Supremo.

Sobre a segunda pergunta, entendemos, primeiramente, que as “partes formais” não podem transacionar a respeito de inconstitucionalidade. Aliás, não há que se falar em partes no controle abstrato nem na contraposição de interesses entre os direitos pleiteados. O interesse é o de verificação de compatibilidade da norma com a Constituição. Designar audiência de conciliação no âmbito da ADI parece encontrar vedações constitucionais, óbices processuais e, mais ainda, impedimentos democráticos. Transacionar e conciliar a constitucionalidade de uma norma entre supostas partes ou interessados, por iniciativa monocrática de ministro relator, é enfraquecer a representação geral do Executivo e mitigar a presunção de constitucionalidade de normas regularmente editadas, e tudo isso à margem do devido processo constitucional. Isso implica, assim, violação ao princípio democrático e à separação de Poderes (Godoy, 2021, p. 32)

É importante pontuar, ainda, que o espaço da Comissão Especial criada não supre a consulta livre, prévia e informada que deve ser feita aos indígenas por meio de suas instituições e protocolos próprios. A conciliação proposta viola a Convenção 169 da OIT (arts. 6, 7, 15, 17 e 18), a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (arts. 15, 19, 29, 30, 32 e 39) e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas (arts. XXIII e XXIV). Isso porque o espaço da Comissão Especial e das audiências de conciliação que ali tomarão forma não são equiparáveis à consulta livre, prévia e informada.

Veja-se, por exemplo, que o processo ora proposto não permite tempo hábil para que os indígenas sejam previamente esclarecidos sobre tudo o que está em pauta e não haverá documentos disponíveis em suas línguas maternas.

O STF já se posicionou pela inconstitucionalidade da tese do marco temporal e esta nova possibilidade aberta para a conciliação enfraquece a segurança jurídica, tornando o Supremo uma Corte imprevisível não apenas quanto ao conteúdo, mas também quanto à forma.

Fontes:

GODOY, Miguel. Devolver a Constituição ao Povo, Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 147-148.

MENDES, Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 215-216.

SANTANA, Carolina. O Xamã e o Guardião: terras indígenas e processo desconstituinte de direitos no Brasil, UnB. Tese de Doutorado em Direito, 2023

*Maria Judite da Silva Ballerio Guajajara, Ednaldo Rogerio Tenorio Vieira, Carla Juliana Rodrigues Moraes e Karol Moura Dos Santos são assessores jurídicos da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

** Lucas Cravo de Oliveira e Carolina Santana são consultores jurídicos.

 

Consulte a leitura na fonte para mais informações:

https://www.brasildefato.com.br/2024/07/30/a-encruzilhada-da-conciliacao-sobre-direitos-indigenas-no-stf

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