Uff Hunsrickisch schreiwe: Entrevista mit Cléo Altenhofen / Escrever em Hunsrückisch: Entrevista com Cléo Altenhofen
O IPOL e o Grupo ALMA-H (Atlas Linguístico da Minorias Alemãs na Bacia do Prata: Hunsrückisch – http://www.ufrgs.br/projalma) da UFRGS iniciaram, em janeiro deste ano, os trabalhos para o Inventário do Hunsrückisch como língua brasileira de imigração, cujo objetivo é reunir um conjunto de informações sobre essa língua visando seu reconhecimento como Referência Cultural Brasileira. A pesquisa será realizada em várias cidades e comunidades dos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Espírito Santo.
A execução desse e de outros inventários traz à tona importantes debates sobre a especificidade das línguas brasileiras e seu futuro. Por “línguas brasileiras” compreende-se, de acordo com a política do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL/IPHAN/MINC), o conjunto das línguas presentes no país há pelo menos três gerações, sejam elas indígenas, afro-brasileiras, de sinais, crioulas ou de imigração.
Entre as questões em debate está a política de produção de escrita ou escritas da língua. Essa é uma questão central para grande parte das línguas brasileiras e foi fortemente tematizada no I Encontro Nacional de Municípios Plurilíngues, realizado em setembro de 2015, em Florianópolis. Para contribuir com esse debate, e avançar na implementação do INDL, o IPOL e parceiros têm a honra de publicar essa primeira entrevista com o professor Cléo Altenhofen, coordenador do Projeto ALMA-H / UFRGS, sobre as perspectivas para a escrita do Hunsrückisch (pt. hunsriqueano). Prevemos realizar outras entrevistas que serão oportunamente divulgadas.
Ortografia da língua brasileira de imigração alemã Hunsrückisch
Entrevista com Cléo Altenhofen
Por Willian Radünz (Graduando, UFRGS)
1. O Hunsrückisch é uma língua essencialmente falada. Uns diriam que é uma língua ágrafa, que não tem, pelo menos por enquanto, uma escrita definida. O que isso significa para a discussão sobre a “escrita do Hunsrückisch”?
A maioria dos falantes de Hunsrückisch de fato apenas fala sua língua e não a escreve, embora o pudesse, mesmo que só para anotar uma lista de compras do supermercado ou para terminar um e-mail com um “fosche Abrass”. Historicamente, quando se precisava escrever em alemão, por exemplo a ata de uma sociedade de canto, ou uma inscrição em uma sepultura, ou mesmo um ditado em um pano de prato, no caso um Wandschoner, se optava pela escrita em Hochdeutsch. Contudo, não se pode dizer que não há uma tradição escrita em Hunsrückisch. Basta lembrar os contos do Padre Balduíno Rambo, os poemas de Alfredo Gross e de Lily Clara Koetz, livros como o de José Inácio Flach, ou ainda diversos textos avulsos em jornais ou almanaques e revistas, como o Brumbärkalender e o Sankt Paulus Blatt. Eles fazem parte da história da língua Hunsrückisch, no Brasil. Ignorá-los é ignorar sua história e memória. Assim, temos aqui um primeiro princípio, fundamental para mim, ao discutir a escrita do Hunsrückisch: o respeito à sua história e coletividade. A consequência é que não podemos simplesmente inventar uma escrita nova, como se não tivesse havido nada antes. Porque, se quisermos compreender por que o Hunsrückisch é como é, temos que dialogar com a sua história e origem. O Hunsrückisch não foi inventado por nós, e sim herdado como uma construção coletiva de várias gerações.
2. O grupo do ESCRITHU (Escrita do Hunsrückisch) fez, então, justamente isso: ele analisou os textos já existentes em escrita Hunsrückisch e retirou daí as regras mais comuns ou recorrentes? É isso?
Sim, é isso, mas não só isso. Nós consultamos textos e autores prévios e fixamos a partir daí um padrão de formas de escrita mais comuns. Além disso, o grupo identificou “princípios” que pudessem orientar melhor as decisões sobre como escrever determinada palavra em Hunsrückisch. Além do princípio de respeito à história da língua, que já mencionei, e que nos recomenda considerar a tradição escrita em língua alemã que, consciente ou inconsciente, direta ou indiretamente, faz parte da vida dos falantes, sempre reaparece o debate entre uma escrita fonética ou etimológica. Os defensores da escrita fonética normalmente partem do português, o que é contraditório, porque o português não tem grafia para todos os sons do Hunsrückisch, como o /ch/ em ich. Os defensores da escrita etimológica, como eu, se orientam pela escrita do Hochdeutsch e do português, conforme a origem da palavra. Em alguns casos, há mais de uma opção: por exemplo, você escreveria Wowwe ou Vove? A verdade é que escrever como se pronuncia parece, em um primeiro momento, mais fácil, mas não é algo simples quando se quer estabelecer um padrão de escrita que todos (não só falantes) entendam, porque cada um pronuncia ou ouve de um jeito diferente. E nem sempre um som tem uma grafia clara, assim como nem todos têm as mesmas experiências de leitura. Escrever como se pronuncia pode ser fácil se a finalidade é apenas se comunicar ou comunicar algo como uma anedota. Mas quando se trata de construir uma escrita para uma política de promoção do Hunsrückisch, há muito mais questões em jogo.
Como, então, fixar um padrão que dialogue com a história da língua? A história aparece por exemplo nos nossos nomes. Não por acaso a palavra Schreibname ou Schreibnoome, em Hunsrückisch, enfatiza o caráter escrito do sobrenome. Em Hunsrückisch, dizer “Ich schreiwe mich Schmitt” significa que “meu sobrenome é Schmitt” (literalmente, porém, “eu me escrevo Schmitt”). Assim, um nome como Schneider não pode ser mudado, de uma hora para outra, para uma escrita como xnayda. Se assim fosse, os genealogistas iriam ter muitas dores de cabeça para identificar se se trata da mesma origem familiar, em uma árvore genealógica. Ao mesmo tempo, não se pode subestimar os falantes como incapazes de entender que <ei> se lê com o som de /ai/, quando na própria comunidade há pessoas com Schreibnoome como Klein, Stein, Heinzmann, ou Schneider. Ou que sejam tão a-históricos que não precisem entender textos mais antigos. Escrever e ler não seguem a mesma lógica de falar e nos colocam exigências bem diferentes.
3. Que exigências seriam essas?
Todos vão concordar que a leitura, em Hunsrückisch, é mais fácil do que a produção escrita de um texto em Hunsrückisch. Além disso, ao ler, temos a possibilidade de reler e reinterpretar a partir do contexto o que determinada forma escrita quer dizer. A escrita exige, por outro lado, uma prática maior. Já na fala ou na compreensão oral, não é assim.
4. Qual foi a motivação que desencadeou a proposta de escrita do ESCRITHU? As ideias centrais da proposta estão em um artigo de 2007 que reúne diferentes autores, disponível na página da Revista Contingentia (ver aqui). Correto?
Correto. O interesse primordial do ESCRITHU foi, acima de tudo, criar um padrão de escrita para transcrever os dados coletados pelo projeto ALMA-H (Atlas Linguístico-Contatual das Minorias Alemãs na Bacia do Prata: Hunsrückisch). Ele surgiu, por isso, em um contexto acadêmico, em que também houve estudantes e docentes universitários falantes de Hunsrückisch. Veja a contradição para a noção de “língua de colono”. É incrível ver uma língua minoritária representada em diferentes instâncias da sociedade, desde um contexto interiorano de região colonial, até o campus de uma universidade como a UFRGS. Para as finalidades do ESCRITHU, em função dos interesses de pesquisa, não havia, inicialmente, a pretensão de propor uma escrita às comunidades de falantes, apesar de alimentarmos o desejo de submeter essa escrita às comunidades, para fins de reflexão sobre o significado de seus modos de falar.
5. Como o ESCRITHU considerou os interesses dos potenciais usuários da escrita e o fato de haver, muitas vezes no mesmo município, diferentes formas de Hunsrückisch?
Debater a ortografia de uma língua que ainda não possui uma escrita estabelecida é um terreno muito espinhoso e complicado. Não raro, alguns exprimem com tal convicção e emocionalidade sua posição, que fica difícil um debate neutro e objetivo. Não é, por isso, a melhor estratégia promover disputas. Pelo contrário. Uma postura flexível é fundamental nesta etapa do processo. Cada um tem sua própria concepção e posição que precisa ser respeitada, e que bom que reflete a respeito e está aberto a encontrar a melhor solução. A única coisa que, no entanto, cabe recomendar ou propor de fato é que a escrita do Hunsrückisch, como de qualquer língua, precisa se orientar por um padrão mais ou menos compreensivo e considerar diferentes perspectivas em que a escrita é usada na sociedade. Assim, se alguém individualmente escrever determinada forma que julga mais adequada, por exemplo preferir escrever schraive ao invés de schreiwe, tem esse direito e deve fazê-lo, porque é sua convicção que está em jogo. Mas, para fixar de fato um padrão de escrita coletivo, não se pode desviar a tal extremo de um padrão, que desconsidere o princípio do diálogo com a história, as diferentes variedades do Hunsrückisch e áreas de atuação atingidas. Por exemplo, se escrevo Fenschter ou kannscht, estou limitando a leitura a um único tipo de falante e variedade do Hunsrückisch que apresenta mais chiado. Contrariamente, as formas escritas Fenster e kannst deixam ao leitor a possibilidade de escolher se, ao ler, prefere pronunciar o <s> com som de /s/ ou de /sch/. Mas não só isso.
6. Como assim?
Você perguntou como o ESCRITHU considera diferentes usuários e empregos do Hunsrückisch. Como disse, para uma língua para a qual não existe ainda uma prática de escrita regular, é muito importante ter parâmetros que nos ajudem a decidir por que escrever de um jeito pode ser melhor e mais vantajoso, no sentido global, do que escrever de outro modo. Nem sempre se tem já uma resposta clara; nem nós. Será a prática de escrita que irá fixar uma forma ou outra. E nem sempre se pode pensar em um uso particular momentâneo. Para uma necessidade momentânea, como uma lista de compras de supermercado, ou uma anedota, o que eu escrever provavelmente cumpre com a função mínima de se fazer entender. Mas quando se fala em política linguística de promoção do Hunsrückisch é preciso pensar em uma série de aspectos, de usuários e de áreas de uso. É uma decisão com repercussões mais amplas que envolve uma série de questões.
Por exemplo, em um futuro dicionário, por qual verbete os diferentes tipos de usuários vão procurar determinada palavra, no S, de Schneider, ou na letra X, de xnayda? Quem vai ler e quem queremos que nos entenda? São apenas os falantes de Hunsrückisch? Ou também historiadores e genealogistas (em parte, não falantes do Hunsrückisch, mas com certo conhecimento do alemão-padrão) que têm de decifrar cartas de imigrantes em que aparecem trechos em Hunsrückisch? Ou ainda alemães e brasileiros, ou descendentes que querem “reaprender” a língua? Estes possuem normalmente uma familiaridade com uma tradição de escrita baseada no Hochdeutsch. Uma escrita fonética é praticamente indecifrável para esse público-alvo. Considero, por isso, ilusório e contraprodutivo pensar apenas nos falantes e inventar uma escrita desvinculada da tradição escrita em alemão. Para revitalizar o Hunsrückisch e reavivá-lo (ou reaprendê-lo), não podemos nos contentar apenas com os falantes fluentes, que cada vez mais vão se tornar uma exceção. Eu mesmo venho me reeducando a cada dia no Hunsrückisch, redescobrindo palavras como Donnerkeil, que eu ouvia na infância. Portanto, também outros potenciais interessados, como jovens que, quando criança, se negavam a falar a língua e que hoje pensam de modo diferente, são um tesouro incomensurável que não pode ser ignorado. Ganhar a adesão desse público-alvo vale ouro. Afinal, que emocionante seria a sociedade se interessar em conhecer melhor as línguas minoritárias faladas à sua volta! Dar ouvidos é o mínimo que se espera e é uma consideração do mais alto valor e significado.
7. Sabe-se que existem muitos escritos em alemão-padrão em municípios onde se fala Hunsrückisch, desde nomes de ruas, estabelecimentos comerciais ou lápides de cemitérios. Como o ESCRITHU lida com isso?
Eu me ocupo com o tema do Hunsrückisch desde os meus tempos de estudante do curso de Alemão, na UFRGS. Infelizmente, tive oportunidade de aprender a ler e a escrever em Hochdeutsch somente quando entrei na universidade. Eu achava, nessa época, que na colônia só havia o meu “dialeto”. Mas, hoje, eu percebo que não é verdade. O Hochdeutsch esteve presente o tempo todo ao lado do Hunsrückisch: nos sermões do padre, nos almanaques (Jahrbuch der Familie) amontoados na escada que dava para o sótão da casa do meu avô, no canto, nas orações e nos versos orais. Eu só estava confundindo ou pensando apenas no alemão ensinado como língua estrangeira, que muitas vezes fecha os olhos ao alemão local presente na comunidade. Hoje, eu percebo que cada uma dessas variedades assume uma função própria. O Hunsrückisch e o Hochdeutsch, contudo, se complementam e continuam se complementando. Em muitos casos, em localidades que receberam imigrantes tardios, vindos depois de 1850, fala-se um Hunsrückisch, ou um alemão muito próximo do Hochdeutsch, ou alemão-padrão. Fala-se “die Leut veliere kein Taach im Lebe”, ao invés de “die Leit veleere kee Tooch im Lewe”. Não se pode, portanto, achar que o Hunsrückisch é o único fim da educação linguística. Daí uma escrita que serve ao duplo propósito de aprender o Hochdeutsch e o Hunsrückisch. E é essa compreensão que norteia a posição e o padrão de escrita do Hunsrückisch elaborado pelo ESCRITHU.
8. É possível aplicar o ESCRITHU para outras finalidades, como por exemplo no ensino de Hunsrückisch na escola? O que precisa-se considerar para isso?
Eu já mencionei uma série de argumentos que recomendam justamente o padrão e os princípios do ESCRITHU, para implementação no ensino. A dimensão pedagógica e reflexiva sempre foi uma preocupação nossa. Mas, em si, o ensino de Hunsrückisch na escola é um tema complexo e depende da mobilização da comunidade (local e escolar). Mais preciso é, ao meu ver, defender que a “língua do aluno” merece e necessita de um espaço na escola. Faz muita diferença explicar que, na escrita de lenne ‘aprender’ (compare-se com lernen), os dois <nn> significam que a vogal que vem na frente é curta, e não longa, como em lehne ‘emprestar’, onde o <h> seguinte serve para dizer que o <e> é longo, como em Bohne, wohne, ohne, gehn, stehn, Hoohn. Enfim, promover o autoconhecimento da língua da família, como ela funciona, e dar subsídios como uma técnica de escrever lógica, para refletir e registrar os sons e estruturas da sua língua, favorece sem dúvida a aprendizagem – de modo geral – e contribui para o desenvolvimento cognitivo e a autoestima positiva dos alunos. As pesquisas estão aí para comprovar isso: quanto mais línguas conhecemos, mais facilidade temos de aprender novas línguas. Uma escrita como a do ESCRITHU serve justamente como instrumento para autoaprendizagem da sua língua. Portanto, mais do que defender o ensino de Hunsrückisch na escola, julgo importante defender a consideração e inclusão da língua do aluno nos processos de aprendizagem, no sentido de organizar o seu conhecimento linguístico e de uma “abertura para as línguas e o plurilinguismo de modo geral”. Isso vale não apenas para as disciplinas específicas de língua, mas para todo o currículo, pela razão simples de que as habilidades linguísticas desempenham cada vez mais um papel central no mundo moderno. Em todas as áreas.
Cléo Vilson Altenhofen possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1986), mestrado em Letras pela mesma Universidade (1990), doutorado em Germanística pela Johannes Gutenberg-Universität de Mainz, Alemanha (1995) e pós-doutorado na Christian Albrechts-Universität de Kiel, Alemanha (2003-2004), com bolsa da Fundação Alexander von Humboldt. Atualmente, é Professor Titular do Departamento de Línguas Modernas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, na pós-graduação, atua na linha de pesquisa de Sociolinguística.