Curso na Unesc quer manter viva a língua guarani, um dos idiomas mais falados no Mercosul

Foto: AgeCom Unesc

 

Uma das marcas que constituem a identidade cultural de uma nação é o idioma falado por seus membros. O Brasil, colonizado por Portugal, é conhecido pelo senso comum como um país monolíngue, em que o único idioma falado é o português. Enquanto isso, no Paraguai e na Bolívia, o Tupi-guarani é uma das línguas oficiais, e está entre as mais importantes da América Latina. Para tentar manter vivo esse idioma, a Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc) lançou o curso de Introdução à Língua e à Cultura Guarani.

O Brasil é o país que possui a maior população guarani entre os países sul-americanos e, ainda assim, não reconheceu a língua indígena como parte do seu repertório oficial. Jacaré, paçoca, piranha, sabiá – essas são algumas das diversas palavras presentes no vocabulário dos brasileiros que derivam de uma língua que possui raízes antigas: o Tupi-guarani. Quando a esquadra de Pedro Álvares Cabral desembarcou na costa brasileira, o país ainda se chamava Pindorama, nome que em tupi significa “terra/região/lugar das palmeiras”.

Indicadores do censo demográfico de 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), demonstram que o país possui cerca de 1,7 milhão de indígenas situados em mais de 4,8 mil municípios do território brasileiro, sendo que a maior parte reside na região Norte do país. No ranking dos estados com maior população indígena, Santa Catarina se encontra na 17ª posição, com mais de 21,5 mil nativos. Essa população é composta por três povos distintos: os Kaingang, os Laklãnõ/Xokleng e os Guarani. Deste último grupo, estima-se que existam cerca de 2 mil membros nas terras catarinenses.

Formado em arqueologia e história, o professor da Unesc Juliano Bitencourt Campos conta que desde a graduação teve contato com temáticas indígenas. Atualmente, o foco é a pesquisa sobre ocupação dos povos originários. Foi ele quem orientou o aluno Fabiano Alves (ou Kárai, nome em Guarani), primeiro indígena a se formar na Unesc pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (PPGCA). O professor explica que Fabiano faz parte da etnia Guarani Mbyá, caracterizada principalmente pelo dialeto falado por seus membros.

“É importante entendermos que o Brasil tem 274 línguas com dialetos diferentes, e essas línguas são divididas por troncos linguísticos. O guarani, que dentro da língua há a divisão dos dialetos – Mbya, Nhandewa e o Kaiowa – é do tronco linguístico tupi. Os Laklãnõ/Xokleng e os Kaingang, também presentes aqui em SC, não são do tronco tupi, eles são do tronco Macro-jê, da língua Jê. Essas duas línguas (Guarani e Jê) são divididas por troncos linguísticos”, explica. Juliano utiliza um comparativo para entender melhor essa diferenciação: o caso do português e do espanhol, que são línguas parecidas e provém do mesmo tronco, enquanto o alemão e o holandês são de uma outra divisão, ainda que ambos pertençam ao mesmo tronco.

Essas definições não apenas diferem os grupos linguísticos, mas também outras características dos povos originários. “Os Tupi-guarani e os Tupinambás são do mesmo tronco linguístico. Lá pelo ano 1500, no Brasil, os franceses ficaram na região entre Salvador e Rio de Janeiro, mais ao norte do país, enquanto os portugueses ficaram mais na região onde fica o estado de São Paulo. Os portugueses encontraram os tupi-guarani e os franceses os tupinambás. Na história, os tupinambás são mais aguerridos, mais fortes, eles confrontavam e iam à guerra. E, então, os franceses não conseguiram fazer aqueles processos de invasão que os portugueses fizeram, porque os portugueses encontraram os tupi-guarani: mais dóceis, que são de articular, de negociar”, pontua Juliano.

A professora Normélia Ondina Lalau de Farias é coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi) da Unesc, que foi fundado há 18 anos. Para ela, a luta de resistência à dominação portuguesa contribuiu para a criação de novos dialetos no país. “Nós temos a chegada dos povos africanos, a formação dos quilombos e tivemos um reforço no sentido de união desses povos, que vieram da diáspora africana, mais os povos originários. Viviam nos quilombos harmonicamente os indígenas, os negros e alguns europeus que não concordavam com o sistema escravocrata. Por isso, eles tinham que encontrar uma forma de se comunicarem, então em alguns momentos, dialetos africanos se sobressaíram. A linguagem guarani, também aliada à questão do português de Portugal, traz a riqueza do nosso vocabulário, em que usamos muitas expressões que são do guarani, outras que são de origem africana mesclada ao português”, expõe Normélia.

Indígenas no ensino superior
O Programa de Equidade Racial da Unesc, lançado em 2022, busca ampliar o acesso às bolsas de estudos para cursos de graduação, contempla estudantes negros (pretos e pardos) e indígenas. Normélia comenta que esse programa foi a porta de entrada para os indígenas da região ao curso superior. “A Unesc conta hoje com 12 alunos indígenas, em diversos cursos da universidade, que não são aldeados (estão fora da aldeia). Em 2019, teve a chegada do estudante Fabiano Alves, que faz parte da aldeia de Imaruí (Tekoá Marangatu) e que foi contemplado com uma bolsa por meio do programa, possibilitando a ele fazer seu mestrado em Ciências Ambientais”. Fabiano foi o primeiro mestre indígena formado pela Unesc, e no início de julho desse ano, publicou seu primeiro artigo em revista especializada sobre o modo de vida Guarani na terra indígena Tekoá marangatu, em Imaruí.

Neste ano, o Neabi apresentou o “6º Abril Indígena – Aldear a Universidade para a Justiça Social”, uma jornada acadêmica organizada em parceria com o curso de História, que contou com uma extensa programação de atividades, como a exposição de autores indígenas, seminários com acadêmicos e rodas de conversa. Nesta edição, também ocorreu o lançamento do livro ‘Oboré: quando a terra fala’, uma coletânea de sete autores das etnias indígenas Xacriabá, Fulni-ô, Tapuia, Tukano, Laklãnõ/Xokleng, Kaingang e Guarani, que dá voz à arte e à cultura ancestral dos povos originários. Alguns exemplares podem ser encontrados na Biblioteca Central Professor Eurico Back, da Unesc.

A escritora Martha Batista de Lima foi a responsável por reunir os textos. Já na apresentação do livro, ela evidencia as injustiças enfrentadas pelos povos indígenas nos últimos séculos: “Foram necessários quinhentos anos para que os povos originários tivessem direito a uma relativa cidadania nesta nação hoje chamada Brasil. Foram muitas lutas para haver o reconhecimento do direito aos seus territórios na Constituição brasileira de 1988”. Oboré, nome que dá título à obra, é um instrumento de sopro que os tupinambás ancestrais utilizavam para chamar seu povo quando era necessário fazer uma comunicação, um pacto ou proposição a todos da aldeia. Quando o líder tocava, os membros se reuniam para ouvir o que ele tinha a dizer. Com os textos selecionados, Martha reúne diferentes vozes de lideranças indígenas dos quatro cantos do país. Uma contribuição para que essas e outras histórias, por muitas vezes apagadas e esquecidas, sejam preservadas.

Arte em grafite na parede da Escola Indígena de Ensino Fundamental Tekoá Marangatu evidencia a relação dos povos originários com o mundo moderno, ainda que busque preservar a sua cultura. (Crédito: EIEB Tekoá Marangatu/Arquivo)

Mantendo a cultura viva
Com o propósito de ampliar a compreensão sobre a riqueza cultural dos guaranis, e de estreitar os laços entre os indígenas e os não-indígenas, a Escola de Idiomas da Unesc lançou, esse ano, o curso de Introdução à Língua e à Cultura Guarani.

Segundo a assessora pedagógica da Escola de Idiomas da Unesc, Dayane Cortez, as aulas devem começar ainda este ano, assim que completar a primeira turma. Até agora, os alunos matriculados para o curso são, em sua maioria, não-indígenas. Os principais interessados são acadêmicos dos cursos de licenciatura, mestrandos das linhas de pesquisa de antropologia e história, além de professores da própria universidade.

Dayane cita que a Unesc prevê, dentro das políticas de educação, o contato dos alunos com a história e a cultura afro-brasileira e indígena. “Nosso quadro da Escola de Idiomas conta com o professor Luís Alberto González Rolón, que tem formação em Letras e nasceu no Paraguai. As primeiras línguas dele são o guarani e o espanhol. Dentro da programação do curso, está previsto a participação de indígenas da região que já nos acompanham ou têm algum contato com a universidade”, comenta a assessora.

Professor nos cursos de história, geografia e biologia, Juliano Bitencourt leciona disciplinas que dialogam com os povos originários. Para ele, a presença do curso sobre o tupi-guarani na cartela de idiomas da Unesc promove inclusão e diversidade. “Colabora na compreensão de outras culturas como é o caso desse tronco linguístico, representado pelo tupi. A universidade, fazendo isso, dá sinais para a comunidade interna e externa que ela se preocupa com a diversidade”, comenta. “Isso é o ponto chave: a diversidade do outro. Isso pode colaborar na compreensão, pode estar criando grupos de pessoas que têm uma sensibilidade, uma percepção para criar também políticas voltadas para essas populações que ficam à margem da sociedade”, conclui.

Por que o Brasil não tem o guarani como língua oficial?
Para compreender melhor o porquê de o guarani ser reconhecido como idioma oficial no Paraguai e na Bolívia, mas não no Brasil, o professor recorre à história da colonização. “Há uma complexidade na questão. Em 1820, o governo brasileiro fez uma política para trazer as pessoas da Europa, para ‘branquear’ o território e ocupar os espaços ‘vazios’. Aqui para eles era vazio, apesar de existir açorianos e muitos Laklãnõ/Xokleng. Eles queriam ocupar espaços para não acontecer o que acabou acontecendo no Paraguai, que tem línguas-mães indígenas. A população do Paraguai é quase 90% indígena”, explica. “O Brasil foi dominado por Portugal, e os outros países foram pela Espanha, que fez uma política de não colonizar, mas sim de tirar tudo que tinha de proveito. No Brasil, os indígenas foram perdendo seus espaços, foram colonizados, assassinados”, completa.

“Aqui na região, por volta de 1900, os gestores contratavam pessoas para exterminar os indígenas, chamados de bugreiros. A mesma coisa que aconteceu com os bandeirantes, pessoas que entravam no interior para matar os indígenas ou pegar para escravos. No Brasil tivemos essa política de higienização étnica. Por isso o Brasil é diferente”, ressalta Juliano. O professor ainda defende que esse é um dos motivos pelos quais quem ocupa espaços nas universidades e no poder, não são os indígenas. “No primeiro governo de Getúlio Vargas (1930), ele fez isso também: um processo de proibir línguas. Ele exigiu que a única língua fosse o português, tanto que os colonos italianos e alemães também sofreram, porque não podiam falar na sua língua materna, e os indígenas sofreram mais ainda”, enfatiza.

A palavra “guarani”, na língua dos povos originários, significa guerreiro indomável ou povo livre como tempestade. Atualmente, o guarani é a língua oficial do Paraguai (ao lado do castelhano), é uma das três línguas oficiais para o trabalho no Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), e língua co-oficial do município de Tacuru, no Mato Grosso do Sul.

Inscrições abertas
A Escola de Idiomas da Unesc está com as inscrições abertas para o curso de Guarani. As aulas têm foco na fala, compreensão, leitura e escrita da língua, além de trabalhar o contato com a cultura indígena. Para mais informações, os interessados podem mandar uma mensagem pelo WhatsApp da escola no número (48) 3431-4533. Para atendimento presencial, a Secretaria da Escola de Idiomas localiza-se na Unesc, no Bloco L, Sala 2, e o horário de atendimento é das 13h às 17h e das 18h às 22h.

Fonte: AgeCom Unesc.

 

 

 

 

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