Sik Lee Dennig quer salvar o cantonês e nem a saída de Stanford a vai afastar do caminho
A única professora de cantonês na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, não viu este ano o contrato renovado, alegadamente devido a cortes orçamentais decorrentes da pandemia. Racismo e a marginalização de línguas minoritárias são razões apontadas por Sik Lee Dennig para o fim do currículo que tem vindo a desenhar desde finais dos anos 1990. Em mãos, a professora de Hong Kong tem já um projecto para a salvaguarda do idioma.
Catarina Domingues
Devia chamar-se ‘Jasmim’, mas acabou registada como ‘Lótus’. Um erro da mãe, do funcionário da conservatória ou dos dois, que comunicavam em diferentes línguas: cantonês e xangainês. Sik Lee Dennig só descobriu vários anos mais tarde, ao resgatar o certificado de nascimento para os exames escolares, que a responsável pela sua graça era, afinal, a flor de lótus.
A académica, professora na Universidade de Stanford, foi sempre migrante, mesmo na terra onde nasceu. Natural de Hong Kong, com vida feita entre a comunidade do leste da China – a família é de Ningbo – cresceu a falar xangainês e mandarim. A língua dominante da então colónia britânica, o cantonês, chegou apenas com a instrução formal, nos primeiros anos de escolaridade, e o inglês, que começou a leccionar após o secundário, levou-a, em 1981, à migração efectiva.
Partiu para a América do Norte: no Canadá, licenciou-se pela Universidade de Alberta; nos Estados Unidos, completou o doutoramento em Educação e Linguística por Stanford, para depois descer no mapa até à Universidade East Carolina, em Greenville, onde deu aulas e se viu no âmago da “muito estereotipada” ‘American South’, região sudeste e centro-sul da nação. “Parecia que tinha ido para outro país”, conta. “Havia racismo? Sim, havia, mas esta experiência esmagadora foi positiva”. Pelo caminho, passou ainda pelo Japão, onde aprendeu ‘ikebana’, leccionou na Universidade de Tsukuba, em Ibaraki, e voltou a desconstruir barreiras e estereótipos – “existe a ideia de que os alunos japoneses são todos muito bem-comportados”.
A discriminação, nota, foi permanente neste percurso, que a levou de volta a Stanford, em 1997, onde criou o primeiro currículo formal de cantonês. A partir de Agosto, e após mais de duas décadas naquela universidade, Sik Lee Dennig abandona a instituição, alegadamente por cortes orçamentais decorrentes da pandemia.
Em entrevista ao PONTO FINAL, a professora fala sobre a importância da continuidade do ensino do cantonês, um idioma que considera marginalizado num momento de ascensão do mandarim. “O cérebro é perfeitamente capaz de lidar com mais do que uma língua”, nota Sik Lee, ela que optou por carregar até aos dias de hoje as duas versões do nome do meio no certificado de nascimento: numa chama-se ‘Lótus’, noutra ‘Jasmim’.
Stanford não renovou o seu contrato. Que justificação lhe foi dada?
No início, não entendi a razão, fiquei muito chocada e pensei que se devia aos cortes no orçamento. Tinha de se dividir o mal pelas aldeias e preparei-me para me suspenderem uma turma, mas, na verdade, nunca pensei que não renovassem o contrato. Sou a única professora [de cantonês] e a não renovação implica a eliminação do currículo. Mais tarde, a directora do Centro de Línguas disse-me que, dependendo do interesse dos alunos ou do dinheiro, talvez fosse possível oferecer um curso trimestral. Quando disse aos meus alunos, claro que ficaram abalados, tal como eu. Há aqui uma sensação de traição. Como se atrevem a virar-me as costas, eu que sou antiga aluna de Stanford, fiz aqui o meu doutoramento e dediquei 20 anos a construir este currículo? Não fui consultada, não houve debate nem com o coordenador de língua chinesa, que também ficou surpreendido.
Não acredita que seja apenas para salvar o orçamento?
Não, se fosse só por isso não se destinava apenas a certas línguas.
Nasceu a campanha ‘Save Cantonese at Stanford’, que defende a importância de línguas minoritárias como o cantonês, num momento de tensão política e ódio contra os asiáticos.
Diria que [uma das razões da decisão de Stanford] prende-se com racismo, consciente ou não consciente. Há anos que digo a uma das directoras associadas do Centro de Línguas que o cantonês, o mandarim, o xangainês e todos estes idiomas [chineses] são línguas regionais com uma história única e combinação de factores linguísticos ímpares. Não consegui fazer com que ela entendesse. Dou-lhe um exemplo: há dois ou três anos, na celebração do Dia Internacional da Língua Materna, preparámos no centro uma série de artigos para apresentar as nossas línguas. Fiquei contente porque o cantonês foi seleccionado. Estabeleceu-se, então, uma comissão para supervisionar estes grupos de línguas e a pessoa em causa pediu a um colega branco – que ensina uma língua europeia – para supervisionar a série de línguas asiáticas. Isto diz-nos muito sobre a mentalidade. Nós somos insignificantes, não somos importantes, basta observar as línguas onde houve cortes: cantonês, vietnamita, filipino. Eles vêem-nas como línguas marginais.
Sente pressão de Pequim para se impor o mandarim?
Penso que não, trata-se de ignorância e de pouco entendimento relativamente a culturas com as quais não estão familiarizados. [Stanford] escuda-se na questão do número de inscrições, mas está a atirar-nos areia para os olhos. Nos Estados Unidos, o número de inscritos em línguas estrangeiras tem vindo a cair significativamente desde a crise financeira, em 2008. Stanford não ficou imune. Há duas línguas que não seguiram esta tendência – linguagem gestual e coreano. Ou seja, o centro perdeu desde 2009 até antes da pandemia mais de 30% de inscrições. No início da queda, o cantonês teve uma subida e, durante alguns anos, tivemos números altos, até seguir a mesma tendência decrescente, mas nunca ao nível de certas línguas.
Com a pressão da campanha e a petição, a faculdade anunciou a manutenção de dois cursos, em vez dos quatro actuais, e um professor contratado a tempo parcial. Aceita as condições?
Não aceitei a proposta, em primeiro, porque deixaria de ter direito aos benefícios. Nos Estados Unidos, o sistema de saúde é extremamente caro e estimo [que nestas circunstâncias] me vá custar cerca de mil dólares por mês.Em segundo, porque são 36 dólares por hora. Estou disposta a partilhar as dores, dêem-me três cursos e metade dos benefícios, mas não este trabalho remunerado à hora. A minha contraproposta foi recusada. Houve mesmo muita ira neste caso e não apenas dos estudantes, mas da faculdade. Temos um programa de estudos internacionais de graduação – Hong Kong é um dos destinos – e temos outros que exigem aos estudantes falarem cantonês. Quando os responsáveis [dos programas] se aperceberam o que se estava a passar ficaram surpreendidos de não terem sido consultados. Dou aulas há muitos anos e fui eu que criei todos os materiais. Não há manuais por aí que vão ao encontro das necessidades dos estudantes sino-americanos de nível avançado. Além disso, nas minhas aulas, falamos sobre cinema e eu ensino, por exemplo, a história da música popular, que está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento da identidade de Hong Kong. Não é maravilhoso?
Como começou a leccionar em Stanford?
Quando eu e meu marido decidimos formar família, não sendo nós da mesma etnia e com perspectivas de educar uma criança de dupla etnia, pensámos regressar à Califórnia – a Bay Area é tão diversa. Quando chegámos, Stanford estava à procura de um professor de cantonês, depois de vários anos a pedir-se para criar um curso. Corria o ano de 1997, foi aberta uma turma e, logo no primeiro dia de aulas, estava cheia. Em geral, só permitimos turmas de 15 a 16 alunos nas aulas de línguas e, por isso, decidimos abrir dois cursos para iniciados. Diria que cerca de metade dos alunos vem de agregados familiares onde se fala cantonês – são chamados de ‘falantes de uma língua de herança’ (heritage speakers, em inglês), ou seja, os pais e os avós falam cantonês – e cerca de metade fala mandarim.
Porquê este interesse no cantonês nos anos 1990?
Diria que, no início, 90% dos meus alunos vinham de famílias onde se falava cantonês. Para alguns herdeiros da língua, aqui criados, os pais sentiram que era mais importante aprender inglês. Noutros casos, a família insistiu no cantonês, mas assim que foram para a escola… O meu filho, por exemplo, quando começou a interagir com outras crianças, mudou para o inglês, tal era a necessidade de assimilação, de se identificar com os seus pares. No entanto, aquilo que chamamos de ‘minorias visíveis’ – os asiático-americanos são minorias visíveis – estão bastantes visíveis, apesar de sentirem constantemente que não pertencem aqui. Já deve ter ouvido falar no ódio contra asiáticos desde o início da pandemia. O governo anterior chamava à covid-19 de ‘vírus de Wuhan’ ou ‘vírus chinês’.
Sentiu hostilidade?
Nunca tinha sentido desta forma e já estou cá há muito tempo. Nunca me preocupei com a minha segurança e agora ando com gás pimenta na mala.
Houve mudanças com o novo governo?
Lamentavelmente não. Sou democrata, votei em Biden e ele está a fazer coisas muito boas no plano nacional, mas olhando para as políticas para a China, mudaram muito? Não. Por isso, é bastante difícil para muitos americanos que não entendem a história sino-americana separar as duas coisas, ver que a China é a China. Podemos ter problemas com as políticas nacionais, com os relatórios dos direitos humanos, mas os sino-americanos não têm nada a ver com isso. Muitos americanos não fazem a mínima ideia do contributo que os nossos antepassados deram a este país. Os chineses começaram a vir em massa a partir de 1850, durante a corrida ao ouro e, depois, em 1860, ajudámos a construir a linha férrea [Primeira Ferrovia Transcontinental, que liga as costas do Atlântico e do Pacífico]. A certa altura, cerca de 90% das pessoas a trabalharem na secção oeste eram chineses e fizeram a parte mais difícil. Como resultado, ficou concluída antes do calendário estabelecido e, se não estivesse terminada, a economia dos Estados Unidos não teria crescido da forma que cresceu.
Na campanha ‘Save Cantonese at Stanford’ sublinha-se a dívida de Leland Stanford, responsável pela construção da linha e fundador da universidade, para com milhares de chineses explorados e maltratados. Uma comunidade importante nesta região.
Sim, Leland Stanford fez fortuna à custa disso. Em relação à localização, estamos perto da Chinatown de São Francisco, a primeira da América do Norte. Só por razões geopolíticas e históricas Stanford deveria erguer um centro para estudar estes trabalhadores do caminho-de-ferro, os seus descendentes e a língua que a vasta maioria fala nas zonas de origem, a região do Delta do Rio das Pérolas. Cerca de 20% dos residentes de São Francisco são falantes de cantonês.
O cantonês está a perder terreno para o mandarim?
Sim, está. Nos anos 1990, e mesmo no início do século, quando comecei as aulas, a vasta maioria não falava mandarim. Se tinham frequentado uma escola chinesa, era em cantonês. Tive uma aluna – ela é professora em Yale – que me disse que foi forçada pelos pais a aprender mandarim. Ela odiava e, quando entrou na universidade, fez a sua escolha, porque queria conseguir falar com a avó em Hong Kong. Eu ouvi muitas histórias assim. No meu caso, estive exposta ao mandarim quando era pequena porque os xangaineses e as comunidades do leste da China entendem mandarim. Via filmes e ouvia música com os meus pais em mandarim. Aprendi cantonês porque cresci em Hong Kong e também falo xangainês. Sou da opinião de que quantas mais línguas melhor. Todas as línguas são importantes para as respectivas comunidades que as falam. Entendo que tenha de haver um idioma comum para que os chineses das diferentes regiões possam comunicar entre si, não sou contra o ensino do mandarim, mas sou contra dizimar línguas étnicas, as línguas com origem na China. Não há necessidade de o fazer, porque o cérebro é perfeitamente capaz de lidar com mais do que uma língua.
Além de oficialmente o mandarim ser considerado uma língua e o cantonês um dialecto.
Facto que tem motivação política desde o primeiro dia. Começou no raiar do século. Utilizar uma língua como ferramenta de assimilação não é novo.
Criou a ‘The Cantonese Alliance’ para promover o cantonês. Como surgiu esta ideia?
Há muitas organizações pequenas e indivíduos a fazer muita coisa, mas estão espalhados. Eu quero juntá-los e formar uma aliança para preservar o cantonês. Há várias lacunas. Não existem histórias para crianças em cantonês, especialmente histórias que possam deixar orgulhosos os sino-americanos, histórias que ajudem a abordar o racismo. Também vou criar um manual avançado para os alunos de cantonês; depois disso passo para o nível intermédio. Para os iniciados há muita coisa por aí. Quando tudo isto alcançar uma determinada fase, vamos angariar fundos para o projecto e, se tivermos sucesso, formamos uma fundação ou organização sem fins lucrativos. O meu objectivo é angariar dinheiro para financiar e oferecer bolsas para escritores, artistas ou estudantes que queiram, por exemplo, viajar até Hong Kong. Posso fazer muitas coisas. Estou a pensar reformar-me e estes são os meus planos para os próximos 20 anos.
Que futuro reserva ao cantonês aqui no Sul da China?
Não é bom. O linguista [dos EUA em Hong Kong] Robert Bauer disse que o cantonês vai desaparecer daqui a duas gerações. Se cada geração tem cerca de 20 anos, isso quer dizer que em 40 ou 50 anos, se não formos proactivos, não sabemos o que se vai passar. Já se deve ter apercebido que até já se fala em usar caracteres simplificados em Hong Kong, o que não deixa de ser estranho porque, no Interior da China, há um interesse renovado nos caracteres tradicionais. Claro que isto tem motivações políticas. Depois da aprovação da Lei de Segurança Nacional, tem-se soltado uma bomba atrás da outra.
Como olha para estas mudanças em Hong Kong e Macau? Hong Kong e Macau são bastante diferentes. Quando falamos na relação com a China Continental, Macau tem uma ligação muito mais próxima. Por isso, nunca viveu os protestos de Hong Kong. Eu cresci na década de 1970, nesses anos lutámos contra o governo colonial britânico e, entre os estudantes universitários, o slogan era: ‘Entenda a China e preocupe-se com a sociedade’. Senti-me tão traída da primeira vez que li sobre a Guerra do Ópio, porque toda a informação que tinha até aí era a perspectiva britânica, dos livros da escola que chegavam do Reino Unido. Quando conheci o lado chinês, fiquei chocada. Temos de ser críticos com o que aprendemos. Foi assim que a minha geração cresceu, preocupávamo-nos muito com a China, até 1989, até ao massacre de Tiananmen. Eu estava colada à televisão com os meus amigos, era estudante em Stanford, e dizíamos a todos que o governo chinês não ia esmagar o movimento. Os chineses amam os jovens, nunca o fariam. Mas fizeram-no e nós sentimo-nos traídos. Mesmo depois de Tiananmen, quisemos dar o benefício da dúvida, esperávamos que a China crescesse, retirasse mais pessoas da pobreza extrema, mas nos anos mais recentes, especialmente com o governo actual, os meus alunos [da China Continental] têm as mesmas histórias para contar. Dizem que não é só em Hong Kong e que eles também se sentem esmagados.
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