Linguajar cuiabano, um dialeto de confluência indígena e europeia
O jeito cuiabano de falar carrega traços dos Bororos que habitavam região da Prainha da chega dos bandeirantes que se misturou o sotaque europeu
O termo “Ikuêbo” tem a tradução de “córrego da cor das estrelas” e vem do dialeto Bororo. Era a etnia indígena que habitava a região da Prainha à época da chegada dos bandeirantes no Centro-Oeste do Brasil, no século XVIII, mestre na pescaria com arpão e arco e flecha.
“O sentido provavelmente era para descrever o brilho do sol nas águas do córrego. ‘A cor das estrelas’ era o reflexo do sol, para um povo que era mestre na pescaria e habitava as margens do córrego”, diz a doutora em antropologia do imaginário, Cristina Campos.
Mas, também havia o espectro do ouro na região, o qual seduziu os bandeirantes na entrada da mata e os fizeram esquecer o objetivo da missão: capturar indígenas para a mão no litoral do País, onde estavam instaladas as capitanias hereditárias, neste período, em fase de declínio.
Por aí ficaram e ficou junto o som forte que acrescenta as letras “d” e “t” na pronúncia de algumas palavras – tchuva, cadju, catchorro. Esse jeito de falar tem origem na região norte de Portugal, de onde vieram os bandeirantes que lideraram a marcha para o interior Brasil mais de 200 anos após chegada dos europeus no litoral da América do Sul.
“Esse pessoal tinha influência de outras partes próximas ao continente europeu. A cultura mulçumana está presente na própria fundação de Portugal”, explica o escritor cuiabano Moisés Martins.
“Codjibó” é uma palavra do dialeto indígena Macro-Jê que significa “o rio dos peixes”. Hoje, a palavra transferida para a língua portuguesa via o dialeto cuiabano dá nome bairro, a uma grande área e a um rio – “Coxipó”.
“Quando os bandeirantes vieram para a região central do Brasil, foram guiados por índios Guarani, que falavam outro dialeto. E mais: os índios que habitavam a região hoje conhecida como a baixada cuiabana – Bororos, Guarani, Guatós e Bacairi, por exemplo – se comunicavam por meio de uma língua geral, que era diferente”, diz a doutora Cristina Campos.
O regionalismo
“Minina, num tê conto nada! Foi um ranca rabu (briga) danadu. Cumadre Filó pinxou (jogou) as vela qui tava nas mons e partiu prá riba de Ritinha, que empeitô (enfrentou) a cumadre”. (Trecho do livro “A força da fala no dizer cuiabano”)
A formação do dialeto cuiabano nasce da confluência de várias línguas e outros dialetos. O escritor Moisés Martins, autor de “A força da fala no dizer cuiabano”, explica que a língua espanhola em diversas variações e a língua portuguesa (de Portugal) estão na matriz, além dos dialetos indígenas.
“Algumas palavras espanholas também têm o som chiado do nosso ‘ixpia’. É o mesmo som que os cariocas falam nas palavras com ‘s’. O ‘tchuva de cadju’ tem traços do português mouro, e também aparece em outras regiões do Brasil”.
A regionalidade cuiabana aparece no sotaque e na invenção de outras palavras. “Nós não podemos dizer que Cuiabá tem língua própria, porque não é uma língua oficial a exemplo do português e do espanhol. Temos um dialeto riquíssimo que adaptaram para o regional”.
“Nosso corno é puramente português, cuiabano tem uma versão que pode parecer mais chula, mas faz sentido para quem vive aqui e não vê problema nisso. Por exemplo: ‘puta merda’ para falar que algo está bonito ou bem feito”, complementa.
A pesquisadora Cristina Campos diz ainda que outros traços marcam o jeito cuiabano de falar está na “indistinção de gêneros” e na troca do “l” pelo “r”.
“É característico de cuiabano falar ‘vô lá no mamãe, vô no mamãe. Não tem a distinção de gêneros como é feito na língua formal. E quando respondem a alguma coisa, ao invés de dizer ‘claro’, se diz ‘craro’”.
Processo cultural
Conforme Cristina Campos, o dialeto cuiabano começou a ter fortes influências com a chegada de migrantes vindo da região do Brasil, a partir da década de 1970. Para ela, o dialeto que ainda estava em construção começou a ser relegado por causa da rejeição.
“As pessoas que vieram para Mato Grosso na década 1970, dentro do programa Marcha para o Oeste, chegaram e acharam tudo muito feio, do cerrado e a mata no interior do Estado ao jeito de falar do cuiabano. E um dialeto que ainda estava em construção, em formação começou a se perder porque era considerado horrível, estranho”.
Em seu artigo “O linguajar cuiabano”, ela explica que o esmaecimento da fala cuiabana começou a ser notado por pesquisadores na década de 1980, e com a expansão da comunicação de massa, as características externas se acentuaram.
“Com a influência do rádio, da televisão e do mundo globalizado as particularidades linguísticas encontradas na baixada cuiabana vão desaparecendo e abrindo espaço para a unificação prosódica dos brasileiros”, pontua.
“Algumas comunidades mais isoladas do centro de Cuiabá falam fortemente o linguajar cuiabano e se orgulham disso, o que é importante. Elas buscar preservar o linguajar que aprenderam e que é falado no meio em que vive. O modo de falar para sobreviver precisa ser falado”.
Alguns termos cuiabanos, compilados por Moisés Martins
Abeíudo – curioso
Arca-caída – doença regional
Baguá – metido a valente
Bamu tchegá – convite para se aproximar
Banbeá – afrouxar
Cacoá – debochar
Canhá- evitar doação
Desimbestô – saiu correndo
Distrinchano – explicando
Imbuchada – grávida
Incafifado – incutido
Ladino – esperto
Leitero – puxa-saco
Malemá – mais ou menos
Mequetrefe – sem valor
Na bucha – na presença da pessoa
No ôio – no centro
Fonte: Circuito MT
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