Índios retomam luta por reconhecimento e querem lugar de protagonismo

Segundo o IBGE, em 2010, o Piauí possuía 2.944 pessoas que se autodeclaram indígenas; desses, 1.333 só em Teresina

 

Nada de penas, cocás, adereços pelos braços ou cintura. José Raimar, um índio da nação guajajara, veste uma blusa de mangas curtas de bom caimento, calça jeans, tênis e se apresenta com a serenidade de quem tem muito a contar. Seu principal argumento é sobre um processo de retomada que vem se solidificando a cada ano. Isso porque índios piauienses se organizam em busca do seu legítimo lugar de protagonismo dentro da história e ações desenvolvidas por governos e estudiosos também dão fôlego ao processo.

Raimar é natural do Maranhão, mas já mora no Piauí há muitos anos, onde constituiu família e redescobriu outros lados. Em Capitão de Campos, cidade localizada ao Norte do Estado, ele faz parte de uma das 60 famílias indígenas a ocuparem a região.

Mas a presença indígena não é exclusividade do município, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, o Piauí possui 2.944 pessoas que se autodeclaram indígenas; desses, 1.333 só em Teresina.

 “Quando a gente encontra um parente é uma emoção muito grande. Até pouco tempo, a verdade é que as pessoas tinham medo de se identificar com índios. Temos um histórico de massacre absurdo e, por isso, chegou-se ao ponto de dizer que no Piauí não tinha mais índio. Mas a presença do índio no Piauí é enorme, desde o índio que habitou essas terras e pescava no Rio Poti ao indígena de hoje, que está espalhado por todo o Estado e estamos lutando para identificar todos”, considera.

Raimar mora em Capitão de Campos com sua família (Foto: Elias Fontinele/O Dia)

Raimar mora em Capitão de Campos com sua família (Foto: Elias Fontinele/O Dia)

Apesar de ter direitos garantidos, os povos indígenas sofrem com a negligência ao cumprimento de tais conquistas. A Constituição de 1988 estabeleceu que a União tem competência privativa para legislar sobre populações indígenas. A carta magna garante o direito das comunidades indígenas de terem acesso ao Ensino Fundamental regular em língua portuguesa ou com uso de “suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”. Ainda de acordo com a Constituição, o Estado brasileiro tem o dever de proteger as manifestações das culturas indígenas.

“Nós não queremos viver de favor, queremos nossa nação sendo respeitada. Aqui no Piauí, o índio foi massacrado e queremos a verdade como na época da ditadura, queremos um reconhecimento histórico do que aconteceu”, afirma.

A missão de preservar sua herança e cultura, Raimar faz muito bem. Do casamento com uma índia piauiense, a filha foi batizada com nome em tupi guarani, Taila Y’zar, que significa dona das águas. Mas o índio faz questão de lembrar que muito do Piauí remete, sem a maioria saber, a termos e heranças indígenas. É o caso das cidades Piracuruca, Piripiri, Ipiranga, que têm em seus nomes relação com a cultura tupi guarani. “Você fala e se reconhece porque o tupi guarani está dentro da gente. É algo bom de falar, de ouvir. Costumo dizer que se você se reconhece brasileiro, você tem de se reconhecer indígena. Quem não é índio é estrangeiro”, finaliza.

Etnias dos povos indígenas do Piauí são cariri e tabajara

De Norte a Sul do Estado, a população indígena ocupa territórios que, apesar de não serem reconhecidos pela União, guardam as memórias de suas ancestralidades. No Piauí, são duas as etnias atualmente identificadas: os tabajaras, das regiões de Piripiri, Lagoa de São Francisco e Capitão de Campos, ao Norte do Estado, e os cariris em Queimada Nova, ao Sul do Estado.

A identificação veio de diversas fontes de pesquisa, como o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), a Coordenação Territorial Local (CTL) da Funai no Estado e do Projeto Piauí tem Índio Sim.

 Com pesquisas, Epifânio Ferreira identificou povos indígenas em mais de 30 municípios do Piauí (Foto: Elias Fontinele/O Dia)Com pesquisas, Epifânio Ferreira identificou povos indígenas em mais de 30 municípios do Piauí (Foto: Elias Fontinele/O Dia)

“Eu passei minha vida de estudo fundamental, universitário e até pós-graduações escutando que o Piauí não tinha índio, mas, com esse projeto que tive a responsabilidade de coordenar, o ‘Piauí tem Índio Sim’, percebi o quanto esse discurso estava errado”, destaca Epifânio Ferreira, coordenador do projeto que é encaminhado através da Secretaria Estadual de Saúde.

No Piauí, tem índio e, no trabalho de elaboração, desenvolvimento e conclusão foi contatado que o espectro é bem maior que o citado pelo IBGE em 2010. São cerca de seis mil índios distribuídos e identificados em 36 municípios piauienses.

“Começamos a elaborar o projeto após uma provocação na Conferência Nacional Indígena. Queríamos saber qual nossa demanda, quem são esses povos e o projeto foi trabalhado cuidadosamente nesse sentido. Foi dividido em três eixos centrais: diagnóstico institucional, levantamento epidemiológico e qualificação do profissional no sistema de saúde”, explica.

Sustentabilidade

A cada etapa, uma nova fronteira entre a negligência e as populações indígenas foi sendo quebrada. Segundo Epifânio, parte importante das atividades do Projeto sempre esteve voltada para as populações indígenas piauienses, visando um programa conjunto de sustentabilidade econômica, social, ambiental, saúde e educação que garanta a efetivação das políticas indigenista no Estado.

Foto: Folhapress

Foto: Folhapress

“Ao identificar quem são e onde estão esses índios, queríamos saber a causa das doenças prevalentes desses povos. Se não têm índios, porque eles morreram? Mas constatamos que eles têm as mesmas doenças do ‘cidadão comum’, como tuberculose, diabetes, câncer, hipertensão e outras”, afirma.

Epifânio destaca que, por vergonha de se identificar como índio e sofrer retaliações por isso, muitos indígenas negligenciavam a própria saúde. Por isso, uma das etapas do projeto foi a capacitação de agentes de saúde que atendessem essa comunidade nos 36 municípios identificados. Foram mais de mil profissionais que receberam as devidas orientações para alcançar as comunidades indígenas sem fomentar estereótipos ou pré-julgamentos.

 “Foi um trabalho grande, que envolveu a participação de muitos órgãos e especialistas. Estamos em fase final de lançar todos os resultados que conseguimos mensurar com esse trabalho. Mas uma certeza é que a população indígena do Piauí, hoje, é reconhecida”, finaliza.

 

Piauí não possui Distrito Sanitário Indígena

É fato que os cidadãos indígenas têm os mesmos direitos constitucionais de acesso ao SUS que os demais brasileiros. No entanto, esses povos têm um diferencial definido em Constituição: o estabelecimento de direitos a políticas públicas que reconheçam as suas especificidades. Isso inclui a atenção diferenciada à saúde e, nesse panorama, o modelo organizacional básico para a atenção à saúde indígena é o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). O Piauí é o único Estado do país que não possui um DSEI.

A organização em DSEIs permite um processo de planejamento e gestão adequado à realidade sociocultural e epidemiológica e à distribuição territorial das comunidades indígenas, permitindo um melhor atendimento e o suporte necessário à atenção diferenciada requerida por essa parcela da população.

“Teresina precisa implantar o seu Distrito Sanitário Especial Indígena. O Piauí não tem porque vem da história que aqui não tinha índio, mas é de direito dos povos indígenas e o nosso projeto também vem para efetivar a criação desse espaço de direito”, destaca Epifânio Ferreira.

 Essa atenção diferenciada deve contemplar não só a institucionalização de um espaço, mas o atendimento necessário para abordar de forma mais eficaz a população indígena, que, por conta de ter sido historicamente excluída de vários processos e direitos, tem o legado histórico de níveis altíssimos de morbimortalidade, com um número significativo de enfermidades que estão causando mortes na população indígena, quando comparados aos da população em geral. Isso indica a necessidade de um investimento específico na reversão das desigualdades atuais relacionadas à saúde.

Índios ainda vivem no Piauí, ao contrário dos discursos de extermínio (Foto: Folhapress)

Índios ainda vivem no Piauí, ao contrário dos discursos de extermínio (Foto: Folhapress)

“Muitos deles nos relatavam que, quando procuravam a saúde e se identificavam como indígenas, passavam por processos de constrangimento. Por isso, ter profissionais capacitados, que entendam suas especificidades e necessidades é tão importante. Infelizmente, mesmo com o projeto encaminhado, o cenário político não favorece a criação do DSEI. E isso é uma resolução que depende fortemente do Governo Federal”, afirma Epifânio.

Para elaborar o projeto de implantação do DSEI-PI, o secretário da Saúde, Francisco Costa, criou, em janeiro, uma comissão formada por representantes das Secretarias da Saúde e Educação, Universidade Estadual do Piauí (Uespi), Universidade Federal do Piauí (Ufpi), Fundação Nacional do Índio (Funai) e lideranças indígenas.

O estudo que baseou o projeto de criação da DSEI-PI foi realizado nos municípios de Lagoa de São Francisco, Queimada Nova e Piripiri, onde residem 178 famílias que se identificam como índios.

Pesquisador destaca que história de povos indígenas está sendo retomada

Extermínio. Por muitos séculos era essa a palavra que melhor definia quando o assunto de povos indígenas era debatido no Piauí. O tema era sacramentado, quase sempre, nesse único campo de vista, em que confirmava que os índios foram dizimados e o Piauí não possuía mais herança de seu povo. No entanto, pela contribuição de pesquisadores e resgate da historiografia indígena no Estado, o argumento tem se transformado.

O historiador João Paulo Peixoto é um dos que contribuiu para a ampliação do debate. Desmistificando a insistência do discurso, o professor tem artigo e livros publicados sobre o tema. Em seu discurso “A farsa do extermínio”, o pesquisador debate e critica os fatores que levaram a massificação da ideia de inexistência indígena no Estado.

 “Parecia que a coisa era travada em algo muito bem resolvido: os índios foram exterminados. Não há nada o que falar a respeito. E o que significava esse extermínio? Se a gente fizer um paralelo com o Ceará pela historiografia de lá ou a história propriamente dita dos índios de lá, também se falava de extermínio, mas isso foi reconcebido não só no Ceará mas em outros estados do brasil. Mas o Piauí ainda leva esse discurso adiante e ainda dentro da academia”, considera.

João Paulo Peixoto tem artigo e livros publicados sobre os índios do Estado (Foto: Elias Fontinele/O Dia)

João Paulo Peixoto tem artigo e livros publicados sobre os índios do Estado (Foto: Elias Fontinele/O Dia)

Com um resgate histórico, conclui-se que os índios tiveram importantes papeis dentro do processo de colonização piauiense. Foram impactados pelo processo de conquista de áreas pela coroa portuguesa, mas também tiveram consolidações de territórios importantes, como, onde hoje se localiza a atual cidade de Regeneração, que era considerada um vila indígena.

“Se você for atrás das pesquisas do passado indígena ainda é muito pouca. Algumas estão aparecendo. O problema é que para os historiadores mais antigos se você disser que aquele cara vestido, vereador, com a patente, era um índio, ele vai te olhar meio torto. Consequentemente, essas identidades passaram a ser negadas. O que estamos vendo agora? Uma série de comunidades no Brasil, principalmente no nordeste, que diante de um cenário político mais propício passaram a se assumir: “nós somos indígenas”, afirma.

 Para João Paulo, o conceito mais presente no debate indígena da atualidade é o de retomada. “Existem os índios do Nordeste que há 300 anos falam português e vestem roupas e não deixam de ser índios. Não existe um nível de ‘indianidade’ maior que outro. O índio que vive pelado em comunidade não é mais índio que o que vive na zona urbana. Isso está começando a ficar claro e presente dentre dos debates e faz toda diferença dentro do conceito de retomada”, finaliza.

Por: Glenda Uchôa – Jornal O Dia

Fonte: Jornal O Dia

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