Duarte Azinheira, diretor editorial da Imprensa Nacional. ‘Nós, portugueses, sofremos de hiperidentidade’

O SOL falou com o homem que dirige a editora do Estado, na altura em que se comemora os 250  anos da sua criação. Na Imprensa Nacional desde 2010, Duarte Azinheira tem sido responsável por retomar o papel mais interventivo, à imagem do que fez Vasco Graça Moura, nos anos 1980.

A concentração editorial marcou os primeiros anos do século XXI no sector do livro em Portugal, com o Estado a assistir passivamente. Nesses anos a Imprensa Nacional não se desviou um milímetro do que vinha fazendo. E parecia ter virado as costas ao seu período de ouro, nos anos 1980. Até há uns anos, esta ruminava no prado académico, restringindo a sua ação difusora aos textos canónicos, tendo feito muito pouco para assegurar espaço para a criação, particularmente nos géneros minoritários – Ensaio, Ficção, Poesia e Teatro -, marginalizados nos catálogos dos grandes grupos editoriais. Em 2010, Duarte Azinheira assumiu a direção editorial da instituição e, hoje, a Imprensa Nacional está a dar sinais entusiasmantes de que pretende reafirmar o seu papel na defesa de áreas essenciais da cultura quando os privados já não a asseguram.

Nestes 250 anos, o que se manteve inalterado no papel desta instituição?

Em primeiro lugar, a orientação clara de serviço público. A perspetiva institucionalista é algo muito relevante nas sociedades democráticas, mas em Portugal não tem grande tradição. Parece-me que no nosso país a INCM pode reforçar esse peso porque o seu compromisso com o serviço público se tem mantido independentemente dos regimes. Esta empresa trabalhou durante a monarquia, a República, o Estado Novo, e tem estado a funcionar durante a democracia, e sempre com o mesmo sentido de perenidade.

Há algum episódio que tenha sido marcante quando chegou a esta casa?

Não me esqueço que, quando comecei a trabalhar aqui, em 2010, convidado pelo então presidente do conselho de administração, Estêvão de Moura, ele me disse uma coisa de que nunca me esqueci e que tenho repetido a colaboradores mais jovens: ‘Não se esqueça que o senhor não vem para cá inventar a roda. Esta empresa existe há centenas de anos. Nunca se esqueça que a sua obrigação é entregar melhor do que recebeu. Isto não é uma corrida de sprint mas de estafetas’. Esta frase representa bem o que são instituições como esta. A nossa obrigação é permitir que as gerações seguintes possam continuar a usufruir do seu serviço, e um que seja cada vez melhor.

São também responsáveis pela produção das moedas, e não só para Portugal.

Sim. Esta empresa, que é uma sociedade anónima, inteiramente pública, é a fusão de duas empresas que foram autónomas até 1972. Hoje (4 de Julho), aliás, faz 46 anos que essa fusão aconteceu. Talvez as pessoas nem façam ideia, mas, hoje, a receita principal e que sustenta a empresa é a gráfica de segurança. Os documentos de soberania do Estado português são feitos aqui. O seu passaporte, cartão do cidadão, carta de condução… São documentos com uma enorme incorporação de tecnologia, e que obrigam esta instituição a ser uma empresa muito voltada para a tecnologia.

Não recebem qualquer subsídio público para fazer o plano editorial?

Não, nem para programar música na biblioteca ou criar prémios literários no espaço em que se fala português. Ou seja, é dos resultados operacionais de uma empresa pública moderna e bem gerida que se faz receitas suficientes para que, depois, possa haver devolução à sociedade. Gosto de referir este aspeto da rentabilidade da empresa porque depois, a outra parte, a edição, como se pode compreender, não é comercial, não é lucrativa.

Como a encara então?

É uma atividade apenas complementar daquilo que os editores privados fazem. O nosso papel aí é supletivo. Ou seja, sempre que os privados podem garantir uma edição, não há nenhuma razão para a INCM estar presente.

No tempo que esteve já à frente desta casa e mesmo daquilo que foi ouvindo sobre aquele que lhe antecedeu, há algum episódio ou crise que lhe pareça significativo?

Felizmente a empresa não tem passado por crises significativas. Mas há um momento anterior à minha chegada, e que envolve uma área que está hoje sobre a minha responsabilidade – o jornal oficial – que me parece relevante. Até 2006, o Diário da República era o mais importante negócio da INCM. Talvez se recorde que, até então, sempre que uma sociedade ou empresa mudava de sede ou fazia outro ato relevante, era preciso registá-lo no Diário da República. Isso foi uma coisa que acabou de um dia para o outro, por vontade do Governo. Ora, a empresa reagiu a isso e conseguiu transformar-se completamente, começando a investir na gráfica de segurança, tornando-se uma empresa de matriz muito diferente, muito mais tecnológica. Sendo hoje uma empresa que tem na sua equipa investigadores, engenheiros, pessoas que trabalham nessas áreas. E isso foi conseguido em muito pouco tempo.

Passando à atividade editorial, de há uns anos a esta parte essa função da INCM parecia ter hibernado. Houve uma figura central nessa ação, Vasco Graça Moura, que lançou uma série de coleções e títulos que teriam dificuldade em encontrar espaço em catálogos comerciais.

Essa leitura é correta. Vasco Graça Moura é, de facto, o pai da moderna edição na Imprensa Nacional. É difícil até tecer elogios à altura da sua intervenção cultural. Foi um grande escritor, um tradutor importantíssimo, um magnífico poeta, e um homem de uma erudição indiscutível, talvez até insuperável. E o Vasco foi um editor que marcou profundamente esta casa porque criou uma série de coleções novas. E editou grandes autores, os indiscutíveis, que pertencem ao cânone, ao mesmo tempo apostando em novas vozes. Fez edições especiais, com serigrafias numeradas e assinadas, fez uma série de coisas inovadoras para a época [anos 1980], estabelecendo parcerias com grandes instituições públicas e privadas… Foi um editor de tal forma competente e tão pró-activo que levou a que, muitas vezes, os editores privados se tenham queixado porque sentiam que a INCM estava a invadir o espaço editorial deles.

 

Acha que isso aconteceu?

Houve claramente momentos em que se cruzou a fronteira entre o que é o normal trabalho de preservação e o das edições de perfil mais comercial. Depois, quando o Vasco saiu, houve algumas pessoas que foram responsáveis por essa mudança de orientação. Uma figura que marca uma inversão clara é António Braz Teixeira, que foi presidente do conselho de administração durante quase duas décadas. Um homem muito ligado aos livros e à cultura, que tinha já sido diretor do Teatro Nacional, secretário de Estado da presidência de Ministros, enfim, um homem com alto perfil político, e que teve um entendimento diferente do que devia ser o papel editorial desta empresa.

 

Que papel seria esse?

Por um lado, um papel mais low profile, mais recolhido, e, depois, mais orientado por disciplinas que ele considerava especialmente relevantes, como a Filosofia, e particularmente a Filosofia portuguesa. Mas é bom dizer também que foram feitas coisas notáveis nesse período. Os grandes autores portugueses continuaram a ser editados, coleções importantíssimas como a obra de Aristóteles, iniciada por António Braz Teixeira, como tantas outras que foram reconhecidas e premiadas. Porém, havia um entendimento mais recolhido, e os livros tinham até um aspeto muito mais conservador. Achavam que, uma vez que o papel da INCM deve ser supletivo, não tinha de se preocupar com questões estéticas em relação aos livros. Ora, aí está uma coisa com que o Vasco se preocupava imenso. Nos anos 1980, a INCM trabalhava com os melhores designers e gráficos portugueses. Com a saída do Vasco isso foi uma coisa que se perdeu.

Um dos traços que ressalvou no vosso trabalho é a ideia de perenidade. Em que medida é que não faz já sentido falar em públicos elitistas simplesmente porque quando se fala de cultura e de uma cultura que pretende ser perene isso presume já um choque violento com a cultura contemporânea que tende cada vez mais para manifestações efémeras?

É um facto que a noção de cultura hoje é muito mais abrangente. A questão da perenidade é também vista já de um ângulo diferente. Nas sociedades contemporâneas tudo hoje se passa muito mais rapidamente, e nós temos tentado, em parte, adaptarmo-nos a isso. Hoje, temos uma coleção inteiramente dedicada ao design português. Isto seria uma coisa impensável há 20 anos. E apostámos nela porque entendemos que o design português é sem dúvida uma questão de cultura. Isso não nos oferece qualquer dúvida. Ainda por cima é um design de grande qualidade e com uma representação internacional cada vez mais importante. Acabámos também de lançar o segundo livro da coleção Ph, o do Paulo Nozolino. Passámos por isso a ter também, desde o ano passado, uma coleção inteiramente dedicada à fotografia portuguesa. Temos outra colecção chamada Grandes Vidas, que é dirigida ao público infanto-juvenil, e que resulta de uma parceria com uma das melhores editoras de livro infantil em Portugal, a Pato Lógico, e todos os anos lançamos quatro livros. Estão já todos no Plano Nacional de Leitura, e representa a nossa preocupação de dar a conhecer a um público mais jovem as grandes figuras portuguesas. E isto com os melhores designers portugueses. Estes livros têm ganho inúmeros prémios, e representam essa visão alargada da cultura. Dito isto, isso não significa que deixemos de ter ativa a edição crítica do Eça, do Camilo, do Pessoa, do Garrett, e que não se estejam a preparar novas edições de outros grandes autores portugueses. Ou seja, há um papel muito importante de natureza patrimonial, digamos assim. E, em relação a esse papel, a INCM não se pode afastar dele.

 

Estão a lançar uma série de prémios literários nos países de expressão portuguesa. O prémio Eugénio Lisboa, em Moçambique, terão também um em Cabo Verde…

Sim. Já tem as inscrições abertas. É o prémio Arnaldo França. Temos um em Timor, o prémio Ruy Cinatti. Vamos ter também em breve um prémio em São Tomé, que se chamará Almada Negreiros, e estamos a conversar com os nossos parceiros em Angola no sentido de perceber se poderemos criar um prémio em conjunto. Tudo isto se prende com o nosso papel de defesa e divulgação da língua. Todos estes prémios se destinam a divulgar obras escritas em português.

 

E como tem corrido no que toca à descoberta de obras de valor literário?

Tem sido diferente de país para país. Em Moçambique, onde o prémio foi instituído no ano passado, correu bastante bem. Tivemos trinta e tal candidatos, tivemos um júri muito qualificado, presidido por Ungulani Ba Ka Khosa, e pudemos atribuir um primeiro prémio e uma menção honrosa. Quanto a Cabo Verde, tenho esperança de que corra muito bem. O prémio resulta de uma parceria com a Imprensa Nacional de Cabo Verde e admito que vá correr muito bem até porque em Cabo Verde há uma grande apetência pela cultura. Já em Timor tem sido bastante mais complicado. O prémio Ruy Cinatti foi o primeiro que instituímos. Já lá vão uns seis anos e só por duas vezes é que conseguimos atribuir prémios. Temos um júri presidido por Carlos Reis que, na maioria dos anos, tem achado que não existem propostas suficientemente interessantes para poderem ser editadas. Estamos a tentar olhar para o prémio de outra forma e desenvolver mais parcerias locais para o promover melhor, mas tem sido complicado.

 

O novo Prémio Camões, o escritor cabo-verdiano Germano Almeida disse numa entrevista há dias que, em Cabo Verde, hoje, só cerca de 10% da população do país fala português. Também me foi dito por um promotor de eventos culturais que tem viajado pelos países de língua portuguesa que hoje em Timor é difícil encontrar quem se saiba fazer entender em português. Fala-se à boca pequena num grande equívoco em relação à difusão desta língua, pois se os materiais de promoção dizem que o português é uma das cinco línguas que irá ter mais falantes no mundo – fala-se em 500 milhões até 2100 -, na verdade, em muitos destes países, parece haver cada vez menos prevalência do português face às outras línguas nacionais.

Tenho um conhecimento relativamente profundo e já com alguns anos de experiência no que toca a esse assunto. Nesses países o português convive com uma série de outras línguas nacionais. Moçambique tem imensas línguas e a vantagem do português é que funciona como língua franca, permitindo que toda a gente depois se possa entender. Isto não quer dizer que no dia-a-dia todas as pessoas utilizem o português. E há, além disso, realidades aqui completamente diferentes. Timor é efetivamente uma realidade diferente. Quando nesse país encontramos uma pessoa escolarizada e que ande pelos 60 anos ou mais, garantidamente ela vai falar bem português. Essa é a experiência que eu tenho. Isto explica-se porque aquela foi uma pessoa que foi alfabetizada em português. Depois há todo um período subsequente marcado pela ocupação indonésia e em que, naturalmente, os timorenses deixaram de aprender português. Era, aliás, bastante grave se fossem apanhados a falá-lo. Por isso, as pessoas que nasceram nesse período falam muitíssimo mal português. Mas isto percebe-se porque têm a tal idade em que a ligação é mais forte à Indonésia, tendo sido nesse país que muitos estudaram. Mas a partir do momento em que Timor se tornou independente, o português ganhou um novo alento, e o próprio Estado português apoiou a sua reinserção, enviando muitos professores de português.

 

O que pode o português oferecer a estes países?

Uma cultura com 800 anos, uma língua universal, uma das línguas mais faladas do mundo. O Atlas da Língua Portuguesa que publicámos demonstra, aliás, que a implantação do português, nestes últimos 500 anos, se foi fazendo a uma velocidade duas vezes superior ao crescimento médio da população do mundo. E indica que vai voltar a ter um crescimento exponencial no século que vivemos.

 

Aí é que lhe pergunto se não pensa que pode haver um otimismo desligado da realidade. Percebo que as estatísticas tendem a insuflar o balão, mas o que vamos vendo nos países de língua portuguesa é que o português parece estar a perder o pé face a esses outros idiomas. Em Angola talvez possa haver também pouco interesse em defender o português… Não acredita que um estudo mais aturado e no terreno possa revelar um quadro bem menos otimista?

Em relação aos grandes números só nos podemos guiar pelas estatísticas oficiais que existem. Quando viajamos podemos ter experiências pessoais que, sem amostras minimamente representativas, nos levem a tirar conclusões erradas, pensando que o português pode estar em perda num ou noutro lugar. O que se passa é que estes países de facto têm outras línguas nacionais. Os catalães também falam todos castelhano, agora, entre eles, cada vez mais falam em catalão. Isso não significa que o castelhano esteja a desaparecer. Acho é que nós, portugueses, como só temos de facto uma língua – excetuando o caso do mirandês, que é uma questão muito episódica e que se restringe a uma pequena parte do território -, temos uma identidade muito marcada. Nunca tivemos um problema linguístico: todos falamos uma única língua. Somos um país com fronteiras fixas há centenas e centenas de anos. Portanto, nós sofremos de facto de hiperidentidade. Por isso, acho que às vezes os portugueses tendem a deixar-se assustar com essa questão do protagonismo do português face a outras línguas no seio da comunidade lusófona.

Que experiências lhe dão confiança no desempenho desta língua?

A primeira visita que fiz, quando comecei a trabalhar neste âmbito da língua, foi a Moçambique. Já lá vão muitos anos, e tive uma reunião com um grande especialista, que depois foi reitor de uma universidade moçambicana, e depois ministro. Nessa altura, em Portugal, discutia-se a adesão de Moçambique à Commonwealth, se isso poderia significar essa decadência do português. E eu expus-lhe isso. E ele disse-me: ‘Isso não faz qualquer sentido. Fazemos parte da Commonwealth porque partilhamos fronteiras com vários países que a integram, mas olhe que ainda aqui há pouco tempo numa reunião com Estados africanos recebemos uma série de documentação que não vinha em português, e sendo este uma das línguas oficiais, devolvemos a documentação toda dizendo que não era aceitável recebê-la sem estar em português’. E depois disse-me mais uma coisa: ‘Sempre gostaria de ter a certeza que o Governo português, perante uma situação idêntica, teria feito a mesma coisa’. E riu-se.

O que lhe parece?

Não podemos saber o que faria o Governo português, mas percebo o que ele queria dizer. Há, de facto, uma preocupação deles quanto à promoção da língua. E há uma coisa que é indiscutível… e quando me dizia isso em relação a Angola é uma coisa com a qual não posso concordar, porque todos estes países, ao tornarem-se independentes fizeram mais pela língua e pela divulgação do português do que nos fizemos quando lá estivemos. E atenção que em relação a isso os estudos universitários e as estatísticas não deixam margem para dúvida: há mais gente a falar hoje português do que havia quando os portugueses saíram, em 1974, após o 25 de Abril. É assim em Moçambique como em Angola. Portanto, esta língua é a língua de todos nós. É nossa e é deles. No tempo colonial falavam português os portugueses. Mas se formos fazer um estudo de quantos naturais das colónias estavam nas universidades, por exemplo, vamos ficar chocados com o número extraordinariamente baixo. Ou seja, o Estado português nunca se preocupou com a questão da língua e a sua difusão junto das populações locais. O português, hoje, é tanto uma língua destes países como é nossa, e todos estes países têm feito mais pela promoção do português desde as independências nacionais do que os portugueses fizeram. Por mais que nos possa custar a nós, como portugueses, aceitar isso, essa é uma verdade histórica indiscutível.

Fonte: SOL

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