Como nasce um filme: mergulho na realidade dos povos indígenas
Cineasta goiano narra a história de fundo que deu origem ao curta-metragem “O Turista no Espelho”, selecionado para a mostra competitiva do IV Fronteira – Festival Internacional do Filme Documentário e Experimental, em Goiânia
Em 2013, participei da “II Oficina de Avaliação das Macrorregionais de DST, AIDS e Hepatites Virais” junto às populações indígenas, no Mato Grosso, cujo relatório, posteriormente, me deu um norte para a construção do argumento de meu documentário mais recente, “O Turista no Espelho”. O filme busca a realidade dos povos nativos da Amazônia e dialoga com a situação de marginalidade de comunidades campesinas do país.
As oficinas de que participei, sobre a política de equidade do Sistema Único de Saúde (SUS) junto aos indígenas, me fizeram sentir como um estrangeiro, observando uma nova organização social.
Eu estava integrando uma área dos parceiros convidados mais distantes, implicados na transversalidade destas ações. Estivemos reunidos num hotel de Cuiabá, do dia 4 a 6 de junho de 2013, em aproximadamente 30 pessoas, sendo um quarto delas de origem indígena declarada.
A troca de experiências entre os integrantes do grupo foi muito rica. Ao longo da preparação, várias questões ligadas ao campo da equidade foram levantadas. Dentre as quais, falou-se da relação abuso de drogas/abusos sexuais, do abuso de bebidas alcoólicas pelos adolescentes, das dificuldades dos trabalhos dos psicólogos, onde eles existem, e do desinteresse das comunidades por palestras sobre drogas (“ninguém fica”).
Incansavelmente, foi destacada a necessidade de se conhecer aquele povo com o qual nos relacionamos, sua visão de mundo, corporalidade, a forma como cada comunidade se organiza. A língua, por exemplo, é uma proteção resistente da cultura de um povo. E neste caso, é também uma barreira às tecnologias que vêm de fora.
A tradução é sempre um ponto que requer atenção especial, facilitada quando o Agente Indígena de Saúde (AIS) tem habilidade bilíngue. Quando não é o caso, há maneiras de se certificar de que o que foi dito foi bem compreendido pelos povos indígenas. Uma delas é ouvir de um terceiro o que foi entendido, numa espécie de tradução de volta à nossa língua da informação passada.
Preconceito, discriminação e violência se imbricam aqui e exigem de todos nós muito estudo, reflexão e diálogo permanente para equacionarmos o respeito à cultura indígena e a proteção às pessoas que são vítimas destas ações e têm pouca ou nenhuma capacidade de defesa dos seus direitos.
O uso de drogas, as relações homoafetivas, as crianças que nascem com deficiências físicas – em algumas etnias, são mortas ao nascerem – e os portadores do HIV merecem cuidado especial.
As discussões sobre as propostas de trabalho com as comunidades indígenas foram abrindo meu olho para além daquilo que eu já sabia. Leituras me foram importantes. Nessas horas, a literatura também pode ser uma luz a ser jogada sobre os problemas que enfrentamos.
Como diz o narrador de “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum, “Ninguém se liberta só com palavras”. Mas elas podem ser um marco definidor de águas, como em um trecho de “Ontem, Como Hoje, Como Amanhã, Como Depois”, de Bernardo Élis:
“Ora, levar para garimpo mulher branca era muito difícil. Garimpo é lugar excomungado de sem conforto; mulher branca nenhuma ia aguentar. E se aguentasse, ficaria caro. Bom seria levar a tapuia. Ela cozinharia para Sulivero, lavaria a roupa, cuidaria das coisas enquanto ele estivesse na cata. Serviria de mulher. E ficaria barato. Put-Kôe não exigia nem vestido, não exigia comida boa, não exigia calçado, não queria cama, nem casa, nem coisa alguma.”
“O técnico, na origem, pede apenas mais um corpo. Os indígenas nos mostram que são sempre povos e almas. Podem ser destruídos, dizimados como sabemos na história das Américas, mas não aceitam ser subjugados. Não podem ser derrotados.”
Algumas reflexões
O modo de fazer a abordagem nesses trabalhos me levaram a algumas reflexões, que, por sua vez, me conduziram ao desenvolvimento do meu filme. Aparentemente, não parece difícil executar as técnicas discutidas nessas oficinas. Imagino que entre nós os problemas possam ser superados com um esforço razoável.
Aprendemos a aceitar um abuso do técnico que age dentro de uma racionalidade instrumental (lógica de dominação da natureza e submissão do homem à sobrevivência material).
Com os povos indígenas, a resistência é muito grande e escancara nossa brutalidade, a dificuldade de respeitar o outro. Pelos diálogos que estas oficinas nos proporcionaram, penso que as almas destas inúmeras etnias conseguiram enternecer as duras e sofisticadas tecnologias dos homens e “laboratórios” que se deslocam para as aldeias.
O técnico, na origem, pede apenas mais um corpo. Os indígenas nos mostram que são sempre povos e almas. Podem ser destruídos, dizimados como sabemos na história das Américas, mas não aceitam ser subjugados. Não podem ser derrotados.
Utopia
Da força deste espanto intercultural nasce um aprendizado comum. E nasce também a possibilidade de o afeto unir o que a empresa colonizadora separou. O SUS é uma destas ilhas socialistas que o povo brasileiro construiu com grandes embates sociais, enfrentando suas elites.
Isso nos lembra a admiração de Thomas Morus pelo que ouviu dizer do povo Tupinambá, que lhe serviu de inspiração para escrever “Utopia”, livro publicado em 1516: solidariedade, ausência de classes, decisões coletivas.
A “Revista de História”, da Biblioteca Nacional, número 91, de abril de 2013, trouxe como matéria de capa o dossiê “Somos Todos Índios – A Saga de um Povo Desconhecido”. Sempre me vi assim, um indígena – seja pelas conversas com os meus avós sobre nossos ancestrais Macamekrã, que fundiram-se aos Purecamekrã na primeira metade do século 19, para não serem dizimados e deixaram o Sudoeste do Maranhão em direção ao Norte do Tocantins, formando o povo Krahô, seja pelos estudos históricos.
Agora, a genética confirma, e mostra que uma terça parte do nosso sangue veio das mulheres indígenas, outro terço é das mulheres negras e o último, do falo europeu. Depois destas oficinas, passei a duvidar do que afirmava o dossiê. As matérias da revista falam sobre diversos aspectos destes povos com uma perspectiva crítica, mas nomeando-os “índios”. Fiquei intrigado, porque esta palavra esteve fora do nosso dicionário naqueles três dias.
Durante os dias de encontro, ouvi pouquíssimas vezes alguém usar a palavra “índio”, jamais para se identificar ou se referir a outro dali. Usou-se “indígena”, “populações indígenas”. Ouvi uma pessoa apresentar-se assim: “eu sou indígena”.
Lembro-me de ter ouvido a palavra “índio” apenas duas vezes. A primeira, num sentido negativo, referindo-se a uma terceira pessoa, que mostrava postura preconceituosa. Uma coordenadora falava de um técnico com dificuldade de fazer o teste rápido e de sua preocupação com o resultado positivo: “medo do índio me bater!”. A segunda para quantificar a população do seu estado.
Um indígena se referia aos demais como “parentes”. Pareceu-me que cada um tinha uma forma de evitar a palavra “índio”. Entre antropólogos, indigenistas, historiadores e indígenas falando em revistas mais ou menos especializadas ou nos meios de comunicação, eu não percebia essa preocupação. Fiquei em dúvida com a minha percepção nestas oficinas.
Quando falam de si como “indígenas”, parecem buscar um novo status para sua condição social. Rejeitam a denominação externa que os vê como os desconhecidos “índios”. Complexos atributos socioculturais são requeridos. Um tem vergonha de assim se apresentar, o outro apresenta-se com orgulho. Uma questão que passa pela garantia da identidade indígena. Questão mais que complexa.
Esta questão foi problematizada eficientemente pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro no seu ensaio “No Brasil, Todo Mundo é Índio, Exceto Quem Não É”, no qual diz:
“Não é possível fazer todos os brasileiros deixarem de ser índio completamente. Por mais bem sucedido que tenha sido ou esteja sendo o processo de desindianização levado a cabo pela catequização, pela missionarização, pela modernização, pela cidadanização, não dá para zerar a história e suprimir toda a memória, porque os coletivos humanos existem crucial e eminentemente no momento de sua reprodução, na passagem intergeracional daquele modo relacional que “é” o coletivo, e a menos que essas comunidades sejam fisicamente exterminadas, expatriadas, deportadas, é muito difícil destruí-las totalmente. (…) Não há culturas inautênticas, pois não há culturas autênticas. Não há, aliás, índios autênticos. Índios, brancos, afrodescendentes, ou quem quer que seja – pois autêntico não é uma coisa que os humanos sejam.”
Rituais indígenas
Para o segundo dia de oficinas, havia também um espaço reservado aos rituais indígenas. Não ouvi nenhum comentário a respeito, tive a impressão de que a programação não seria cumprida, como não o foi. Porém, a certa altura da manhã, uma coordenadora, lembrando os adoecimentos que tinham acometido a equipe do Ministério da Saúde naqueles últimos dias, devido aos embates em defesa de políticas públicas democráticas, pediu uma atitude espiritualizada (os termos eram outros, talvez reza), e disse que uma liderança indígena ali presente, se quisesse, poderia nos trazer alguns de seus rituais.
Depois de um momento de silêncio, o líder timidamente se prontificou a trazer uma dança breve, ao que foi seguido por outro, ainda mais tímido, com sua dança também orientada por um ritmo cadenciado, com marcação forte e características de alguns de seus rituais. Todos nós de mãos dadas, em círculo, dançávamos com passos miúdos, sentindo a gravidade do momento.
Naqueles pouquíssimos minutos, senti ali uma forte emoção. Vi muita beleza na dança, apesar da nossa timidez e da simplicidade de tudo. Acredito que a dignidade do momento – e por extensão das pessoas – veio com o contexto técnico-humanista do encontro, o sentido que damos às tecnologias, às lutas pelos direitos humanos, à resistência cultural indígena e à força democrática que emana da construção permanente do SUS.
Este acontecimento me fez lembrar de um contexto totalmente diferente, numa aldeia indígena próxima de Manaus, em 2011, cujos membros (das etnias dessana, tukana e tuyuka) ofereciam aos turistas alguns rituais e explanações sobre objetos e práticas de sua cultura (etnoturismo). Os espectadores em suas posturas diversas – impacientes, não integrados e curiosos – e o ambiente mercadorizado conferiam ao espetáculo um aspecto de melancolia degradante.
A cena me impressionou bastante, e foi tomando um lugar central em “O Turista no Espelho”. Foi a partir daí que passei a caminhar com a ideia de um documentário experimental sobre as condições da dignidade humana num contexto de degradação socioambiental, desterritorialização e espetacularização dos povos e da cultura indígena. O SUS cria outro contexto para os povos indígenas e todos os povos brasileiros.
O ritual da aldeia de Manaus, em 2011, exigiu de mim uma superação da postura meio contemplativa de outras gravações, feitas em 2008, também em Cuiabá e em cidades do Pará. Assombrado e atordoado, me vi subitamente estimulado com o que me aterrorizava no etnoturismo. A preocupação política com a linguagem para elaborar sentimentos e percepções do desastre ecológico me trazia um sopro de vida.
Quando voltei a Cuiabá, como médico, em 2013, não imaginava que assistiria a um ritual com muita beleza e força espiritual que me marcaria tanto e ressignificaria aquele outro que me perturbara em Manaus, em 2011.
Deste choque, vejo nascer o filme sobre a minha relação com os indígenas, ambas bastante problemáticas – técnico de saúde e turista desavisadamente aprendiz. As danças e cantorias aplacavam o luto como um bálsamo enviado pelos espíritos e corpos da saúde popular, que à minha frente cresciam com as ocupações indígenas e quilombolas, belas e indignadas, que ocorriam na capital do país. As cenas e as fotos daqueles sertões encontraram um sentido.
Pelo que vi em Cuiabá naqueles dias, a intenção ali devia ser de preparação, acolhimento, beleza, valorização da cultura e integração. Não ocorreu como programado, mas com tanta espontaneidade, os rituais mostraram um pouco da potência do seu significado, dificilmente alcançado mesmo quando se busca isto.
Narrativas
Não posso deixar de trazer aqui dois filmes que partem da nossa relação com indígenas para falar de forma bastante original, como ficções que desaguam no documentário, das identidades do País: “Iracema – uma Transa Amazônica”, de Jorge Bodansky e Orlando Sena, de 1974, e “Serras da Desordem”, de Andrea Tonacci (2006).
O primeiro desconstrói o ideário de um “Brasil grande”, criado durante a ditadura militar, através de um caminhoneiro que percorre a Transamazônica ao lado de uma indígena ainda adolescente (Iracema), num contexto de degradação socioambiental.
O segundo produz uma metáfora do País a partir do encontro do Estado, sociedade e meios de comunicação com um indígena (Carapiru), sobrevivente melancólico de um massacre perpetrado por grileiros, que tem que abandonar o filho durante a fuga e permanece sem falar português ou interagir com alguém depois de anos e anos de errância pelo sertão.
Os dois filmes criticam as formas tradicionais, conservadoras e autoritárias de representação cinematográfica, e se valem para isto da problematização do discurso, da impossibilidade de apreensão do real, da encenação de si mesmo, da marginalidade e do nomadismo, das identidades negociadas, do imaginário social e da dominação do outro baseada na modernidade tecnológica.
Traduzem uma interioridade intangível dos personagens sem as artimanhas do melodrama, do psicologismo ou do realismo psicológico. Mesmo distantes (ou ausentes?) das temáticas centrais destas duas obras-primas do “documentário” brasileiro, cabe aqui, pela especificidade do nosso trabalho, uma menção às questões de saúde que aparecem nos filmes.
Longe deles qualquer forma de psicologismo, mais ainda de biologização da vida social ou de uma compreensão grosseira da subjetividade. Assim, o que faço aqui é trazer o contraponto da psicologia e da psiquiatria preparadas pelo mercado para responder às suas demandas, com o reducionismo esperado, em oposição ao modelo psicossocial, antimanicomial, democrático, compreensivo e relacional.
Os indígenas Iracema e Carapiru, caso precisassem dos consultórios do modelo biomédico, disparariam os gatilhos de tratamento do alcoolismo e da depressão, respectivamente, com seus fortes aparatos medicamentosos, terapias cognitivo-comportamentais, ou até internações manicomiais.
Eles preencheriam os critérios diagnósticos para estas “doenças”, em que, conforme dizem, os fatores psicológicos, etnográficos, sociais e antropológicos podem até influenciar no início do problema, mas, definitivamente, são doenças cerebrais crônicas e por isto devem ser submetidas às duras terapias biológicas, que nestes dois casos deveriam ser tomadas como um verdadeiro suplício pela cegueira da descontextualização.
Num momento em que psiquiatras e psicólogos são chamados para a discussão dos graves problemas do abuso de drogas e suicídio entre os indígenas, os dois filmes, aparentemente tocando de leve estas questões, podem nos ajudar a compreender estes sofrimentos porque, em última análise, buscaram a questão indígena e a relação com a nossa civilização, mas lograram alcançar a condição humana.
Como diz Manuela Carneiro da Cunha, em “O Futuro da Questão Indígena”, “as populações indígenas encontram-se hoje onde a predação e a espoliação permitiu que ficassem”. “O Turista no Espelho” lida com esta questão, na confluência do confronto entre a realidade brutal dessas minorias e o poder. l
Lourival Belém Jr é documentarista, psiquiatra do SUS e membro do Coletivo Liberdade e do Fórum Goiano de Saúde Mental
SERVIÇO
O turista no espelho
Diretor: Lourival Belém Jr.
Exibição: IV Fronteira – Festival Internacional do Filme Documentário e Experimental
Data: 20 de abril de 2018 às 17h30
Local: Cinemas Lumiére Banana Shopping
Fonte: Jornal Opção
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