Com escola, cinema e rituais, aldeia dos Fulni-ô mantém a única língua indígena viva em Pernambuco.
RESUMO DA NOTÍCIA
- Aldeia dos Fulni-ô, no sertão de Pernambuco, mantém viva o Yaathe (iatê, em ‘português moderno’)
- Língua está no currículo de três escolas da aldeia desde 2005
- Professores criam o próprio material didático para o ensino da língua materna
- Coletivo de cinema também produz filmes narrados em Yaathe
Na escola estadual Marechal Rondon, em Águas Belas, no sertão de Pernambuco, alunos do sétimo ano prestam atenção na fala do professor Taity Correia. Para quem é de fora da aldeia dos Fulni-ô, não é tão simples entender o que ele explica. A aula é de Yaathe — ou iatê, em “português moderno”—, única língua indígena ainda viva no Nordeste brasileiro.
Para a Funai (Fundação Nacional do Índio), a definição de única língua da região não considera as línguas dos povos do Maranhão, devido à inclusão do estado no território compreendido pela Amazônia Legal.
O UOL visitou a aldeia dos Fulni-ô para conhecer a tradição que conseguiu desafiar a influência e os costumes do homem branco para garantir a manutenção da língua materna. Além das aulas, a manutenção do Yaathe se apoia no ritual sagrado dos índios e, mais recentemente, no cinema.
Segundo o cacique Cícero de Brito, dos 7 mil índios Fulni-ô, 500 são hoje falantes fluentes. “Todos entendem a língua, mas os que falam mesmo são esses 500. Onde chego, peço para que falem com seus filhos na língua para a gente não deixar morrer”, diz.
É com a língua materna que índios se comunicam com seus ancestrais, por exemplo, durante o ritual sagrado do Ouricuri, que ocorre em mata fechada durante 90 dias. A tradição da tribo é mantida em segredo, e somente os Fulni-ô sabem o que ocorre no local.
Aldeia sofre com racha interno
Não bastassem problemas como a seca e a discriminação que os índios sofrem, os Fulni-ô enfrentam um racha interno desde 2018, quando um grupo rebelou-se após o processo de escolha do cacique Cícero como sucessor de João dos Santos (morto em 18 de agosto daquele ano).
O grupo dissidente alega que a forma de escolha não foi correta, o que é questionado e tratado como uma espécie de insubordinação pelos tradicionais líderes da tribo.
A escolha ocorre durante o Ouricuri, e por isso não tem detalhes revelados.
“Vivemos momento de divisão interna política-religiosa. É bem complexo, mas isso ocorreu principalmente para questionar os critérios rituais da escolha do cacique Cícero de Brito”, afirma o antropólogo Wilke Torres de Melo, que é Fulni-ô e está no grupo que não segue o novo cacique nem o pajé Gildiere Pereira.
Por conta do racha, um grande número de divórcios foi registrado nos últimos meses, separando famílias divididas entre a escolha de um dos lado.
Apesar dessa divisão, ambos os grupos seguem com a língua viva na tribo. “O Yaathe é o pilar basilar da cultura Fulni-ô”, completa Melo.
Luta para implantar ensino
Por centenas de anos, o Yaathe foi repassado dentro das próprias famílias Fulni-ô. A indía Maristela de Albuquerque Santos é coordenadora educacional de duas das três escolas da reserva indígena que ensinam a língua materna.
“Implantar o Yaathe foi uma luta muito grande”, lembra ela, que é filha do ex-cacique João dos Santos.
Ela lembra que antes da criação do ensino de anos para adolescentes havia uma grande dificuldade de passar a língua.
“Antes, todo índio que estudava na escola Marechal Rondon, quando terminava o 4º ano, tinham de estudar na cidade. E quando ia, ocorria o quê? Um contato muito grande com população não indígena, que é um contato muito agressivo”, conta.
“O que meu pai pensou? Dentro desses elementos que identificam a cultura, futuramente iríamos deixar de ter falantes. Foram várias questionamentos”, diz.
Segundo a Secretaria Estadual de Educação de Pernambuco, desde 2005 a língua está no currículo das três escolas da aldeia.
Mas antes disso, Santos conta que, na década de 90, seu pai foi em busca de implantar o ensino de Yaathe em uma escola própria.
“Meu pai foi à delegacia da Funai [Fundação Nacional do Índio], no Recife, que havia prometido uma escola de Yaathe aqui. Lamentavelmente, a escola não foi adiante”, relembra.
“Em 1999, quando cheguei aqui, formamos uma equipe para começarmos a ensinar a língua. Ora, se na matriz curricular é obrigatório ensinar uma língua estrangeira, porque não ensinar a língua materna? Corremos em busca e conseguimos: em 2005 começou, e em 2010 houve a institucionalização do Yaathe como disciplina da grade.”
A disciplina hoje é ensinada por um professor e um monitor em cada sala, em todas as séries do ensino fundamental e médio. “Excepcionalmente, no caso do monitor, na seleção da secretaria não é obrigatória que tenha escolaridade, basta ter o domínio da língua”, explica.
As aulas são dadas por um professor habilitado em cada uma das escolas. “Fazemos aulas de 40 minutos em cada sala”, explica o professor Taity, citando que o desafio é criar a didática e o material complementar dos alunos.
“A gente está se organizando e se reunindo sempre. Nós mesmos que temos que produzir nosso material e nossa dinâmica de aula. A gente senta ao menos duas vezes no mês e fala das experiências, relata as inovações. Ou seja, a gente cria o método para facilitar o aprendizado das crianças”, explica.
O professor Francisco Ribeiro da Silva, o Fitxya, ensina Yathee desde 2008 e diz que ainda há uma resistência em aprender a língua.
“A dificuldade hoje é porque você tem seu filho que é indígena, mas que tem mãe ou pai branco. E aí há uma influência. É diferente de mim, filho de indígenas e que sou casada com uma Fulni-ô. Os pais vão querer que o filho aprenda português e inglês, porque vai ser mais fácil arrumar emprego. O Yaathe é só para questão de cultura, mas que é tudo na nossa tradição. Esse é o maior desafio”, diz.
Cinema ajuda a disseminar cultura
Além do ensino na escola, os Fulni-ô também adotaram o cinema como um ponto de disseminação da língua. Em 2011, três professores de Yaathe da aldeia começaram a fazer registros audiovisuais da cultura indígena fulni-ô. Dessa ideia surgiu o “Coletivo Fulni-ô de Cinema”, que já produziu seis filmes, todos narrados na língua materna.
Segundo o mestre em letras e linguísticas e cineasta Hugo Fulni-ô, a ideia de usar a linguagem do cinema foi parte de sua dissertação.
“Todas as línguas indígenas do Nordeste foram extintas; segundo a Unesco, o Yaathe também está à beira de extinção. Então, como já tinha uma base de cinema, fiz meu mestrado em linguística estudando a língua”‘ conta o índio, formado na Ufal (Universidade Federal de Alagoas).
Hugo é autor do filme “Guardiões de um tesouro linguístico”, lançado em 2019, todo narrado em Yaathe e que mostra detalhes da cultural local. Além disso, ele é um dos autores do livro “Fulni-ô Sato Saathatise (A Fala dos Fulni-ô)”, obra trilíngue que traz contos dos anciãos. Em 2013, também dirigiu o filme “Ihiato: narrativas dos anciãos Fulni-ô.”
No período da visita do UOL, em fevereiro, a aldeia estava reunida na tradicional festa da tribo, que além de apresentações culturais tem como destaque a mostra de cinema.
Manutenção é façanha, diz pesquisadora
Pesquisadora da língua, a pós-doutora em linguística Januacele da Costa conta que sempre houve, por parte da população não indígena local, um forte sentimento de rejeição pela língua e pela cultura Fulni-ô.
“Quando quis entrar para a academia com a proposta de estudar a língua, ouvi de estudiosos que ela provavelmente não existia mais. Se existisse, seria falada apenas pelos mais velhos. No entanto, eu conhecia muitos falantes, muitas famílias e sabia que em todas as gerações havia falantes. Resumindo, a língua é viva e funcional”, afirma.
Ela afirma que chama a atenção de pesquisadores como o Yaathe sobreviveu em meio a um contexto socioeconômico e histórico onde todas as outras línguas indígenas do Nordeste foram abolidas ao longo dos anos.
“Uma língua minoritária não se mantém em um estado de vitalidade depois de cerca de quatro séculos de contato com a língua majoritária, através de forças externas. O que garante a vitalidade de uma língua são as estratégias internas, as forças próprias do grupo que a tem como língua de herança, parte importante da sua cultura, fundamental para a transmissão dos conhecimentos ancestrais e das tradições mais profundas”, conta.
A pós-doutora afirma ainda que a união em torno da língua (mesmo diante do cenário de racha) e a consciência que o povo tem, além de seu caráter sagrado e identitário, são determinantes para manter a tradição linguística preservada e viva.
“Estratégias de transmissão e continuidade foram criadas pelo próprio povo. Essas estratégias coincidem com as propostas nos últimos quase 30 anos pelos teóricos e estudiosos em geral que procuram meios de revitalizar, manter, preservar línguas minoritárias: ninho de linguagem, mestre-aprendiz, imersão. Os Fulni-ô empregam naturalmente essas estratégias de transmissão e manutenção da língua. Podemos dizer que as tradições, de modo particular a religião, são os mantenedores da língua”, completa.
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