Brasileira cria projeto para empoderar mulheres em favelas sul-africanas

Inicialmente era só uma viagem para estudar inglês, em 2004. Mas a brasileira Mila Moreano, hoje com 46 anos, acabou ficando permanentemente na África do Sul. E o tempo mostrou que esta decisão fez (e tem feito) a diferença nas vidas dela e de centenas de mulheres pobres da Cidade do Cabo.

Vinicius Assis, correspondente da RFI na África do Sul

Mila diz sempre ter procurado fazer da solidariedade uma prática cotidiana. Na África do Sul, criou um projeto que ensina, além de corte e costura, empreendorismo a mulheres de comunidades carentes. Mas para fazer isso, a brasileira foi além dos cartões postais da paradisíaca cidade. “A desigualdade me incomoda e a África do Sul é o país mais desigual do mundo. A diferença entre o rico e o pobre é imensa. Para mim a fome era só uma estatística. Nunca tinha visto pobreza tão perto de mim até que uma aluna me disse que não comia há dois dias, estava só tomando chá”, disse a brasileira, que passou a lidar diariamente com gente que nem sempre sabia quando seria a próxima refeição.

Além do mais, abusos sexuais e violência doméstica faziam parte da história de vida de praticamente todas as mulheres pobres com as quais Mila passou a ter contato.  O incômodo diante dessa realidade não a impediu de tentar empoderá-las. “Sou privilegiada e sinto que tenho obrigação de compartilhar o que tenho com quem tem menos do que eu”, completou.

Ela nasceu em Paty do Alferes, interior do Rio de Janeiro. Jornalista por formação, trabalhou em redações de TV e rádio no Brasil. Até que em 2015 resolveu voltar a estudar e se tornar professora. Foi quando começou a fazer pós-graduação em Pedagogia especializada em Educação para Adultos na Universidade da Cidade do Cabo. Montou seu local de pesquisa em uma casinha feita com telhas de zinco na comunidade Samora Machel, que fica em Philippi, uma das áreas mais perigosas da Cidade do Cabo. Inicialmente ela dava só aulas de inglês (nem todas as pessoas de baixa renda neste país, onde existem 11 idiomas oficiais, são fluentes em inglês). Depois começou a mostrar um caminho profissional a essas mulheres que não tinham muita esperança de futuro melhor.

Aprendendo juntas

“Comecei a dar aulas de costura à mão. Depois eu levei duas máquinas que eu tinha na garagem. Sei pouco de costura, o básico. Fomos aprendendo juntas, pesquisando no youtube“, disse. As alunas treinam produzindo peças, como mochilas, roupas e cooking bags, usando coloridos tecidos tradicionais africanos.

“Elas têm tantos talentos! Existe um conhecimento nato que só precisa ser incentivado. Basta uma chance. Sabem mais do que imaginam. Foram sempre tão oprimidas que nem acreditam nos resultados”, orgulha-se. Depois das aulas essas mulheres se tornam professoras e costureiras profissionais nas suas comunidades.

“Quero que elas tenham todo o conhecimento de como gerenciar um negócio para que elas possam ampliar. Podem ter uma clientela no bairro onde moram, na escola do filho, na igreja. A costura não morreu! O pobre ainda costura muita roupa em casa, faz reparos. É mais barato”, lembrou.

A brasileira lembra que, no início, todas essas mulheres estavam desempregadas. Hoje não dependem tanto dos maridos. E em alguns casos são essas mulheres que atualmente sustentam seus lares, já que a África do Sul tem hoje uma das mais altas de desemprego do mundo.

A vantagem é que são incentivadas a trabalhar a maior parte do tempo em casa, sem o custo e os perigos de encarar transporte público todos os dias, tendo que passar por ruas escuras ao anoitecer. O grande desafio é fazê-las entender que precisam se ver como mulheres de negócios. Um grande avanço foi fazer com que elas abrissem suas próprias contas bancárias. No início, quando precisavam de uma conta para receber um pagamento usavam as dos maridos. Nem sempre havia a garantia de que todo o dinheiro chegaria realmente a suas mãos.

“Quando uma delas fala para mim ‘você quer que viremos mulheres de negócios, mas a gente nunca teve isso na nossa família’, eu falo: não tem problema. Você vai ser a primeira! Eu as levo a feiras e bazares para que tenham contato com clientes, aprendam a calcular descontos, dar troco, mostrar as opções, calcular preços dos produtos. Assim eu tento dar uma noção geral para elas”, contou.

Projeto já beneficiou centenas de mulheres

O projeto foi batizado de Yes, We Can! (Sim, Nós Podemos!) e já beneficiou aproximadamente 500 mulheres nesses quase quatro anos de existência. Cresceu sem investimentos em ações de marketing. Foi tudo graças ao famoso boca a boca, com uma amiga falando para outra.

As professores – que também um dia foram alunas da brasileira – agora têm cartões de visitas e panfletos para divulgar as aulas, que hoje custam cerca de R$25 por 4 horas. Praticamente um valor que só cobre o material usado na produção das peças que, depois, podem ser vendidas ou usadas por elas.

Atualmente o escritório central funciona em um dos conteîneres de um complexo criado por fundações para desenvolver pequenos negócios na comunidade Philippi. A condição para se pagar um aluguel menor é, por mês, dar aulas a 10 mulheres de graça. O espaço já está pequeno. Das quase 15 máquinas, quatro foram doadas. As outras elas vieram comprando aos poucos, às vezes de segunda mão. As aulas também são dadas em bibliotecas públicas pela Cidade do Cabo.

No fundo do conteîner onde funciona a sede ficam os tecidos e todos os outros materiais usados nas aulas e para a confecção das peças. É principalmente com a venda desses produtos que o Yes, We Can se mantem e Mila consegue fazer com que as seis professoras e principais costureiras ganhem cerca de 700 Rands por semana (cerca de R$ 180).

“Quando elas recebem o dinheiro falam ‘oh, vou comer frango hoje à noite’, ‘vou comprar o uniforme do meu filho’, ‘o sapato da escola’, ‘o pijama da minha filha’. Quando você empodera uma mulher está empoderando a família e a sociedade”, orgulha-se. Mas a brasileira faz questão de afastar de si o estigma de “estrangeira branca usando mão de obra barata negra”.

Projeto pode virar ONG

“Existe este estigma e tento quebrá-lo através do meu trabalho , mostrando que sou genuína. Não temos nada em consignação. Tudo pertence ao projeto. As costureiras são todas pagas. E elas estão sempre satisfeitas pelo valor pago pelo produto. Tenho a preocupação em pagar bem, pois é produto feito um a um, nao é série. Agora me incomoda que me vejam como o caixa eletrônico delas. Sou a gerente, criadora de um projeto que gera renda para essas mulheres. Mas elas estão aprendendo que isso não é uma empresa onde elas costuram, vendem e vão embora,” afirmou, se colocando numa posição de coordenadora e não de patroa.

O projeto ainda é totalmente informal. Mila conta que estão amadurecendo a ideia sobre criar uma ONG. O fato é que o Yes, We Can! ainda não dá lucro para a brasileira, que tem um imóvel perto da casa onde mora e o aluga para turistas. Esta é sua princial fonte de renda. A dedicação ao projeto vai além do retorno financeiro, que um dia ela espera ter.

“Tento pelo menos recuperar o que invisto, mas isso não me dá lucro. O que ganho coloco no negócio. A ideia é, sim, que eu consiga também ter uma retirada, que seja sustentável. Não estou fazendo caridade. É empoderamento e treinamento de mão de obra. Então eu também tenho que ser paga por isso. Vamos chegar lá. Só uma questão de tempo”, conta.

O tempo também constrói a confiança necessária para este tipo de trabalho. “Negros africanos acham que todo branco têm dinheiro. Mas acho que é um aprendizado. Confiança vem através do tempo. Acho que por causa do passado na África do Sul não existe muita confiança. As pessoas estão sempre tentado uma passar a perna na outra, vendo quem tira mais vantagem. O mundo está virando uma selva! E a gente conversa sobre esses assuntos delicados nas nossas reuniões semanais”, disse.

As lições são muitas e diárias para a brasileira, que não era expert em costura nem em negócios. “Elas me empoderam muito mais. Eu as empodero de uma forma muito real, com o dinheiro que vira comida, roupa, mas elas me ensinam muito a praticar a generosidade, ser paciente. E me faz bem saber que eu trago algum sentido para a vida de alguém, que eu acrescento. Nem que seja um pequeno legado, mas sei que minha vida nao foi em vão. A minha existência ajuda ouras pessoas a existir. Isso me traz satisfação pessoal”, conta antes de lembrar que o requisito para participar deste projeto é assumir o compromisso de passar adiante o que se aprende aqui. Essa é a missão do trabalho: fazer essas mulheres acreditarem que elas conseguem!

Fonte: RFI

 

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