Carlos Alberto Faraco analisa a situação atual do Acordo Ortográfico
O Acordo Ortográfico de 1990: Situação Atual (junho/2014)
Por Carlos Alberto Faraco*
O único e exclusivo objetivo do AO foi superar a dualidade de ortografias oficiais do português. Essa situação vinha criando embaraços à presença da língua nos organismos internacionais e afetando também sua internacionalização.
Em nenhum momento, os filólogos da geração de Antônio Houaiss, portugueses e brasileiros, tiveram a intenção de fazer uma reforma ortográfica. As bases estabelecidas em 1911, que fixaram a ortografia do português, permaneceram sem alterações. Houve, sim, cedências de parte a parte, adotando uns soluções já existentes na grafia dos outros. Foram pequenos ajustes em cada uma das ortografias vigentes para submetê-las a um único conjunto de normas.
Assim, afirmações de que o Acordo foi tímido ou já nasceu anacrônico, como se leem algumas vezes na imprensa, revelam profundo desconhecimento de seus objetivos e histórico.
Histórico
O Acordo começou, de certa forma, a ser negociado ainda na década de 1960. Ocorreu em Coimbra, em 1967, uma primeira Conferência sobre o tema. Durante as décadas seguintes, foram discutidas várias alternativas até que se chegou ao consenso expresso nos termos do Acordo assinado em Lisboa em dezembro de 1990 por todos os países de língua oficial portuguesa.
Foram, portanto, necessários quase 25 anos para se alcançar um consenso, que atinge uma parcela mínima do léxico da língua. No Brasil, por exemplo, os ajustes alcançaram aproximadamente 1% das palavras, percentual que, tomados os índices de frequência, não alcança mais que 0,6% do léxico.
Esses dados mostram, por si sós, a complexidade que envolve a ortografia e a grande dificuldade para alcançar consenso mesmo quando os ajustes são de pequeníssima monta.
Implantação no Brasil
Se foram necessários quase 25 anos para se chegar aos termos do Acordo, foram necessários pelo menos mais 25 anos para o processo de sua implantação. O Brasil, mesmo tendo concluído o processo de ratificação do Acordo e de seus Protocolos Modificativos em 2004, só o incorporou à sua ordem legal em 2008 por meio dos Decretos assinados em setembro daquele ano pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva. Ainda assim, estabeleceu-se um período de carência de 4 anos, que venceria em 31/12/12; mas, para acompanhar o cronograma de implantação em Portugal, esse período foi prorrogado até 31/12/2015.
A Comissão que assessorou o governo federal em 2008 havia sugerido o período de 4 anos tendo como referência o cronograma do Programa Nacional do Livro Didático, o maior programa editorial do Brasil e um dos maiores do mundo. A intenção era garantir que as normas do Acordo chegassem sem sobressaltos ao sistema escolar.
Olhando retrospectivamente, pode-se afirmar que a decisão foi correta. O PNLD incorporou os ajustes ortográficos do Acordo sem qualquer problema. Por outro lado, toda a imprensa brasileira adotou a ortografia do Acordo já a partir do dia 01/01/2009. O mesmo ocorreu com as editoras brasileiras que passaram a publicar todos os novos livros já em 2009 seguindo o Acordo. E foram progressivamente adaptando as novas edições de livros publicados anteriormente a 2009, assumindo os custos desse processo.
Diante desse quadro de universal adoção do Acordo no Brasil, é importante destacar que qualquer retrocesso implicará enormes prejuízos para as editoras nacionais, além de incalculável e injustificável desperdício de dinheiro público, considerando que todos os milhões de livros do PNLD têm sido impressos, desde 2010, em conformidade com o Acordo.
Implantação nos demais países
Em Portugal, o processo de ratificação foi concluído em 2008 pela Assembleia da República e a implantação do Acordo foi definida pela Resolução no. 08/2011 do Conselho de Ministros. Nela se estipulou a data de 01/01/2012 para a introdução da ortografia do AO nos serviços oficiais do Estado e o ano letivo 2011/ 2012 para o início de sua aplicação no sistema de ensino.
A ortografia do Acordo já está inteiramente implantada no sistema escolar. Já foi adotada por praticamente toda a imprensa portuguesa e pelas editoras.
Há uma minoria ruidosa que ainda contesta o Acordo. Seu argumento principal é de que se tratou de uma imposição do Brasil. Obviamente, esse argumento é falso e, por isso mesmo, todas as instâncias decisórias do Estado português vêm negando sistematicamente acolher qualquer das diversas tentativas dessa minoria no sentido de desvincular Portugal do Acordo. Lá como aqui a implantação é irreversível.
Os demais países já concluíram o processo de ratificação do Acordo e dos Protocolos Modificativos e estão a definir seus respectivos cronogramas de implantação. No dia 28 de maio de 2014, a ministra da Educação de Cabo Verde, Fernanda Freitas, informou que a partir deste ano letivo começa a implantação do Acordo Ortográfico nos dois primeiros anos de escolaridade naquele país, usando-se já livros didáticos completamente adaptados à AO.
Falta ainda concluir esse processo em Moçambique e Angola. Os procedimentos nesse sentido se encontram bastante avançados em Moçambique onde o Conselho de Ministros encaminhou ao Parlamento recomendação para que se conclua a ratificação ainda na atual legislatura.
A demora nestes dois países decorreu principalmente da necessidade de se definir critérios para adaptação ortográfica das palavras oriundas das suas várias línguas nacionais e que enriquecem continuamente o vocabulário do português.
Moçambique já fixou, com alta qualidade técnica, esses critérios; e Angola está em vias de fazê-lo. Espera-se, portanto, para breve, a conclusão do longo processo de ratificação e implantação do Acordo em todos os países.
Diante desse quadro, fica claro que afirmações de que o Acordo fracassou revelam profundo desconhecimento da realidade ou, pior, vontade de ignorá-la.
Compromissos políticos
Em sucessivas reuniões das instâncias políticas da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, tem sido reiterado o compromisso de todos os países com a ratificação e implantação do Acordo.
É exemplo a última Cimeira dos Chefes de Estado e Governo da CPLP, realizada em Maputo (Moçambique) em julho de 2012. Na Declaração Final, lê-se o seguinte:
Recomendaram, ainda, o desenvolvimento de esforços para a implementação do Acordo Ortográfico, instando à sua ratificação e ao estabelecimento de formas de cooperação efetiva para a elaboração dos Vocabulários Ortográficos Nacionais (VON).
Vale mencionar também a Declaração Conjunta por ocasião da XI Cimeira Brasil-Portugal, assinada em Lisboa em junho de 2013 pela presidente Dilma Rousseff e pelo Primeiro-Ministro Pedro Passos Coelho. Nesta Declaração consta o seguinte item:
Tendo em conta que o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AOLP) entrará definitivamente em vigor em Portugal e no Brasil em maio e dezembro de 2015, respectivamente, ambos os governantes reiteraram a importância da plena aplicação do AOLP em todos os países-membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) como forma de contribuir para o reforço da internacionalização da língua portuguesa. Os dois mandatários acolheram, com satisfação, os entendimentos mantidos no âmbito da CPLP com vista à elaboração dos Vocabulários Ortográficos Nacionais (VON) e a ulterior elaboração, a partir destes, de um Vocabulário Ortográfico Comum (VOC), que consolidará, tanto o léxico comum como as especificidades de cada país, contribuindo desse modo para a implementação, entre outros instrumentos, de corretores ortográficos, tradutores electrónicos e sintetizadores de voz, bem como das bases terminológicas, técnicas e científicas estipuladas pelo AOLP.
É inequívoco, portanto, o compromisso político de todos os governos dos países-membros da CPLP com o Acordo.
Apesar disso, na última reunião dos Ministros da Educação da CPLP, realizada em Maputo em 17 de abril de 2014, foi acolhida a sugestão de Angola para que o Secretariado Executivo da CPLP solicitasse ao Conselho Científico (CC) do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) que incluísse na pauta de sua Reunião Ordinária de 2014 alguns pontos sobre o Acordo Ortográfico.
Tal solicitação foi atendida pelo Conselho Científico, que chegou ao seguinte consenso, incluído na Declaração Final da sua IX Reunião Ordinária, realizada em 12 e 13 de maio de 2014:
Em relação ao ponto 6 da Declaração Final da VIII reunião de Ministros da Educação da CPLP, que teve lugar em Maputo a 17 de abril de 2014, que instava o CC do IILP, através do Secretariado Executivo da CPLP, a incluir na sua agenda os seguintes pontos para análise e pronunciamento: i) parecer oficial sobre o Acordo Ortográfico de 1990, apresentado por Angola; ii) diagnóstico relativo aos constrangimentos e estrangulamentos na aplicação do Acordo Ortográfico; e iii) ações conducentes à apresentação de propostas de ajustamento do Acordo Ortográfico de 1990, na sequência da apresentação do referido diagnóstico, o CC:
a) Congratulou-se com o reconhecimento por parte dos Senhores Ministros de que é ao Conselho Científico do IILP que compete a apreciação das matérias relativas ao Acordo Ortográfico;
b) Constatou, à semelhança do que aconteceu na VII reunião do CC de 2012, não terem sido identificados quaisquer estrangulamentos e constrangimentos na aplicação do Acordo Ortográfico, pelo que não se justifica a apresentação de propostas de ajustamentos;
c) Assumiu que a discussão do conteúdo do Acordo Ortográfico é, a partir da sua assinatura, uma matéria a ser discutida pelo conjunto dos países da CPLP e que, neste momento, não há motivo para reabrir a sua discussão;
d) Considera que as questões enunciadas no parecer oficial de Angola sobre o Acordo Ortográfico devem ser trabalhadas junto da equipa técnica do VOC, à semelhança do que aconteceu com as equipas de outros Estados Membros que lidaram com a questão da integração de palavras de origem bantu ou de outras línguas. Neste sentido, e tendo sido informado pelo Diretor Executivo de que o parecer referido já foi tido em conta nos trabalhos técnicos para a composição do VOC, o CC sugeriu que a equipa técnica do VON de Angola se articulasse com a equipa técnica do VOC.
Diante disso e considerando que os Chefes de Estado e Governo da CPLP em nenhum momento pautaram a reabertura de discussão do Acordo; e considerando ainda que o CC do IILP é a instância técnica da CPLP para tratar de todas as questões sobre a língua que sejam do interesse de todos os países, inclusive as questões ortográficas, é possível afirmar que, no âmbito da CPLP, o Acordo é matéria pacificada.
Eventuais dúvidas sobre o texto do Acordo
O texto do Acordo, como qualquer texto legal, tem, além de casos omissos, pontos que exigem interpretação. O texto do AO é omisso, por exemplo, quanto aos critérios para a adaptação gráfica de palavras de outras línguas. Dado o caráter bastante aleatório desse processo, não é possível prever antecipadamente todas as situações. A solução aqui é simples: propor soluções para casos novos (línguas que só mais recentemente foram reconhecidas como fonte de empréstimos lexicais), seguindo parâmetros generalizáveis e também os procedimentos que a tradição revelou adequados, já que o AO não aboliu a tradição ortográfica.
No uso do hífen, muitas vezes exageradamente apontado como cheio de exceções, o texto do AO pede uma interpretação que privilegie a generalidade das regras, como fez a equipe central e de consultores do projeto do Vocabulário Ortográfico Comum, aproveitando o fato de que o texto do AO melhorou sensivelmente as normas de uso do hífen (que estão em processo de sedimentação na nossa ortografia desde o século XVIII), reduzindo seu número e ampliando sua generalidade.
Vocabulário Ortográfico Comum
O Plano de Ação de Brasília para a Promoção, a Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa, elaborado pela I Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial, organizada pela CPLP em março de 2010, recomenda, com base no próprio texto do AO, a produção de um Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, em formato eletrônico, integrado por Vocabulários Ortográficos Nacionais dos diversos Estados-Membros (EM) da CPLP e desenvolvido sob a coordenação do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), no sentido de consolidar tanto o léxico comum quanto as especificidades de cada país de língua oficial portuguesa.
O VOC é uma base de dados lexical, eletrônica, de grande escala e aberta que vem atender a necessidade da implementação da ortografia prevista no AO, bem como instaurar uma nova metodologia de trabalho conjunto dos EM da CPLP na área do léxico da língua.
A metodologia foi desenvolvida segundo o padrão tecnológico mais avançado existente no campo, com parceiros de reconhecida tradição na área e consensuada em diferentes instâncias, orientando a criação de equipas nacionais para o desenvolvimento de cada um dos Vocabulários Ortográficos Nacionais (VON).
Realizou-se na Praia (Cabo Verde), na sede do IILP, uma Reunião Técnica, de 26 a 29 de setembro de 2011, para sensibilização dos EM sobre a problemática da elaboração do VOC e aprovação dos procedimentos técnicos. Em seguida, de 05 a 08 de dezembro de 2011, realizou-se um curso técnico para lexicógrafos sobre a metodologia comum.
Na sequência dessas duas reuniões, ministrou-se, de 19 a 23 de abril de 2012, um curso em São Carlos (Brasil) destinado a linguistas brasileiros que iriam proceder à inserção de entradas na base de dados lexical comum usando procedimentos, ferramentas e plataformas acordadas entre os países.
O resultado destes esforços está corporificado no Manual para a Elaboração de Corpora publicado e lançado na sede do Secretariado Executivo da CPLP em outubro de 2012.
O VOC já conseguiu, pela primeira vez na história da língua, unir numa só plataforma todas as bases léxico-ortográficas portuguesas e brasileiras. Só isso é já um magno acontecimento.
Há, contudo, mais: o projeto do VOC está promovendo a elaboração de Vocabulários Ortográficos Nacionais onde não havia nenhum. Na IX Reunião Ordinária de Conselho Científico do IILP, realizada em 12 e 13 de maio de 2014, as equipes de Moçambique e de Timor-Leste fizeram a entrega oficial de seus respectivos Vocabulários Ortográficos Nacionais a serem incorporados ao VOC. Prevê-se a conclusão do VON de Cabo Verde até o fim de julho/ 2014.
Para viabilizar o VOC, o IILP assinou um convênio de cooperação técnica com o Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC) da Universidade de Lisboa e outro com a Universidade Federal de São Carlos; e constituiu uma equipe de consultores com especialistas dos países da CPLP. O projeto recebeu, até agora, apoio financeiro do governo de Angola e do Camões-Instituto da Cooperação e da Língua (Portugal).
A equipe de consultores especialistas discutiu e validou interpretações comuns para a aplicação de algumas bases do AO. Trabalhou-se especialmente com algumas áreas específicas tidas como críticas para a ortografia do português, tais como a toponímia, os estrangeirismos e as terminologias.
Neste momento o VOC conta com aproximadamente 300 mil palavras, alcançando um avanço considerável na execução do projeto. O lançamento da primeira versão aberta do VOC será feito em julho de 2014 por ocasião da Cimeira de Dili (Timor-Leste) dos Chefes de Estado e de Governo da CPLP.
O desenvolvimento deste projeto tem servido de parâmetro para outros projetos do IILP, no sentido de apresentar um modelo multilateral e compartilhado para a gestão da língua portuguesa, seja no campo da planificação do corpus, seja no campo da planificação do ensino/aprendizagem, dividindo custos de desenvolvimento e otimizando resultados comuns para todos os países. Uma língua internacional e pluricêntrica como o português exige precisamente esse tipo de gestão multilateral e compartilhada.
*Carlos Alberto Faraco é um linguista brasileiro, Professor e ex-Reitor da Universidade Federal do Paraná e recentemente assumiu a coordenação da Comissão Nacional Brasileira do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP).
Fonte: Blog do IILP
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