Wayuri, mídia indígena na Amazônia profunda
Publicado 04/11/2020
Por Juliana Radler, no ISA
Em novembro de 2017, no município mais indígena do Brasil, São Gabriel da Cachoeira (AM), um grupo de 17 jovens de oito etnias se reuniu para formar a Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro, a Rede Wayuri. Para marcar a estreia, o maior artista da região, Feliciano Lana, do povo Desana, morto esse ano aos 84 anos pela Covid-19, desenhou seu símbolo: a imagem de um comunicador rionegrino animado falando no microfone em frente à montanha Bela Adormecida, cartão postal do Alto Rio Negro.
Wayuri em nheengatu significa trabalho coletivo, mutirão. Nheengatu, ou língua geral, é uma das quatro línguas indígenas co oficializadas em São Gabriel, município brasileiro com maior número de línguas oficiais além do português. Nesse palco multilinguístico, os comunicadores poliglotas dominam o português e em alguns casos até cinco idiomas indígenas, sem falar no espanhol, falado pelos hermanos da fronteira – Venezuela e Colômbia.
O nome Wayuri também é sinônimo de comunicação para os povos do Rio Negro. Ray Benjamim, da etnia Baniwa, comunicador da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), conta que Wayuri é o boletim impresso produzido há mais de 20 anos pela Federação que representa os 23 povos indígenas da região e 750 aldeias. “Os primeiros boletins Wayuri foram impressos para divulgar os diários oficiais com a homologação das terras indígenas”, lembra Ray.
à frente do setor de Comunicação da Foirn, Ray se interessou pela área de artes visuais, fotografia, línguas e comunicação em geral quando ainda estudava na escola Pamáali, que foi referência de educação escolar indígena intercultural, situada na Terra Indígena Alto Rio Negro. Hoje, líderes Baniwa se articulam para reerguer a sede, que está em ruínas por falta de investimentos públicos na educação como um todo e, em particular, na educação escolar indígena.
Esse caminhar entre dois mundos – a interculturalidade – é uma característica da Rede Wayuri, que em novembro completa três anos. Ampliada em relação à sua criação, hoje conta com 26 comunicadores de 10 povos. Em três anos a Wayuri produziu mais de 50 boletins informativos (podcasts) que circulam pelos celulares, montou rádios poste, promoveu mobilizações sociais e oficinas de arte, enviou centenas de informes pela radiofonia e redes sociais. Do Spotify ao carro de som, os repórteres Wayuri dão um jeito de transmitir suas notícias. E agora pretendem chegar ao YouTube.
Atenção, parente!
E por falar em carro de som, foi na fase mais aguda da pandemia de Covid-19 na região, nos meses de abril, maio e junho, que os comunicadores usaram o carro de som para conscientizar a população sobre os riscos da doença. Falando nas línguas co-oficiais e em português, rodaram todos os bairros da cidade e zona rural alertando a população.
Somando os informativos em áudio, as cartilhas nas línguas indígenas e o envio diário de informações pela radiofonia da Foirn, o famoso canal 790 do Alto Rio Negro, os comunicadores foram fundamentais para ajudar as autoridades sanitárias a educar e informar a população. O trabalho rendeu ao coletivo o título da ONG francesa Repórteres Sem Fronteiras de “Heróis da Informação”, junto com profissionais de imprensa mundial, como o correspondente do New York Times na China, Chris Buckley, que passou 76 dias em Wuhan no pior momento da pandemia. Devido às reportagens, Chris foi forçado a deixar a China após o período e pela primeira vez em 24 anos seu visto não foi renovado.
“Alguns se arriscaram tanto para informar sobre a realidade da pandemia que perderam suas vidas, enquanto outros ainda estão desaparecidos ou atrás das grades”, constata o secretário geral da RSF, Christophe Deloire. Processados, agredidos, insultados, muitos pagaram um alto preço por defender o direito à informação e lutar contra os boatos e a desinformação que agravam as consequências da crise sanitária. Esses novos heróis nos lembram de que o jornalismo pode salvar vidas. Eles merecem toda a nossa atenção e admiração.” Essa fala de Deloire exaltando o trabalho dos 30 profissionais e/ou grupos de mídia ao redor do mundo selecionados pela RSF está no site oficial da organização em Português.
Além desse mérito, a RSF selecionou a Rede Wayuri para integrar o Programa de Apoio ao Jornalismo, que reúne organizações de mídia independente de quatro estados brasileiros: Amazônia Real e Rede Wayuri (Amazonas); Ação Comunitária, Caranguejo Uçá e Marco Zero Conteúdo, de Pernambuco; Data Labe e Fala Roça, do Rio de Janeiro; Alma Preta e Nós, mulheres da periferia, de São Paulo.
Para a RSF, “estes oito veículos vêm exercendo papel decisivo na mobilização em torno da defesa dos direitos humanos e na divulgação da cultura periférica — tanto na sua diversidade de expressões culturais e artísticas, quanto na produção de conhecimento e representação política. A atuação de suas equipes, comumente, representa a garantia do direito à informação confiável para camadas da população que estão à margem dos processos de comunicação hegemônicos”, enfatiza a organização.
Os correspondentes dos rios
Divididos entre aldeia e cidade, os comunicadores nas terras indígenas são os correspondentes na gigante Bacia Hidrográfica do Rio Negro. Tem correspondente nos rios Içana, Ayari, Uaupés, Tiquié, Jurubaxi e no Baixo, Médio e Alto Rio Negro. Cada calha conta com comunicadores locais com a função de enviar para a capital indígena, a sede urbana de São Gabriel, informações importantes de sua comunidade ou calha de rio. Pode ser a visita de uma equipe de saúde na pandemia, uma denúncia sobre invasão ou algo surpreendente como a chuva de granizo que intrigou os Baniwa de Tunuí Cachoeira em 2018. Nunca ninguém na aldeia tinha visto cair gelo do céu!
E o comunicador Plínio Baniwa registrou e colocou nas redes até chegar a cientistas que estudam mudanças climáticas, como Antônio Nobre, que explicou o fenômeno. “Devido aos efeitos combinados do desmatamento e das mudanças climáticas, a circulação atmosférica está mudando na Amazônia. Fenômenos como esse se tornarão mais comuns. Veja que estiagem prolongada e queda de granizo parecem incompatíveis, mas não são. Quando há muita poeira e fuligem no ar, e pouco vapor, as gotículas que se formam não são grandes o suficiente para caírem até o solo. Cada vez que esse processo se dá a nuvem cresce em altura. Quanto mais alto vá, mais frio o ar, e, portanto, maior a chance de se formar gelo, daí o granizo”, disse.
Já na cidade estão comunicadores que fazem a produção, roteirização, locução e edição do boletim. Gravado no celular e editado em software livre, o áudio final é colocado no Soundcloud e no Spotify, mas decola mesmo para os ouvintes do Rio Negro pela distribuição via WhatsApp (97 98406-3754). Sem internet banda larga, a melhor conexão no município é via satélite oferecida pelo Gesac, satélite brasileiro público, sigla de Governo Eletrônico – Serviço de Atendimento ao Cidadão. Essa conexão satelital não ultrapassa 10 mega e sempre está sujeita às alterações climáticas. Ou seja, quando chove, a internet cai e na parte onde mais chove no mundo, isso ocorre quase diariamente.
A população espera um dia receber fibra óptica. Há anos o governo vem investindo na subida dos cabos pelo rio e em dezembro está previsto que a banda larga funcione no município de Barcelos, no Baixo Rio Negro, distante 472 quilômetros de São Gabriel. Ninguém sabe quando e se um dia esses cabos chegam até o Alto Rio Negro, o que mudaria totalmente as possibilidades da região, inclusive para acesso à educação remota, transações financeiras e todos os serviços que necessitam de uma conexão rápida, barata e estável. Veja só: uma conexão (instável) de internet de 1 mega, em São Gabriel, custa R$ 300 por mês. Em São Paulo o consumidor paga R$ 100 por 120 mega de fibra óptica.
A internet móvel 4g também não consegue suprir a demanda com a pequena quantidade de antenas instaladas pelas operadoras que pouco investem no noroeste amazônico. A esperança para os 45 mil habitantes de São Gabriel, sendo 90% indígenas, é que com a chegada das inovações do 5g, quem sabe a conexão melhore na região. Por hora, assistir a um vídeo no YouTube ainda é um desafio em São Gabriel, mas eles dão um jeito. “Tem gente que acorda quatro da manhã para se conectar no YouTube porque tem menos gente usando o 4g e aí funciona”, conta a socióloga Elizângela da Silva, do povo Baré. Ela brinca que sempre surpreende sua sogra, dona Mercedez Baré, na madrugada vendo YouTube.
Elizângela diz que a sogra não fala português, não foi a escola e não sabe ler, nem escrever. Mas, adora ver vídeos e programas pelo celular dos netos. “Ela entende português, mas só fala mesmo em nheengatu”, diz sorrindo. A família é da Terra Indígena de Cué-Cué Marabitanas, na fronteira com a Venezuela, mas agora mora na cidade de São Gabriel devido ao trabalho e estudos dos três filhos adolescentes de Elizângela. Ela, que se formou em Ciências Sociais, gosta mesmo é de dizer que sempre será uma mulher da roça, do cultivo da mandioca, do preparo do açaí e uma liderança comunitária. Sua mais nova bandeira, para a qual utiliza todas as redes sociais, faz lives, podcasts e vídeos, é a luta contra a violência doméstica e sexual contra a mulher indígena. “Meu filho me viu em tantos vídeos na internet que ele me perguntou se eu trabalhava pro YouTube”, brinca.
Tempo amazônico
A internet limitada a poucas comunidades maiores e ao centro urbano é uma dificuldade para a Rede Wayuri fazer seus áudios circularem pela Cabeça do Cachorro. Tem quem vá buscar os arquivos com um pendrive na cidade para levar para as aldeias e tocar na caixa de som dos centros comunitários. Tem professor do ensino básico indígena que coleciona os podcasts, baixa e toca em sala de aula. Tem transferência pelo app ShareIT, sem uso de internet, e por aí os áudios vão ganhando o território e seus ouvintes. Pouco a pouco, vamos descobrindo que os áudios circulam, que as pessoas escutam, mandam perguntas e se interessam pelo conteúdo narrado pelos comunicadores Wayuri. É o tempo amazônico da comunicação.
Claudia Ferraz, do povo Wanano, coordenadora da Rede Wayuri, é uma comunicadora de 37 anos que antes da rede já atuava com comunicação na rádio municipal de São Gabriel. Claudinha sonha com a Rede Wayuri maior, mais equipada e com maiores possibilidades de produção. “Seria bom a gente ter mais equipamentos, meios para produzir e mostrar mais o nosso trabalho”, afirma. Assim como Claudia, outros jovens indígenas da região que procuram a Rede Wayuri buscam oficinas de capacitação em vídeo, fotografia, edição e outras formações técnicas para o mundo da comunicação.
O interesse em aprender é enorme porque a juventude se identifica com as linguagens do audiovisual e quer produzir do seu jeito, com seu olhar. Em 2019, a Rede Wayuri foi selecionada pelo Profissão Repórter para um intercâmbio com a equipe da Globo em São Paulo. Claudinha e Moisés Baniwa, comunicador e cineasta indígena, foram escolhidos para participar após uma seleção na qual enviaram um vídeo reportagem com a denúncia de uma escola indígena fechada por insalubridade devido à proximidade com o lixão do município. Foi uma matéria que rendeu intervenção do Ministério Público Federal (MPF) para punir o município, audiências públicas e mobilização da opinião pública para acabar com o lixão, que infelizmente ainda persiste, assim como em todos os municípios do interior do Amazonas. “Fizemos a nossa parte que é informar e conscientizar a população para o que está errado. É o nosso dever como comunicadores”, comenta Moisés.
O trabalho da Rede Wayuri vem inspirando outros coletivos de mídia indígena e vários eventos de intercâmbio ocorreram, como em Roraima, no Pará e na capital, em Manaus. Claudinha deu oficina para outros jovens comunicadores indígenas a convite da Amazônia Real, a principal agência de notícias independente sobre a região amazônica, liderada pelas jornalistas Kátia Brasil e Elaíze Farias — incentivadoras do protagonismo dos comunicadores indígenas. Ray Baniwa também já compartilhou sua experiência como comunicador com o Conselho Indígena de Roraima (CIR), com a Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa) e em Brasília durante o Acampamento Terra Livre (ATL), quando produziu o podcast Vozes do ATL, em parceria com Letícia Leite, do Copiô, Parente.
A São Gabriel também vieram para conhecer a Rede Wayuri as jornalistas indígenas Mayra Wapichana, atual assessora de imprensa da deputada federal Joênia Wapichana, e Djuena Tikuna, que também é artista e cantora, a primeira a fazer um show solo no Teatro Amazonas. Essas trocas contribuem na formação e na consolidação de um movimento de jornalismo local, indígena, “um tanto feminino” e amazônico, que abre caminhos para novas vozes, narrativas e perspectivas para a comunicação no Brasil.
Cobertura política indígena
A novidade da Rede Wayuri agora é promover a cobertura das eleições municipais com a produção de podcasts especiais sobre a corrida aos cargos de vereador e prefeito. No dia 11 de novembro, a rede fará um debate entre os candidatos, mediado pelas comunicadoras Cláudia Wanano e Daniela Patrícia, do povo Tukano. O debate será transmitido ao vivo pela Rádio FM O Dia de São Gabriel da Cachoeira e veiculado pelo canal de YouTube que o coletivo lançará, o Papo da Maloca.
A partir do canal, a rede pretende também veicular vídeos sobre a cultura indígena e reportagens de temas variados. A ideia é que, além de falar para dentro do seu território, agora os comunicadores também falarão para fora, levando suas narrativas para milhares de pessoas no Brasil e no mundo. “Um ponto que queremos também trabalhar é a questão das fake news. O que sair de mentira sobre nós indígenas, nós vamos revidar falando a nossa versão, falando a verdade”, disse Ray Baniwa em oficina sobre o tema.
Parte da cobertura das eleições também está disponível pelo Soundcloud e pelo Spotify. Um grupo de seis repórteres Wayuri (Cláudia Wanano, Dani Patrícia Tukano, Moisés Baniwa, Rosivaldo Baniwa, Álvaro Socot Hupdah e Paulinho Desana) está engajado na produção de informações aos parentes, tirando dúvidas e trazendo notícias para a população. Pela radiofonia da Foirn, a comunicadora Edneia Teles, do povo Arapaso, também leva notícias para as comunidades nas terras indígenas.
“Grande parte da população só tem mesmo a radiofonia para se manter informado. Então, eu sei que nosso trabalho aqui na rádio é fundamental para essas pessoas se manterem conectadas. E agora, nas eleições, os parentes me perguntam até quem são os candidatos, quais são os números, as propostas, porque o povo tem dificuldade de acesso à informação. Aí fica fácil para qualquer um chegar dando um litro de gasolina para ganhar o voto. A gente informando as pessoas é bom para eles decidirem o que é melhor para o coletivo”, ressalta Edneia, uma das comunicadoras mais atuantes durante a pandemia de Covid-19.
Como não existe jornal e nenhuma mídia no município, a não ser a rádio municipal e a rádio FM O Dia (que é do Rio de Janeiro e a maior parte da programação não é local), a Rede Wayuri ocupa o importante papel de levar informações para a população, com foco nos povos indígenas e nas comunidades. Alguns conteúdos são produzidos nas línguas indígenas. Com a formação de mais comunicadores e a multiplicação desse trabalho, espera-se também a geração de podcasts locais nas calhas dos rios, produzidos nas próprias comunidades, nas línguas faladas nos rios, como Tukano, no Uaupés e Tiquié, Baniwa, no Içana e Ayari, Nheengatu, no Alto Rio Negro e Yanomami, em Maturacá, na região do Pico da Neblina.
A cobertura especial da Rede Wayuri das eleições em São Gabriel da Cachoeira ocorre também no ano que se registra um aumento de 27% das candidaturas indígenas em relação às eleições de 2016. O Brasil tem 2.208 candidaturas indígenas concorrendo às eleições 2020, segundo a Articulação de Povos Indígenas do Brasil (Apib). Este número é relativamente proporcional à população indígena brasileira, que representa 0,4% (900 mil) da população total brasileira (209 milhões de pessoas). O Amazonas é o estado campeão em candidaturas indígenas, com 497 do total.
O Instituto Socioambiental (ISA) é parceiro da Rede Wayuri, cujo objetivo é o fortalecimento da comunicação indígena no território de atuação da Foirn. Sua criação contou com o apoio da União Europeia (UE), por meio do projeto de fortalecimento do protagonismo indígena e de suas associações através da lei do marco regulatório do terceiro setor (Mrosc). Até 2019, todas as oficinas de formação realizadas pelo ISA em parceria com a Foirn, encontros, intercâmbios, compra de equipamentos, logística, bolsas e demais custos foram financiados pela UE. Com o término do projeto, novos parceiros apoiadores viabilizaram a continuidade dos trabalhos, como a Fundação Rainforest, da Noruega, o Fundo Talmapais Trust, a Fundação Nia Tero e o rapper Bera, da Geórgia, embaixador da campanha #PovosdaFloresta, do ISA.
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