Crioulo está na moda e Lisboa já tem um jornal com esta língua
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“Eu falo crioulo sempre, eu penso em crioulo. Eu sou crioula de genes [mãe cabo-verdiana e pai guineense] e eu falo crioulo em casa, eu namoro em crioulo, eu crio as minhas filhas em crioulo, as duas nasceram cá e a mais nova é bilingue, fala o português e o crioulo”, afirma à agência Lusa a jornalista e cantora Karyna Gomes.
Karyna é a jornalista responsável pelo projeto de jornalismo crioulo no jornal online A Mensagem, pioneiro na tradução de artigos para crioulo cabo-verdiano e guineense, nomeadamente dos que mais dizem respeito a estas comunidades e às suas vivências na capital portuguesa.
“O crioulo está na moda desde o século XVI e veio para ficar”, refere, a propósito da cada vez mais frequente utilização desta língua, nomeadamente por camadas mais jovens e sem ligações aos países de origem.
E explica: “O crioulo é nossa língua materna. Eu, por exemplo, nasci em Bissau e nasci trilíngue, pois nasci numa família de guineenses e cabo-verdianos, a falar crioulo da Guiné, crioulo de Cabo Verde (Barlavento e Sota-vento) e o português. Portanto, tenho esses mundos todos em mim”.
“Lisboa sempre foi crioula e quando falamos do crioulo, em termos culturais, vemos que é um processo. Eu concordo com a tese de Mário Lúcio [escritor e ex-ministro da Cultura de Cabo Verde] que fala da crioulização, ou seja, um processo que começa no século XV, consolida-se como língua no século XVI, e desde então não há português sem crioulo e o crioulo nunca existiu sem português e nós temos plena consciência disso e vamos evoluindo nessa crioulização que é a junção dos diferentes que congregam e que são um todo lindo, uma diversidade linda”, adianta.
Karyna Gomes reconhece que “há cada vez mais valorização do crioulo como língua”.
Mesmo na comunidade crioula, tanto a guineense como a cabo-verdiana, “houve todo um trabalho que se fez” para que o crioulo fosse valorizado como língua.
“Sempre nos foi dito que o crioulo é um dialeto. Não, o crioulo é uma língua e nós fomos crescendo e vendo essa evolução. Lisboa, que sempre foi crioula, hoje na verdade há uma resposta mais dinâmica e mais mediática dessa crioulização, desse movimento crioulo que sempre existiu desde a época do B.Leza [discoteca africana em Lisboa), do Bana, da Cesária [Évora] e hoje através do Dino d’Santiago, do Julinho KSD, da Lura e de tantos outros nomes da música tradicional crioula, como os Tabanka Djaz e Manecas Costa, da Guiné-Bissau”.
O crioulo cresce, “sobretudo através de interlocutores da música”, mas também graças a posições políticas, como a do chefe de Estado cabo-verdiano.
José Maria Neves proferiu o seu discurso de tomada de posse como Presidente da República de Cabo Verde, no passado dia 09 de novembro, em crioulo e em português e elegeu a língua cabo-verdiana como a sua “preocupação fundamental”.
“Vou estar na linha de frente do combate para a oficialização do nosso crioulo”, levando em conta as variantes de todas as ilhas, prometeu.
“Já não era sem tempo”, considera a jornalista e cantora, acrescentando: “Tanto o crioulo da Guiné-Bissau como o crioulo de Cabo Verde já estão a ser trabalhados para a oficialização desde o pós-independência”.
Karyna considera que “há muitas contribuições, nomeadamente da Igreja Católica, da Igreja Evangélica, que traduziram a Bíblia para o crioulo da Guiné. Em termos de escrita e em termos de alfabeto há ainda algum trabalho a fazer”.
No caso de Cabo Verde “já há um alfabeto que é oficial, mas tanto um como outro ainda não são línguas oficiais”. “E é importante porque estamos a falar de filosofia, estamos a falar de um povo, estamos a falar de memórias, da própria cultura e da existência de dois povos”.
Sobre o seu trabalho no jornal A Mensagem, destaca o facto de ser um “jornalismo inclusivo”.
“Eu sempre senti falta dessa cobertura jornalística da Lisboa real. Lisboa, tanto o centro de Lisboa como as periferias, e Portugal, já agora, está cada vez mais multicultural, mais diversa e, quando nós falamos do crioulo, é ótimo incluir as duas línguas no jornalismo, porque se faz literatura nas duas línguas há muitas décadas”.
A artista gostaria de ver o movimento crescer: “Ver o crioulo como um espaço de partilha, um espaço de congregação em que não só os crioulos, linguisticamente falando, da Guiné e Cabo Verde, mas também tudo aquilo que vem do Brasil, do Afeganistão, da Índia, da China, que se possam juntar nesse palco maravilhoso que é Lisboa e serem o que são e formarem essa Lisboa crioula que é muito bonita e que é certamente muito forte”.
Das histórias que tem contado no jornal A Mensagem, Karyna destaca a da “diva” Cesária Évora, que tinha uma forte ligação a Lisboa, mas também a do próprio Dino d’Santiago, que “desconstrói toda essa questão da vida do badiu [cabo-verdianos da ilha de Santiago] que é o nome do seu novo álbum.
O Rossio de Lisboa é palco dessa crioulização e todos os dias são às dezenas os africanos, sobretudo guineenses, que ali se encontram, alguns vendendo produtos oriundos da Guiné-Bissau, como o caju, a cabaceira e o amendoim.
Junto a uma banca improvisada onde vende saquinhos com estes produtos, Kadi Djaló, 67 anos, diz à Lusa que fala sempre crioulo e que até conhece portugueses que falam bem crioulo, principalmente os que estiveram na Guiné-Bissau.
Kadi, que diz falar mal português, viveu na Alemanha e está em Portugal “há pouco tempo”, onde tem família, com quem fala sempre em crioulo.
Gostou de saber que existe um jornal em Portugal que publica histórias em crioulo e até acha que as duas línguas — crioulo da Guiné e o português — são parecidas.
Frente à Embaixada de Cabo Verde, em Lisboa, Elisabete Gomes, 27 anos, diz à Lusa que fala o crioulo no dia a dia, com os cabo-verdianos e em casa.
“O crioulo está a evoluir a um nível muito importante. Os jovens já não sentem o receio em falar o crioulo, até mesmo com os portugueses”, diz a cabo-verdiana oriunda de Santiago.
Considera que, no passado, o crioulo não era tão bem aceite como hoje é.
“Hoje, as pessoas sentem-se mais à vontade em falar o crioulo, seja nos transportes, no trabalho. Mesmo as pessoas que não têm a língua crioula como uma língua do dia a dia já têm como falar. É uma língua viva”.
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