Sem aula e sem diploma
Após corte de dois terços da verba, curso superior de Licenciatura Indígena da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) tem plano pedagógico inovador ameaçado
O curso regular de Licenciatura Indígena Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), criado há 10 anos como resultado de reivindicações dos povos indígenas por uma Educação de nível superior diferenciada, está praticamente paralisado. Com uma metodologia baseada no aprendizado por meio de pesquisas, aulas nas aldeias e currículo pós-feito – ou seja, uma grade curricular feita em sala de aula pelos professores e alunos -, o curso sofreu um corte de 70% das verbas públicas, assim como tentativas de mudança em sua metodologia de ensino, como alertam professores, alunos e colaboradores.
Turma regular significa dizer que a Licenciatura Indígena é uma graduação da UFAM tal como cursos tradicionais, como Medicina, Direito, Arquitetura, Engenharia, Comunicação e outros. Entretanto, diferente desses cursos mais convencionais, as turmas da Licenciatura Indígena matriculadas em agosto de 2018 nos pólos Tukano e Baniwa não iniciaram as aulas até hoje, sem previsão de quando começarão a estudar.
Além disso, aproximadamente 140 estudantes que concluíram os quatro anos da graduação nas turmas de 2014 e 2015 ainda estão aguardando a colação de grau. Os alunos formados pretendem atuar na rede pública de Educação, como professores em suas comunidades, mas estão sendo prejudicados por não terem o diploma em mãos, mesmo tendo defendido seus trabalhos de conclusão de curso (TCC).
Os alunos indígenas denunciam o descaso e o preconceito. “É muita falta de respeito com as turmas que já defenderam o TCC e com os aprovados no processo seletivo que estão esperando o início do curso. Se fosse com eles (brancos) será que iriam esperar tanto tempo? Será que isso está acontecendo só porque somos indígenas? Nós merecemos respeito!”, critica Carmem Menezes, moradora do distrito de Taracuá, Terra Indígena Alto Rio Negro, baixo rio Uaupés.
Com 26 anos, Carmem, do povo Tukano, é uma das formadas de 2014 que aguarda a colação de grau. Ansiosa para concorrer no próximo processo seletivo da Seduc (Secretaria de Estado de Educação) do Amazonas, ela quer se tornar professora. “A Licenciatura vem colaborando muito com a melhoria da educação escolar indígena na região”, destaca.
Para a professora colaboradora do curso, Chantelle Teixeira, especializada em Direitos Indígenas, o descaso com os estudantes afeta bastante as comunidades. “A política pedagógica do curso, para além da formação de professores indígenas, busca fortalecer as comunidades e seus projetos de futuro, suas línguas maternas, suas culturas e saberes. No momento em que esses estudantes, que já teriam condições de serem professores nas escolas de suas aldeias, têm negada sua contratação pelo município ou estado por não terem um diploma, não são só eles os prejudicados, mas suas comunidades também”, lamenta.
Max Tukano, formado na primeira turma da Licenciatura Indígena do pólo Tukano, de 2009/2010, e uma liderança política bastante ativa, gravou um vídeo ao reitor da UFAM, Sylvio Mário Puga Ferreira, pedindo medidas urgentes sobre o caso. “Há um ano atrás, uma turma nova defendeu seu TCC e [desde então] não tem nenhuma notícia sobre a colação de grau. Isso é falta de respeito com os 23 povos indígenas do Rio Negro que colaboraram com a criação desse curso, que fortalece a nossa identidade como povos indígenas”, enfatiza Max. Em fevereiro deste ano, os alunos da Licenciatura Indígena em São Gabriel da Cachoeira enviaram ofício cobrando uma resposta da UFAM, mas não tiveram resposta.
Sobre as colações de grau, o coordenador geral do curso, professor Luiz Fernando Santos, informou ao ISA que estão trabalhando para que em janeiro de 2020 esses alunos possam colar grau. “É um problema sério e já estamos fazendo todos os trâmites para que a universidade garanta recursos para os deslocamentos necessários a essa colação de grau”, diz. Além da falta de recurso, o professor explicou que o atraso ocorreu também devido ao fato de que alguns coordenadores das turmas da Licenciatura demoraram para preparar os processos necessários à colação de grau dentro da pró-reitoria de graduação da UFAM. Também, através da Assessoria de Comunicação, a UFAM respondeu, por e-mail que “o Instituto de Ciências Humanas e Sociais (IFCHS), onde o curso está sediado, vai apresentar em breve um plano de ação com um cronograma de todas as atividades acadêmicas, incluindo a entrega dos certificados”.
Interesse e reconhecimento
Na última edição do processo seletivo da Licenciatura Indígena em 2018, a UFAM recebeu 1613 inscritos para apenas 120 vagas, uma relação de cerca de 13 candidatos por vaga. Na primeira edição, em 2009, foram 695 inscritos para 120 vagas. Esse aumento mostra o interesse crescente pelo curso, que tem turmas regulares com ingresso bienal nas turmas das línguas Tukano, Baniwa e Nheengatu. Com o sucesso da Licenciatura, a UFAM criou turmas especiais sob demanda para os Yanomami, Satere-Mawé e também da língua Nheengatu em Santa Isabel do Rio Negro, município vizinho a São Gabriel da Cachoeira, onde estão as comunidades sedes das turmas regulares.
O projeto pedagógico da Licenciatura Indígena, ligada ao Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais da UFAM, ganhou nota máxima (5) do INEP/MEC (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação) e avaliação geral com conceito 4 (muito bom).
Segundo a ex-coordenadora geral do curso, professora Ivani Faria, “os cortes que temos sofrido também tem viés ideológico. A proposta da aprendizagem pela pesquisa, com todos os conteúdos definidos pelas pesquisas que os estudantes elegem no primeiro período, é um processo muito democrático e emancipatório. Isso leva a autonomia dos povos. E isso não tem sido visto com bons olhos”, afirma Ivani, que atualmente coordena o Laboratório Dabukuri (Planejamento e Gestão do Território na Amazônia) da UFAM.
Diego Ken Osoegawa, professor colaborador da Licenciatura Indígena, lembra que essa metodologia inovadora sempre exigiu muita luta para ser aceita. “Essa visão pedagógica diferente que é voltada para a autonomia e não para a doutrinação e que representa os anseios dos povos indígenas sempre se chocou com as estruturas tradicionais”, comenta, acrescentando: “incentivamos que as defesas dos alunos fossem feitas nas suas línguas maternas e chamamos pessoas de notório saber das comunidades indígenas para participarem das bancas de avaliação. Enfim, demos prestígio e reconhecimento na Academia a pessoas sem título acadêmico”.
Para ele, o curso e seu plano pedagógico são grandes conquistas da UFAM.
Sob pressão
Apesar dos méritos, o corte de 50% que ocorreu no ano passado – somado aos 20% do ano anterior – tornou praticamente inviável a continuidade do curso. O recurso caiu de R$ 1,8 milhão para R$ 902 mil. E, em 2019, o Ministério da Educação não repassou recurso algum para a Licenciatura Indígena, segundo o coordenador. Embora seja um curso regular da UFAM, explica Luiz Fernando, sua realização depende de repasses feitos pelo MEC que são dedicados à educação indígena. “A UFAM assumiu a realização do último processo seletivo sem a garantia de recursos do MEC para a manutenção do curso. Agora nós temos esse problema sério. A universidade precisa ser tensionada na sua administração superior para assumir com recursos próprios essas turmas”, argumenta.
Em relação à ameaça de descaracterização da proposta metodológica do curso, o atual coordenador defende que o plano pedagógico baseado no ensino via pesquisa deve ser mantido. “Achamos que o MEC tem, sim, interesse nessa mudança da metodologia. Mas, nós, da coordenação do curso, não queremos isso. Compreendemos que a metodologia da aprendizagem via pesquisa é um instrumental metodológico inovador e temos defendido isso junto ao MEC. O programa do curso preenche perfeitamente as demandas para a formação de um professor que vai conseguir exercer sua profissão e colaborar com o empoderamento dos grupos locais e da sociedade indígena”, conclui.
Desde o início, há dez anos, a Licenciatura Indígena teve quatro edições de processos seletivos, somando 120 vagas em cada um, sendo um total de 480 vagas destinadas à formação de professores indígenas para atuarem em suas regiões. Em 2013, 72 indígenas formaram-se professores nos polos linguísticos Baniwa, Nheengatu e Tukano. Cinco anos depois, em janeiro, 30 estudantes colaram grau na turma Nheengatu e, em março deste ano, 37 estudantes da turma especial Satere-Mawé. A turma Satere é a única no contexto desta Licenciatura que está fora da região dos povos indígenas do Rio Negro, ocorrendo na TI Andira Marau, em Maués e Barreirinha, no Amazonas.
Conhecimento indígena valorizado
Na edição número 3 da Revista ARU, de abril de 2019, foram publicados cinco textos elaborados por alunos da Licenciatura Indígena Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável da UFAM. Os artigos demonstram o conhecimento indígena detalhado da região, baseado nas narrativas de origem do mundo e da humanidade. Esses textos trazem informações sobre as diferentes ocupações que aconteceram em alguns rios, os cuidados com o manejo desses lugares, assim como a origem das doenças, que são relacionadas ao desrespeito aos locais sagrados situados nas terras indígenas onde habitam há séculos.
Em um dos textos, por exemplo, o aluno Baniwa, Sidney Garcia, conta que a partir de sua pesquisa na Licenciatura, ele registrou a origem dos Yoopinai – seres espirituais, imateriais e invisíveis que também não podem ver as pessoas – e das doenças provocadas por esses seres não humanos com os quais precisamos conviver neste mundo. Com orientação da professora Helena Lima, Sidney acessou o conhecimento de homens e mulheres de sua comunidade Tunuí Cachoeira, na Terra Indígena Alto Rio Negro, que são sábios, conhecedores e historiadores locais que conhecem em detalhes as narrativas do povo Baniwa. Esse texto original e interessante está publicado com fotos na revista ARU, que é uma publicação semestral realizada a partir da parceria entre o Instituto Socioambiental (ISA) e a Foirn.
Juliana Radler
Fonte: Instituto Socioambiental
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