Povos indígenas divulgam carta denunciando violações e retrocesso após encontros no Fórum Social
Os povos indígenas que se reuniram durante o Fórum Social Temático, na última semana em Porto Alegre, divulgaram uma carta aberta onde denunciam as violações sofridas pelos povos originários do Brasil e apontam as principais ameaças pela frente. O documento é assinado por 305 povos, divididos em 63 grupos, falantes de 274 línguas.
Os indígenas lembram sua presença desde o primeiro Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre há 15 anos, e afirmam: “nossas demandas não foram atendidas e sofremos muitos retrocessos”.
No documento, eles também criticam o silêncio da mídia diante do assassinato de Vitor, kaingang de 2 anos, morto em uma rodoviária no litoral de Santa Catarina, em 30 de dezembro. “O assassino de Vítor Kaingáng é fruto de meios de comunicação e de uma elite genocida e etnocida e devem ser responsabilizados pelo extermínio físico e cultural dos nossos povos diariamente, sem que nada seja dito ou feito”.
A carta dos povos indígenas também fala sobre a PEC 215 – projeto de lei que pretende alterar o processo de demarcação de terras – a construção de Belo Monte, o massacre dos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul e o impacto do desastre de Mariana para o povo Krenak.
Leia o documento no íntegra:
Povos Indígenas do Brasil: Diversidade na Adversidade
No Fórum Social Mundial, em 2001, os 305 Povos Indígenas do país, falantes de 274 línguas vivas contavam com mais de seiscentos participantes, de diferentes países, que acamparam na Confederação dos Tamoios, no Parque Harmonia, em Porto Alegre e elaboram um Manifesto: palavras que o vento levou. 15 anos se passaram e o balanço que fazemos no FSM Temático 2016 é de que nossas demandas não foram atendidas e sofremos muitos retrocessos. No Brasil do século XXI bebês indígenas são degolados por racismo, em local público no sul do país e o que a sociedade e a grande mídia brasileira fizeram? Fizeram silêncio! São coniventes não só pela omissão: alimentam o ódio racial contra os antigos donos dessa terra. Vítor Kaingáng era um bebê indígena de quem foi tirado da forma mais brutal o direito mais fundamental de um ser humano: o direito à vida. O assassino de Vítor Kaingáng é fruto de meios de comunicação e de uma elite genocida e etnocida e devem ser responsabilizados pelo extermínio físico e cultural dos nossos povos diariamente, sem que nada seja dito ou feito.
O FSM Temático 2016 também se propõe a analisar os desafios que temos para um mundo melhor. Nossa sobrevivência física e cultural está ameaçada: a construção da Hidrelétrica de Belo Monte, no coração da Amazônia, é a iniciativa de maior impacto ambiental e sociocultural que atinge os Povos Indígenas do Brasil. Belo Monte foi projetada para ser a terceira maior hidrelétrica do mundo, no entanto, viola o direito a ter respeitada nossa manifestação livremente expressa nas consultas realizadas: Somos contra Belo Monte! Sua energia é banhada em sangue indígena. Sua construção afogou nossas culturas e inundou nossos territórios e sítios sagrados, condenando ao desaparecimento os nossos estilos de vida tradicionais.
Denunciamos o massacre de povos inteiros como os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, financiado pela cobiça do agronegócio com o objetivo de ampliar suas fronteiras agrícolas expropriando territórios indígenas e assassinando nossos líderes, velhos, mulheres e crianças com o conhecimento e a conivência do Governo Brasileiro do Judiciário e o patrocínio do Congresso Nacional dominado por ruralistas anti-indígenas.
Expressamos nossa solidariedade ao Povo Indígena Krenak pela morte do Rio Doce, contaminado pelo desastre ecológico causado pelo rompimento das barragens de Fundão e Santarém e Mariana (MG) por negligência da empresa Samarco.
Assistimos à redução dos direitos territoriais assegurados aos Povos Indígenas na Constituição Federal do Brasil por projetos de lei como a Proposta de Emenda Constitucional 215, promovida pelos parlamentares ruralistas com o objetivo de paralisar a demarcação das terras indígenas e reduzir as terras indígenas já demarcadas.
Exigimos a revogação da Portaria 93 de 1998 do IBAMA que ao proibir a comercialização de artesanatos com partes de animais repassa para os Povos Indígenas o passivo ambiental da sociedade brasileira. Queremos lembrar ao mundo que as áreas mais preservadas da biodiversidade do Brasil estão nas terras indígenas e que os Povos Indígenas não recebem pelos serviços ambientais que prestam ao país, considerado o número um entre os países com maior diversidade ambiental do planeta, graças à nossa resistência às madeireiras, às mineradoras, às hidrelétricas, às rodovias e ao agronegócio que destroem, desmatam, contaminam e desertificam para concentrar muitas riquezas nas mãos de poucos em nome de um crescimento acelerado e insustentável.
Denunciamos a legalização da biopirataria dos nossos conhecimentos tradicionais, inovações e práticas pela Lei 13.123 de 2015 que trata do Acesso à Biodiversidade, aos Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais. O Executivo e o Congresso Nacional trataram o nossos conhecimentos como “coisas de ninguém” pois nós, Povos Indígenas somos donos, proprietários de saberes e fazeres cobiçados por seu valor econômico, mas não fomos consultados para que nossos conhecimentos fossem negociados com as indústrias por percentuais com os quais não concordamos. O Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT que determina que devemos ser consultados antes da criação de leis que nos afetem. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, também assinada pelo Brasil estabelece que os países não podem reduzir os direito já reconhecidos aos Povos Indígenas em sua legislação nacional como ocorreu com a Lei 13123 de 2015.
Por que o Poder Legislativo não incluiu os Povos Indígenas na lei que reserva vagas para negros em concursos públicos? Por que continuamos invisibilizados? É tempo de que o Brasil comece a amortizar a dívida histórica que possui para com os Povos Indígenas, que não pode ser paga, pois se trata de crimes de lesa humanidade sem precedentes na História da humanidade.
Os Povos Indígenas tem capacidade para ocupar espaços estratégicos em todos os setores e em todos os níveis das esferas municipal, estadual e federal: não precisamos de tutores ou porta-vozes! Só com o nosso protagonismo será possível elaborar e implementar políticas públicas de saúde, educação, cultura, esporte, lazer, gênero e sustentabilidade que sejam adequadas à nossa diversidade cultural e linguística.
A Comunidade Internacional deve saber que o Brasil não honra os tratados internacionais que assina, especialmente os instrumentos internacionais que reconhecem direitos humanos às minorias como nós, Povos Indígenas.
Nós, os 305 Povos Indígenas no Brasil, que possui 63 Grupos Isolados, falantes de 274 Línguas solicitamos a solidariedade dos movimentos presentes no Fórum Social Mundial Temático: Acreditamos que um outro mundo é possível e queremos um mundo e um futuro melhor para as gerações depois de nós! Lutamos pela nossa sobrevivência física e cultural; Exigimos respeito aos nossos saberes e expressões culturais tradicionais; Defendemos direitos territoriais reconhecidos constitucionalmente: que a Constituição seja cumprida e que nossos Povos possam ter de volta a dignidade que nos foi tirada! Queremos justiça social, respeito à diversidade cultural e o reconhecimento de que somos cidadãos brasileiros: iguais e com direito a ser diferentes!
Porto Alegre, 19 a 23 de janeiro de 2016.
Fonte: Fórum Social Porto Alegre