Português pode desaparecer? Pai do acordo ortográfico acha a questão “incompreensível”
Augusto Santos Silva antecipou desafios e dificuldades ao português. Pai do acordo ortográfico diz que nunca esteve tão forte
Estará o “português de Portugal” condenado a desaparecer? Será o fechamento das vogais, que aparentemente fará que muitos dos nossos parceiros dos países de língua portuguesa não nos percebam, a sua sentença de morte? A questão foi levantada pelo próprio ministro dos Negócios Estrangeiros na cerimónia de lançamento do Novo Atlas da Língua Portuguesa, apresentado na última semana em Lisboa. Dúvidas que os linguistas, entre os quais o principal responsável pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, rotulam de “incompreensíveis”.
O Novo Atlas da Língua Portuguesa destaca toda a força da quarta maior língua do mundo, que atualmente tem 263 milhões de falantes, que deverão ser 490 milhões no final do século. Mas a cerimónia de lançamento desta obra ficou marcada pelos dissonantes sinais de apreensão do ministro Augusto Santos Silva, que apontou “problemas sérios” à difusão do português. Entre os “desafios e dificuldades” elencados pelo ministro dos Negócios Estrangeiros está o português de Portugal, “com o típico fechamento de vogais”, o que, na perspetiva de Santos Silva, “pode levar à incompreensão entre falantes de duas variantes da mesma língua”.
Um comentário que para Malaca Casteleiro, linguista e principal responsável pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, é em si mesmo incompreensível. “Não me tenho dado conta dessas incompreensões nas minhas viagens pela Ásia, pelo Brasil, pela América do Norte e por África”, diz. “Não subscrevo essas visões pessimistas. O que nós temos é de estar unidos na defesa da língua.”
Para o linguista, as preocupações do governante estão relacionadas com as “questões da norma culta portuguesa contra o brasileiro”, que também estiveram na base de muitas das críticas nacionais à aplicação do acordo. Um discurso que diz não fazer sentido até porque, do outro lado do Atlântico, “continuam a dizer que falam português do Brasil e não brasileiro”.
De acordo com as projeções da Organização das Nações Unidas, citadas no Novo Atlas, a língua portuguesa crescerá sobretudo graças ao aumento populacional de Angola e Moçambique, com a população portuguesa a retrair para perto de sete milhões.
Mas nem esse número leva o linguista a recear que o português falado no nosso país seja secundarizado: “Em primeiro lugar, dominante no mundo é a língua portuguesa”, sustenta, lembrando que foi a partir de uma pequena população que a língua se espalhou pelo mundo: “No século XVI, quando Portugal se estendeu pelo mundo tornando-se um império global, qual era a população portuguesa?”, questiona. “Um milhão, cento e tal mil. E somos grandes. A grandeza de uma língua não depende apenas da população de um determinado país. A China tem neste momento 33 universidades onde se aprende o português”, ilustra o linguista.
Um alerta aos países lusófonos
Para Luís Reto, reitor do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa e o principal autor do Novo Atlas da Língua Portuguesa, as palavras do ministro, que escreveu o prefácio da obra, “não surpreenderam” e devem ser entendidas como uma chamada de atenção: “No fundo, aproveitou para traçar aquilo que ele acha que deve ser uma política de língua não só de Portugal mas da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa”, considera. “Só há dois países com capacidade para fazer uma política de língua, por enquanto: Portugal e o Brasil”, defende Luís Reto. “E o Brasil tem andado muito distraído disto.” A “formação de professores”, “principalmente em Timor mas também nos países africanos de língua portuguesa”, é uma preocupação do governante que Luís Reto subscreve por inteiro.
Quem não tem andado distraída, como prova o Novo Atlas, é a China, onde a língua portuguesa está em franca expansão, e não apenas através de Macau: “Olhando para o investimento chinês em Portugal, só se pode compreender por causa da lusofonia. A china tem uma ideia clara de que existe um espaço em termos mundiais que fala português. E apostaram nele.”
Uma unificação difícil
Do ponto de vista da comunicação entre países que falam a língua, Edviges Antunes Ferreira, presidente da Associação de Professores de Português, também não vê as barreiras apontadas por Augusto Santos Silva. Mesmo em Portugal, lembra, “temos de distinguir duas formas de falar: a fala do dia-a-dia, que é uma fala normal em que não há preocupações de estruturas frásicas, e depois a linguagem que tem de ser usada a nível oficial. Quando estou numa sala de aula não utilizo a mesma linguagem que uso em casa com os meus filhos”, diz.
No entanto, a professora reconhece que, mesmo a nível interno, muitas vezes “é preciso corrigir” a forma como se escreve e se fala e que a língua portuguesa como um todo tem a ganhar com “uma unificação”. “O Acordo Ortográfico tenta isso a nível de vocabulário mas não a nível da estrutura frásica, em que há grandes diferenças”, considera. E idealmente teria de se fazer essa convergência. Uma hipótese em que não acredita: “Na prática, dificilmente se fará”, diz, concluindo: “Temos é de, cada um de nós, ter o cuidado de falar cada vez melhor.”