Poder e preconceito

Valorização da diversidade linguística brasileira também passa pelo combate ao preconceito às variações no português criadas no país

Línguas indígenas. Línguas de origem africana faladas nos terreiros de candomblé e umbanda. Diversas comunidades de descendentes de imigrantes japoneses, alemães, italianos. O Brasil possui um rico cenário lingüístico e não é um país de uma única língua: os brasileiros não falam somente o português, como muitos gostam de imaginar. A polêmica é que, para muitos lingüistas, é preciso reconhecer e valorizar não só essas diversas línguas, além do português, faladas no Brasil, mas também as variações no próprio idioma, um patrimônio menosprezado.“Nossa identidade enquanto brasileiros passa pela valorização das variedades geográficas do português e também pelo reconhecimento das variedades sociais”, afirma Marta Scherre, linguista e professora adjunta da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Os sotaques regionais. As gírias e expressões criadas por jovens e outros grupos. Os empréstimos e as recriações de outras línguas no interior da “língua de Camões”. O “você” que vira somente “cê”, dentre milhares de outras palavras e expressões criadas pelos brasileiros no seus falares cotidianos. Língua é identidade e cultura e a valorização desses diferentes modos de se falar o português depende do combate a um fenômeno pouco debatido na sociedade brasileira: o preconceito linguístico.

Linguagem também é poder, e isso vale ainda mais numa sociedade desigual. Escrita e fala são hierarquizadas. No Brasil, a gramática e os dicionários são valorizados porque muito do que foge às normas e prescrições do português escrito é considerado “errado” ou “inferior”. Valores sociais são atribuídos aos diferentes modos de falar porque a escrita tende a ser vista como a essência da linguagem e, por isso, como o seu padrão mais “correto”. A variação e a mudança, que são inerentes a qualquer língua do mundo, são vistas como “ameaças” ao idioma. Mas a escrita de nenhuma língua corresponde diretamente aos diferentes modos de falá-la. Daí é que advém sua riqueza.

Para Scherre, é preciso considerar a linguagem no interior das relações sociais e, nesse sentido, sua ligação com a questão da desigualdade e da exclusão social. Por isso, a linguista faz questão de lembrar que nem todas as variações linguísticas que não atendem às regras gramaticais são estigmatizadas. Um exemplo seriam as variações no uso do imperativo que tendem a ser socialmente aceitas, ao contrário das variações na marcação do plural, estigmatizadas como “erradas” ou “feias” porque denunciam a origem social do falante. Nesse sentido, as variações na concordância de número chamam a atenção e tendem a ser ridicularizadas porque marcam a distinção entre classes sociais, entre pobres e ricos. Outro exemplo seria o chamado “r retroflexo” (o conhecido “r caipira”) que, ao ser utilizado em certas regiões do país evidencia, muitas vezes, a hierarquia entre o mundo rural e o urbano.

Em seu livro Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia e preconceito, Scherre analisa como o preconceito linguístico pode ser facilmente percebido na mídia, no despreparo dos jornalistas para lidar com as variedades linguísticas regionais e sociais e em sua intolerância com a linguagem coloquial. Jornais e revistas, de modo geral, têm aversão às formas não-gramaticais. “A sociedade como um todo dissemina o preconceito linguístico. A mídia é só uma expressão disso. Não entendo como ela pode passar impune. Trata-se, no mínimo, de uma questão de responsabilidade”. Segundo Scherre, mais do que aceito, o preconceito linguístico é corroborado pela sociedade. “Em termos legais, as pessoas não podem ter preconceito de raça, de credo ou religião, mas o preconceito linguístico é tolerado e até tido como algo ‘natural’. A sociedade não só aceita, ela também legitima essa forma de preconceito”.

Fonte: Revista Eletrônica do IPHAN

 

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