Multilinguismo e diversidade cultural: as identidades em diálogo. Entrevista especial com Joaquim Dolz

Foto: www.euskonews.com

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Multilinguismo e diversidade cultural: as identidades em diálogo. Entrevista especial com Joaquim Dolz

“Em todas as sociedades, existe um multilinguismo endógeno apesar da recusa de certas línguas presentes”, afirma o pesquisador.

Por Leslie Chaves | Tradução Eulália Leurquin e Carla Messias

O multilinguismo sempre foi uma realidade da sociedade. Em diversas localidades do mundo as populações convivem em um mesmo espaço com diversas línguas. Mesmo havendo um idioma oficial, também compõem o atlas linguístico de um determinado local as línguas tradicionais, faladas, por exemplo, por comunidades indígenas, no caso do Brasil e de outros países que contam com esses povos na sua formação sociocultural, e as línguas estrangeiras, introduzidas nos territórios a partir das migrações. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Joaquim Dolz afirma que existe um multilinguismo característico de cada país.

Para o pesquisador, a globalização acentuou a necessidade da promoção do ensino plurilíngue. O desafio é organizar esse tipo de perspectiva de ensino e preparar os professores para lecionar de acordo com essa lógica. “A aprendizagem de uma língua estrangeira permite uma relação com uma nova cultura. Convém, então, associar o ensino da língua e da cultura”, aponta Dolz, indicando esse como um dos caminhos para a concretização desta concepção didático-pedagógica.

Ao longo da entrevista, o professor ainda ressalta que o ensino plurilíngue ou bilíngue também pode enfrentar obstáculos e resistências ligadas a fatores identitários e políticos. “Existe um diálogo fértil entre as línguas. Esse diálogo é frequentemente desigual e produz embates e mal-entendidos na comunicação. No nível econômico e acadêmico, nem todas as línguas recebem a mesma consideração”, explica. O principal problema dessas assimetrias para o ensino de idiomas é que “o estatuto e o valor social atribuídos às línguas têm um papel fundamental para que elas sejam aprendidas”, frisa.

O pesquisador também destacou o papel das Tecnologias de Comunicação e Informação – TICs no ensino de línguas. Para Dolz, as TICs podem ser instrumentos importantes para facilitar os processos de ensino-aprendizagem em sala de aula, pois propiciam novos meios de acesso aos conteúdos e diferentes formas de interação. No entanto, essas técnicas não devem ser superestimadas, pois “o aluno continua a ter necessidade do professor e das interações com os outros para aprender, com ou sem novas tecnologias”, alerta.

Joaquim Dolz é professor e pesquisador em Didática do Francês como Língua Materna da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação – FAPSE, da Universidade de Genebra – UNIGE, Suíça, e membro do Grupo Romando de Análise do Francês Ensinado – GRAFE.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A perspectiva do plurilinguismo pode ser considerada um caminho para a abordagem de discussões de ordem sociocultural no ensino de línguas?

Joaquim Dolz – A sua pergunta é complexa. Antes de falar a respeito do plurilinguismo e do seu ensino, gostaria de fazer algumas considerações sobre multilinguismo, que caracteriza nossas sociedades.

Existe um multilinguismo próprio a cada país. No Brasil, por exemplo, há uma grande diversidade de línguas ameríndias que antecedem a chegada da língua portuguesa (como a língua tupi e a guarani, presentes no Sul e no Sudeste, mas também há a língua tikuna, a tukano, a macuxi, a yanomani, a guajajara, a terena, a pankaruru, a kayapó, a kaingang, a xavante, a xerente, a nambikwara, a munduruku, a mura, a sateré-mawé, etc.).

Estima-se que, na América do Sul, sobrevivam 375 línguas ameríndias. Mas elas perdem espaço diante da língua espanhola e da língua portuguesa. Uma parte dessas línguas encontra-se em perigo de extinção por causa do domínio, desde o período colonial, da língua portuguesa, a única língua oficial do Brasil. Então, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco recomenda a proteção desse patrimônio linguístico e o ensino das línguas primeiras.

O multilinguismo no Brasil manifesta-se, igualmente, pela presença de populações migrantes europeias que mantiveram sua língua de origem. Pude perceber, em minhas viagens ao Brasil, grupos da população que mantiveram, desde o século XX, a língua alemã, italiana, espanhola ou japonesa. Além disso, a língua espanhola, a inglesa e a francesa estão também presentes por diversas razões (vizinhança, aprendizagem na escola, etc.). Em todas as sociedades, existe um multilinguismo endógeno apesar da recusa de certas línguas presentes. É o caso, nos países europeus, com as línguas ditas regionais e com as línguas da migração. Na Suíça, por exemplo, a presença da língua portuguesa dá-se pelo número importante de portugueses e brasileiros, mas ela não é ensinada na escola.

Em um mundo globalizado, o multilinguismo é um fato que ultrapassa fronteiras políticas dos países. Hoje, os cidadãos necessitam falar muitas línguas. É evidente que a língua espanhola é particularmente importante para o Brasil, por causa de sua situação geográfica, e que a língua inglesa, a francesa, a chinesa ou a alemã abrem as portas para viajar e estabelecer relações no nível internacional. O ensino plurilíngue tornou-se então uma necessidade para todos. O problema é como organizá-lo e como formar os professores. O termo plurilinguismo, como o termo bilinguismo, o reservo-o para as pessoas.

A escola merece ser um espaço aberto às diferentes línguas e culturas, avançando no ensino não apenas por razões econômicas, mas, sobretudo, para acolher a diversidade constitutiva da sociedade e para desenvolver uma abertura com o outro realmente. A aprendizagem de uma língua estrangeira permite uma relação com uma nova cultura. Convém, então, associar o ensino da língua e da cultura. Quando eu comecei a aprender a língua portuguesa, necessitei conhecer as formas de vida do Brasil e de Portugal como, por exemplo, os rituais de cortesia para estabelecer um melhor contato com as pessoas. Aprendendo a língua portuguesa, compreendi as letras das músicas de Caetano Veloso e de Amália Rodrigues, mas também aprendi o valor da música popular em cada país. Pude ler Jorge Amado e José Saramago diretamente em língua portuguesa. Da mesma forma, se você aprendesse a língua chinesa, seria conveniente fazê-lo aprendendo simultaneamente a história da China e as formas de vida desta imensa nação.

Agora eu posso retornar à sua pergunta. Eu direi que a língua e a cultura formam o espírito da pessoa e que a descentralização para a aprendizagem de uma língua e de uma nova cultura nos ajuda a melhor compreender o funcionamento da nossa língua de origem, por comparação e por contraste. Nossa própria cultura se enriquece no diálogo com o que aprendemos das outras culturas. Mas, atenção, pois tudo não é tão simples assim. O ensino bilíngue ou plurilíngue nem sempre é fácil. Ele pode nos proporcionar uma grande riqueza, mas também pode ser fonte de obstáculos e de resistências. Às vezes, no caso das populações migrantes, observamos também fenômenos particulares, resistências para aprender a língua do país de acolhida, por medo de perder ou de trair a língua de origem. Ou, pelo contrário, crianças de famílias portuguesas ou brasileiras, em Genebra, que abandonam a língua de origem ou que a escondem. O estatuto e o valor social atribuídos às línguas têm um papel fundamental para que elas sejam aprendidas.

Gostaria, igualmente, de acrescentar que o Interacionismo Sociodiscursivo considera as trocas discursivas como fundamentais no desenvolvimento da pessoa. Essas trocas não se produzem exclusivamente em uma língua natural. Existe um diálogo fértil entre as línguas. Esse diálogo é frequentemente desigual e produz embates e mal-entendidos na comunicação. No nível econômico e acadêmico, nem todas as línguas recebem a mesma consideração. O inglês, por exemplo, tem um reconhecimento que nenhuma outra língua possui. Mas isto não significa que a língua portuguesa não produz discursos científicos ou econômicos. Existe, nesses discursos, um dialogismo e uma polifonia que está além de uma única língua.

Tomemos esta entrevista como exemplo. Ela é uma forma de diálogo. Mas vocês me fazem as perguntas em língua portuguesa, eu respondo em francês e minhas colegas Eulália Leurquin e Carla Messias traduzem minhas respostas para o português. O interesse não é unicamente estudar a passagem de uma língua a outra. O interesse é também estudar como se desenvolvem as trocas em várias línguas e como nós a utilizamos para saber as informações. Sinceramente, eu penso que os interacionistas deveriam levar mais a sério esses fenômenos. A Sociodidática das línguas estuda-os, levando em consideração os fatores contextuais do uso das línguas, o estatuto e as representações sobre línguas estudadas, os contatos entre as línguas e as situações de ensino e de aprendizagem. Nós aprendemos novas línguas, considerando aquelas que conhecemos e questionando-as, tanto na dimensão interna quanto externa. O diálogo e a alternância entre línguas na aprendizagem fazem parte de um fenômeno que mereceria ser profundamente estudado pelos interacionistas.

IHU On-Line – De que formas o professor de línguas pode trabalhar a perspectiva do plurilinguismo em sala de aula?

Joaquim Dolz – Em primeiro lugar, o professor deve dispor dos conhecimentos suficientes sobre a língua ensinada. Mas, sobretudo, ele deve ser capaz de adaptar o uso da língua ao nível dos aprendizes. Em segundo lugar, o professor deve ser capaz de criar situações e projetos de comunicação motivadores e portadores para o ensino. Em terceiro lugar, os professores têm necessidade de dispor de ferramentas adequadas para este ensino. Considero muito importante a presença de corpus de textos orais e escritos adequados para este ensino e as sequências didáticas que vão além do exercício com base em atos de fala. Enfim, a aprendizagem de outras matérias não linguísticas, ensinadas em diferentes línguas, permite uma imersão na língua ensinada, que é, às vezes, ferramenta de ensino (comunicamo-nos nesta língua) e objeto de aprendizagem.

A perspectiva do plurilinguismo supõe, além disso, uma cooperação entre os professores para a coordenação entre os diferentes ensinos e as diferentes línguas ensinadas. O ensino integrado de línguas consiste em planificar juntos as diferentes línguas ensinadas. O ensino de uma matéria escolar em uma língua diferente da língua portuguesa supõe uma coordenação particular entre o professor de língua e o professor desta matéria escolar.

IHU On-Line – Que habilidades e competências profissionais são fundamentais na constituição de um professor de línguas no contexto contemporâneo, de crescentes exigências educacionais por formação docente? Como preparar os professores para enfrentar tais desafios?

Joaquim Dolz – Do meu ponto de vista, um professor de língua deve certamente dominar a língua que ele ensina. Mas, ele deve, sobretudo, ser capaz de ensiná-la. Isso supõe saber escolher e adaptar os saberes linguageiros às necessidades dos aprendizes, saber avaliar as capacidades dos alunos, saber planificar as atividades de aprendizagem, saber elaborar dispositivos e sequências de ensino, saber dialogar e regular as aprendizagens dos alunos, o que Carla Messias (2013) , em sua tese, denomina de “agir didático”. É evidente que existem outras competências transversais como saber gerir um grupo de alunos, colaborar com os outros professores, etc. No meu caso, dou uma importância maior à gestão do ato de ensinar a língua e a evolução das capacidades de compreensão e de produção oral e escrita dos aprendizes.

Para a formação, parece-me fundamental organizar uma formação em alternância com a sala de aula, com um acompanhamento realizado de maneira coordenada por professores experientes e por formadores universitários. A verdadeira profissionalização deve combinar o trabalho acadêmico com uma prática acompanhada por formadores.

IHU On-Line – Qual a importância da inclusão de questões de identidade e de contexto social do estudante no processo de ensino-aprendizagem em sala de aula?

Joaquim Dolz – A escola, como espaço de socialização, é um lugar de construção da identidade. As línguas contribuem de maneira particular para a construção de uma identidade plural. Somos, de uma maneira ou de outra, as línguas que falamos. Toda língua é uma ferramenta de pensamento que nos ajuda a tecer e a religar as diferentes facetas de nossa identidade. Ela é plural na medida em que nos permite participar de diferentes redes sociais e desenvolver interações.

O repertório linguístico em várias línguas multiplica as possibilidades de interagir eficazmente e, simbolicamente, marca as diversas identidades sociais. No meu caso, minha língua primeira ou materna é o catalão. É um signo identitário importante com tensões sociais evidentes com as outras línguas aprendidas. Eu sou autodidata em catalão, enquanto toda minha escolarização foi feita em espanhol e, mais tarde, em francês. Cada língua aprendida (espanhola, francesa, portuguesa, italiana, inglesa) me enriqueceu. Mas a relação afetiva e os usos concretos em oral e escrita são muito diferentes.

IHU On-Line – O uso dos gêneros de texto no ensino de línguas pode contribuir com esse objetivo de considerar os contextos específicos em que estão inseridos os estudantes? De que forma?

Joaquim Dolz – A abordagem por gêneros textuais parece-me muito fértil para o ensino das línguas. Numa perspectiva comunicativa, o gênero permite uma representação das convenções que regem uma família de textos para uma dada comunidade cultural. Do ponto de vista pragmático, a comunicação se realiza por gêneros textuais. As condições e a dinâmica dos atos de comunicação são orientadas por convenções sociais definidas. Enfim, numa perspectiva sociocultural, os gêneros são considerados como ferramentas semióticas, cristalizando significações associadas às práticas sociais e das quais sua apropriação permite a interiorização de experiências culturais sedimentadas historicamente. Os gêneros são, então, ferramentas semióticas que tornam possível a aprendizagem.

IHU On-Line – Como o desenvolvimento de novos dispositivos e métodos didáticos podem contribuir para a formação de um estudante plurilíngue?

Joaquim Dolz – A ferramenta sequência didática me parece ser uma contribuição importante para o ensino das línguas. Os princípios aplicam-se ao ensino da língua francesa e da portuguesa enquanto língua primeira, assim como ao ensino da língua espanhola e da inglesa como língua estrangeira. Começar por observar as capacidades iniciais dos alunos, identificar os obstáculos e trabalhar passo a passo para transformar estas capacidades. Eu penso que um bom professor não pode dispensar uma metodologia para o ensino da língua. Mas a tecnologia, por exemplo, a das sequências didáticas, é muito mais que um conjunto de técnicas. As técnicas devem se adaptar aos aprendizes. Nem tudo é técnica. E, diante do imprevisto, inventamos online procedimentos para regular as aprendizagens.

IHU On-Line – Como o senhor avalia o papel das Tecnologias de Comunicação e Informação nesse processo de construção de novas ferramentas de ensino?

Joaquim Dolz – As novas tecnologias podem facilitar o trabalho do ensino e as aprendizagens dos alunos. Nada como a constituição e a mobilização de um corpus de textos em áudio e vídeo para, mais rapidamente, conseguir obter recursos na sala de aula. As plataformas de comunicação pela internet permitem novas formas de interação a distância. As autoaprendizagens se veem também facilitadas. Hoje, é difícil ignorar estas tecnologias e as possibilidades que elas nos oferecem. Elas fornecem novas ferramentas e novas condições de trabalho. Mas o ato de ensinar não se reduz a uma tecnologia. O aluno continua a ter necessidade do professor e das interações com os outros para aprender, com ou sem novas tecnologias.

A engenharia da formação e a engenharia didática dispõem hoje de ferramentas formidáveis para a formação dos professores e para o ensino. Estamos, talvez, um pouco atrasados no uso desses suportes. Hoje, nós podemos elaborar manuais e sequências didáticas com meios que eram inimagináveis há apenas dez anos. Certamente, na sala de aula de língua, as atividades de produção oral e escrita só podem se enriquecer com o uso de quadros interativos, computadores ligados à internet, etc. A oralidade e a escrita multimodais podem facilmente ser solicitadas pelo professor. Novos gêneros orais e escritos estão implicados nessas novas tecnologias. Contudo, apesar do progresso que representam, não podemos nos enganar. As novas tecnologias são apenas caixas de ferramentas para facilitar o trabalho do professor e do aluno. Elas não podem resolver sozinhas o desafio educativo do Brasil.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos-IHU

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