Muitas línguas para um outro mundo

Nos fóruns sociais, tradutores permitem as trocas entre centenas de militantes. Entretanto, a falta de meios às vezes acaba por privilegiar certas línguas em detrimento de culturas minoritárias, suscitando incompreensões e tensões, enquanto o vocabulário altermundialista coloca problemas inesperados aos intérpretes.

Democracia participativa, gestão responsável dos recursos e dejetos, comércio sustentável, software livre… − um fórum social deve refletir em sua própria organizaçãoas mudanças que conclama com seus desejos. Ele deve em particular garantir o direito dos participantes de se comunicar na língua de sua escolha, pois, nessa área, não escapamos aos mecanismos de dominação. Depois do recurso a um serviço convencional de tradução simultânea em espanhol, português, francês e inglês para as sessões plenárias das duas primeiras edições do Fórum Social Mundial (FSM) de Porto Alegre, em 2001 e 2002, centenas de militantes se mobilizaram pela diversidade linguística e para garantir a tradução durante o primeiro Fórum Social Europeu (FSE) de Florença. Assim nasceu a rede internacional Babels, presente durante a maior parte dos fóruns organizados nos dez últimos anos.

Além das incontornáveis línguas veiculares, a Babels propõe aquelas do local onde acontece o Fórum: o hindi e o marata no FSM de Bombaim em 2004, o quéchua no Fórum Social das Américas de Quito em 2004, o catalão no Fórum Social Mediterrâneo de Barcelona em 2005, o grego no FSE de Atenas em 2006, o sueco no FSE de Malmö em 2008, a língua dos sinais britânica (BSL) no FSE de Londres em 2004 e a brasileira (Libras) no FSM de Porto Alegre em 2005, e o árabe no FSM de Túnis em 2013. Acrescentam-se a isso os idiomas estratégicos para a extensão dos fóruns nas regiões sub-representadas: línguas indianas (telugu, bengali, malaiala) e asiáticas (coreano, indonésio, japonês e tailandês) em Bombaim, línguas mediterrâneas e da Europa Central e do Leste em Londres, Barcelona e Atenas.

Para além da diversidade linguística, os discursos, as palavras e os conceitos trocados durante essas manifestações apresentam dificuldades para os tradutores-intérpretes profissionais. Para preparar o terreno, os voluntários da associação Ecos, estabelecida na Faculdade de Tradução e Interpretação da Universidade de Granada, inventaram a preparação situacional (sit-prep). Essa formação, organizada segundo as línguas e os níveis de dificuldade, permite aos novatos treinar a interpretação simultânea com vídeos gravados durante os fóruns precedentes.

Os problemas de tradução se tornam fonte de riqueza cultural graças ao projeto Lexicons, que consiste em elaborar glossários plurilinguísticos de palavras-chave ligadas às grandes temáticas debatidas. “Os intérpretes voluntários são os filtros sobre os quais tropeçam todos os problemas de comunicação do movimento altermundialista”,1 explica Stéphanie Marseille, educadora de Lexicons, uma vez que as noções de “mercantilização” ou de “altermundialismo”, cuja tradução em diversas línguas é agora plenamente assumida, levantavam problemas quando começaram a ser utilizadas.

Organizações e militantes deveriam estar em pé de igualdade quanto ao direito à comunicação, quaisquer que fossem seus modos de funcionamento, suas posições ideológicas e seus recursos financeiros. Atingir esse objetivo requer uma partilha dos recursos, o que pode ter diversas formas. Idealmente, os custos (material para as cabines de tradução simultânea, passagens dos intérpretes voluntários, impressão do programa etc.) são cobertos por um fundo de solidariedade constituído pelas organizações participantes segundo suas capacidades. Acrescentam-se a isso os financiamentos públicos e privados.

Batalha pela diversidade linguística

A fim de diminuir o peso da interpretação no orçamento, a Babels decide às vezes cobrir as necessidades de algumas associações que organizam eventos anteriores e paralelos ao fórum, em troca das passagens ou até do alojamento dos voluntários. Essa estratégia não é completamente sem risco de concorrência desleal perante os intérpretes profissionais locais. Estes últimos, membros ou não da rede, não veem com bons olhos uma prestação voluntária proposta para as organizações que possuem, muitas vezes, milhões de euros de orçamento anual.

Outro método colocado em ação como paliativo para as insuficiências da captação de fundos consiste em instaurar taxas de inscrição para as organizações participantes, com um valor a mais em função do número de línguas de interpretação solicitadas. Mas isso desestimula o princípio de participação igualitária sobre o qual se funda o voluntariado.

Para que a diversidade linguística não seja apenas uma fachada e implique uma real democratização, é de responsabilidade dos fóruns também mobilizar, de assembleia em assembleia preparatória, as comunidades linguísticas e culturais visadas. A multiplicação dos fóruns e sua complexidade logística, por sua vez, conduzem a um esgotamento, e as línguas dominantes mantêm um peso preponderante no programa.

A batalha pela diversidade linguística se confronta às vezes com a falta de apoio dos próprios organizadores, que nem sempre se dão conta da importância da questão. Membro da rede encarregada de mobilizar voluntários nas línguas da Europa Central e do Leste no FSE de Atenas, Barbora Molnarova conta que, para a organização da assembleia preparatória de Praga, em 2005, os organizadores tchecos optaram por francês, inglês e russo – que eles consideravam “o esperanto da Europa do Leste”2 – em vez do grego e do tcheco.

As diferenças entre o planejamento e as necessidades realmente observadas podem incitar as organizações a empregar intérpretes remunerados – o que cria tensões com os voluntários – ou a modificar o planejamento linguístico das salas na última hora. Assim, em Atenas, tradutores de línguas minoritárias reclamaram por terem sido postos para fora de suas cabines para dar lugar a intérpretes de línguas julgadas mais “úteis” pelos organizadores. No programa do FSM de Túnis, neste ano, figuravam apenas as línguas veiculares (árabe, francês, espanhol e inglês), sinal de falta de apoio às línguas minoritárias como o tamazight (berbere). Assim, uma brecha parece se abrir entre os princípios políticos e as práticas logísticas. Intérpretes e outros agentes voluntários do multilinguismo têm um papel essencial a cumprir para fechá-la.

 Julie Boéri

é membro da rede Babels e professora-pesquisadora em Comunicação da Universidade Pompeu Fabra, Barcelona.

Fonte : Le Monde Diplomatique Brasil

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