Moradores tentam resgatar dialetos ‘esquecidos’ no sul do país
Moradores tentam resgatar dialetos ‘esquecidos’ no sul do país
Felipe Bächtold
Em uma pequena cidade do Rio Grande do Sul, funcionários da prefeitura são orientados a falar “sorasco” em vez de “churrasco” e “sinele” no lugar de “chinelo”.
Por enquanto, isso ocorre uma vez ao ano: na semana em que se comemora a emancipação da cidade de 16 mil habitantes. Por enquanto.
Ameaçado de extinção, o talian, uma espécie de variação do italiano, só agora começa a ter gramática, dicionário e aulas. E a cidade de Serafina Corrêa, na serra gaúcha, virou um bastião na luta para preservar esse idioma.
Mas não é a única. Outras comunidades pelo Sul do país também se mobilizam para manter vivos dialetos europeus hoje quase restritos a regiões rurais e a idosos.
Em Serafina Corrêa, o talian virou por lei idioma “cooficial” e é incentivado das mais diferentes maneiras. Programas de rádio, uma revista e atividades culturais no idioma tentam manter vivo o interesse da população pelo dialeto, que foi trazido por imigrantes há mais de um século e se modificou devido à influência do português.
Em breve, a prefeitura irá oferecer aulas do idioma nas escolas municipais.
Os adultos que hoje moram na parte central da cidade pouco usam o dialeto. E o antigo costume de transmitir o conhecimento do idioma de geração a geração foi se perdendo nas últimas décadas.
“Eu sei falar tudo e a minha filha me cobra porque não ensinei. Hoje não tenho mais com quem falar [o talian]”, diz Fátima Tecchio, 49.
Em novembro, após receber da cidade um inventário, o Ministério da Cultura reconheceu o talian como Referência Cultural Brasileira, o que deu fôlego a entusiastas.
Um deles é a servidora Solange Soccol, 59, que criou cartilhas sobre o idioma. “Sem a língua, não temos a nossa identidade, nossa tradição”, afirma.
Obstáculos
O trabalho de resgate do idioma enfrenta dificuldades como a falta de um modo padronizado de escrever. Como outras línguas de colonos, o talian é ágrafo, ou seja, se desenvolveu sem escrita.
Outro obstáculo é um trauma coletivo da época da Segunda Guerra Mundial (1939-45), quando o governo de Getúlio Vargas proibiu idiomas estrangeiros em território brasileiro. Moradores idosos relatam que a perseguição bloqueou o uso no dia a dia e desestimulou o ensino.
“Quem falava em dialeto na escola ganhava castigo”, diz Rosalina Vitalli, 77.
Ela vive em um distrito a 20 km do centro da cidade, onde o talian ainda é o idioma mais falado. Nesse último reduto do idioma, o português é chamado de “brasileiro”.
Para a moradora Cássia Gollo, 24, os mais jovens têm mais vergonha de se expressar na língua dos avós. “Parece que têm um pouco de receio [de falar], que querem ser como os das cidades.”
Apesar de Serafina Corrêa ser uma capital informal do talian, cidades de todo o Sul já receberam encontros anuais, promovidos por descendentes de italianos, para divulgar a língua.
A professora de ciências sociais Maria Catarina Zanini, da Universidade Federal de Santa Maria (RS), afirma que o talian surgiu no Brasil para facilitar a comunicação entre grupos vindos da Itália.
“Quando saíram de lá, os imigrantes não se entendiam: uns falavam o dialeto vêneto, outros o cremonese. Então, criaram uma língua.”
‘Sapato de Pau’
Desde 2010, um inventário produzido pelo governo federal busca catalogar os idiomas falados pelo país. Estima-se que existam mais de 250, a maioria indígenas.
A 100 km de Serafina Corrêa, na cidade de Westfália, o esforço é pela preservação de uma variação do alemão chamada de plattdeutsch.
O dialeto tem o apelido de “sapato de pau” devido aos tamancos que os imigrantes alemães usavam na época da colonização. Voluntários promovem programas de rádio e oficinas para o ensino da língua, que também não tem padronização escrita.
O município de Santa Maria do Herval (a 73 km de Porto Alegre) desde 2011 oferece nas escolas aulas de hunsrik, uma língua próxima do alemão falada por descendentes em vários Estados do país.
Hoje, 14 turmas até a 5ª série aprendem o dialeto. “Isso aumentou a autoestima da comunidade e a integração entre gerações. Se a língua não for mantida nas famílias, vai desaparecer”, diz a professora Solange Johann, que coordena o projeto.
“Eu falo a língua que amo, banhada de tempo, trabalho e honra. A língua que os avós, hoje guardiães do céu, trouxeram como semente de vida. E foi um grande sacrifício manter por mais de cem anos. Mas aqui me dizem que ninguém entende, que estou arranhando os muros e que devo mudar a pronúncia. Que [se diz] ‘eu me chamo’ e não ‘ni me ciamo’ porque minha língua não existe. Mas eu devo, por acaso, sacrificar a minha língua para um deus sem piedade? Esses conselhos nem são esperança e são vazios de dignidade.”
Fonte: Folha de S.Paulo