Mitos ideológicos da língua portuguesa
1. “Saudade” só existe em português
Por Luiz Costa Pereira Junior
A palavra “saudade” não é particularidade da língua portuguesa. Porque derivada do latim, existe em outras línguas românicas. O espanhol tem soledad. O catalão soledat. O sentido, no entanto, não é o do português, está mais próximo da “nostalgia de casa”, a vontade de voltar ao lar.
A originalidade portuguesa foi a ampliação do termo a situações que não a solidão sentida pela falta do lar: saudade é a dor de uma ausência que temos prazer em sentir. Mesmo no campo semântico, no entanto, há correspondente, no romeno, mas em outra palavra: dor (diz-se “durere”).
É um sentimento que existe em árabe, na expressão alistiyáqu ”ilal watani. O árabe pode, até, ter colaborado para a forma e o sentido do nosso “saudade”, tanto quanto o latim.
2. A língua portuguesa está em decadência
A ideia de que todo idioma empobrece e degenera com o tempo ganhou apelo no século 19, quando cientistas passaram a crer que línguas antigas estavam num estágio avançado de desenvolvimento se comparadas às modernas. O estudo da estrutura das línguas mostrou que tal ideia não tem fundamento. A mudança linguística não representa degeneração ou melhoria, mas um processo pelo qual as línguas passam de um estado de organização a outro. Altera-se o modo como o sistema se configura, mas a organização não deixa de existir. As línguas não decaem nem progridem. Mudam.
3. O português é difícil
Por John Robert Schmitz
Nenhum idioma é complicado para o falante nativo. A “dificuldade” depende de muitas variáveis.
Primeiro, podemos dizer que uma língua é mais fácil a um dado falante se o idioma a ser aprendido é mais próximo linguisticamente de seu idioma nativo. Os holandeses entendem e chegam a falar alemão e inglês devido à semelhança.
Outro fator na “dificuldade” de um idioma é o sistema ortográfico. O russo é baseado no alfabeto cirílico, por sua vez baseado no grego, o que dificulta sua leitura. O polonês é mais “fácil” porque tem um alfabeto latino com algumas modificações, o que permite a decifração. O basco, o húngaro e o finlandês são todos difíceis devido à complexidade gramatical deles. Mas há línguas indígenas (brasileiras) e africanas muito complexas, com sutilezas e riqueza de expressão. Não há línguas “primitivas”.
A ideia de que o português é um dos idiomas mais difíceis não passa de mito. Tudo depende de contexto e interlocutor. Difícil para quem, cara-pálida?
4. A língua reflete o mundo como ele é
Perdeu-se no tempo, lembra o filósofo norte-americano Richard Rorty (1931-2007), o momento em que os primeiros hominídeos notaram que, ao grunhir um ruído x numa ocasião, levariam uma surra se, em seguida, não grunhissem um indispensável som y. Gostamos de pensar que substituímos esse mecanismo acidental pela visão de um sistema de descrição lógico e imemorial, a fazer as correspondências com o mundo e o eu. A gramática, sem deixar de ser estrutura interna à mente e capacidade inata, deve sua consolidação mais ao método dos hominídeos do que a ideais sistêmicos. As mudanças derivam de contínuos processos de inferências, não tanto da necessidade de maior adequação ao não linguístico (o mundo, o eu) ou de derivas sempre previsíveis. Quem sabe intuamos a língua menos como correspondência (ao mundo, ao eu) do que um “caminho” (ao outro), que precisa ser constantemente corrigido, para incorporar novas pistas (comunicativas) dos interlocutores. A comunicação fluirá sempre que coincidirmos nossos palpites sobre o que os outros farão (seus ruídos a nossos estímulos, o que farão em seguida a uma manifestação verbal nossa) às nossas expectativas sobre o que diremos. (L.C.P.J.)
5. O Brasil tem uma só língua
Fora as línguas de fronteira, as quilombolas e as variantes de estrangeiras como o alemão e o italiano, o Brasil tem a o menos 180 línguas indígenas, entre 225 etnias. Pouco, em relação ao passado. Estima-se que, em 1500, falavam-se 1.078 línguas no país. Boa parte dos idiomas sobreviventes está ameaçada – mais da metade (110) é falada por menos de 500 pessoas.
6. O português tem uma incrível unidade no Brasil
Unidade linguística é mito, embora tendamos a ver a língua (e cada variedade dela – as de prestígio e as estigmatizadas) como um todo homogêneo. Fazer isso depende de admitir, de saída, a estabilidade e a coesão dos grupos que as adotam. Mas nunca há comunidade homogênea. O mito é de natureza autoritária: supõe que vivemos numa sociedade uniforme, dotada de poucos grupos étnicos, sem desequilíbrios hierárquicos e regionais de relevo, sem confrontos ou afetos. Mas a interação brasileira se realiza antes sob a sombra nem sempre perceptível das relações de hierarquia e da desigualdade social. Sendo híbridos, somos um país mestiço de relações sociais desiguais e um histórico de violência contra povos nativos e africanos.
7. Há línguas perfeitas
Por Sírio Possenti
Um grande mito em relação às línguas é que, em algum momento, teria havido línguas perfeitas. Sua tradução quase diária é que teria havido, para cada língua, uma época em que ela foi melhor, em que se falava mais corretamente. A forma mais comum deste mito (ou mentira), no dia a dia, é a tese da decadência da língua (das línguas). Os que defendem esta tese não sabem (ou fingem não saber) que ela é brandida desde sempre. Uma versão é o mito de Babel, mas a tese foi repetida em Roma, Alexandria, na França, Inglaterra, é repetida nos EUA e, claro, no Brasil. Curiosamente, em cada época essa tese é defendida na língua da época…
Sírio Possenti é professor titular do departamento de linguística da Unicamp e autor de Humor, Língua e Discurso (Contexto)
8. O padrão gramatical é universal
A maioria dos tratados de gramática surgiu por uma necessidade de padronização da linguagem. Com as variadas regiões geográficas e os seus sotaques, seria complicado para as pessoas, por exemplo, escreverem do jeito que cada um realmente fala. A gramática padroniza a língua para que (ao menos) por meio da escrita possamos nos entender. O problema é que as pessoas ainda consideram a gramática dos tratados normativos como a única forma de linguagem em qualquer situação de comunicação em que se insiram. Mas cada ocasião e ambiente exige um registro gramatical.
9. O português europeu é o mais correto
Mito de origem colonialista. Torna fato que o português no Brasil é corrompido, e a variedade original – portanto, de referência – é a de Portugal. Como constata Marcos Bagno em Preconceito Linguístico (Parábola, 1999: 23-28), há diferenças de uso de país a país – e diferença não é deficiência ou inferioridade. O efeito prático dessa ideia é fazer o brasileiro sentir-se em dívida ou desvantagem para com a tradição gramatical.
10. Pessoas cultas usam a norma culta
Por Ataliba T. de Castilho
Qualquer manifestação linguística vem marcada pelo fenômeno da variação. Curiosamente, persiste entre nós a ideia de que a variedade padrão, a norma culta, escapa a essa heterogeneidade. Não é o que as pesquisas têm demonstrado. Desde os anos 1970, maiormente depois de 1978, os pesquisadores do Projeto de Estudo da Norma Urbana Linguística Culta passaram a constatar que a norma do português brasileiro é heterogênea. Depois disso, o Projeto de Gramática do Português Culto Falado no Brasil procedeu a uma descrição minuciosa da norma, com base nos materiais levantados pelo projeto anterior, identificando diferenças por toda parte. Elas não impedem a intercompreensão, mas existem.
Impossível resumir aqui a enorme bibliografia gerada pelos dois projetos. Mesmo assim, peço a atenção do leitor para o que Dinah Callou, João Antônio de Moraes e Yonne Leite descobriram, no capítulo intitulado “Mapeamento dos processos”, publicado em Maria Bernadete M. Abaurre (Org.) A Construção Fonológica da Palavra (Contexto, 2013), que é o volume VII da série Gramática do Português Culto Falado no Brasil. Eles observaram seis processos: palatalização do /s/ em final de sílaba (meninos ou meninosh?), fricativização e posteriorização do /r/ antes e depois de vogal (comer ou comeR?), palatalização do /t/ e do /d/ diante de /i/ (dia ou djia?), vocalização do /l/ em final de sílaba (anil ou aniu?), nasalação da vogal pretônica antes de consoante nasal (bànana, ou bãnana?), elevação da vogal média pretônica [e] à [i] e [o] à [u] (pequeno ou piqueno? moleque ou muleque?).
Ataliba T. de Castilho é professor da USP
11. Há línguas melhores que outras
Cada situação de comunicação exige a sua variedade do idioma. Apesar disso, há a crença de que há variedades melhores que outras. A razão para que certas variantes de uma língua tenham mais prestígio é social, não tem relação com motivações linguísticas. Os grupos com maior domínio social impõem os seus valores e a sua forma de falar, defendendo que esta é a mais correta.
12. Só há uma gramática no Brasil
Para a maioria, só há uma gramática usada no Brasil. A língua se resume à gramática tradicional, de caráter normativo, que estabelece a forma como se deve falar ou escrever. Mas há mais de uma gramática circulante nas bocas e páginas brasileiras. Não só divergências entre gramáticos sobre os casos que analisam, as doutrinas que adotam. Mas de gramáticas concorrentes para os mesmos casos (a concordância, por exemplo, com o núcleo do sujeito em “a maioria das pessoas é”, com o termo mais próximo em “a maioria das pessoas são”, com interferência semântica, em que coletivos e nomes em plural levam a concordância ao plural, em “a maioria são”). Mesmo o que se considera desvio da gramática padrão pode obedecer a uma gramática própria.
13. Os escritores são a referência da gramática
A chamada norma padrão é um ideal de língua que se baseia em boa parte no registro de grandes escritores do passado. Mas são os escritores que mais rompem com os padrões de um idioma. Quando tomados como exemplos do português padrão, comete-se uma injustiça com eles, e instaura-se um comando de autoridade precário.
14. Língua de sinais é um tipo de mímica
Muitos pensam que línguas de sinais são como mímica, isto é, gestos que imitam propriedades dos objetos a que fazem referência. Mas não basta imitar o movimento, a forma ou outra propriedade de algo. Para serem eficazes, os sinais têm de ser compartilhados e estruturados numa sintaxe comum.
15. A gramática normativa é retrógrada
Por Evanildo Bechara
É importante levar em conta o fato de ter a gramática normativa um objeto bem definido (a língua exemplar, que é uma variedade “ideal” construída pela tradição culta da comunidade), e por isso mesmo não espelha todas as possibilidades vigentes e correntes do idioma, nas suas variedades regionais, sociais e estilísticas.
Aliás, todo estudo sério tem de delimitar seu corpus de aplicação. Daí cometer-se uma injustiça com a gramática normativa quando ela é chamada retrógrada por não agasalhar certos fatos que ocorrem, por exemplo, na variedade popular, ou na familiar ou na regional.
Temos ouvido e lido críticas à gramática normativa por não aceitar começar frases com pronome átono adverbial, ou aconselhar que se evitem construções como “implicar em crise” (em vez de “implicar crise”, sem a preposição “em”), “aluga-se apartamentos (por “alugam-se apartamentos”), “deu dez horas” (por “deram dez horas”), “hoje é sete de dezembro” (por “hoje são sete de dezembro”), “fazem dez meses” (por “faz dez meses”), “isto é para mim fazer” (em vez de “é para eu fazer”) e tantos outros fatos de regência, de concordância e de colocação que correm tranquilos e normais nas variedades informais da língua, mas que não conseguiram ainda penetrar vitoriosos na língua exemplar, nos momentos em que o texto – especialmente o escrito – exige, pela tradição sociocultural, essa variedade exemplar.
Evanildo Bechara é gramático, imortal da ABL e autor de A moderna gramática portuguesa (Editora Lucerna)
Fonte: Revista língua portuguesa |
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