Livro em tupi moderno busca fortalecer o idioma na Amazônia
Alunos da USP traduziram histórias de diversas culturas para a língua indígena hoje falada na Amazônia.
Desde 2010, o professor Eduardo de Almeida Navarro, que há 24 anos leciona tupi na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, dá aos seus alunos a tarefa de traduzir um conto para o idioma nheengatu, o tupi moderno. Dessa produção, cerca de 35 histórias foram escolhidas para integrar o livro Histórias em Língua Geral da Amazônia, organizado pelo professor e por seu doutorando Marcel Twardowsky Ávila e publicado pelo Centro Ángel Rama de Estudos Latino-Americanos da USP.
No início de 2018, os 2 mil exemplares impressos do livro serão levados à diocese de São Gabriel da Cachoeira, no Vale do Rio Negro, Amazonas, onde será feita a distribuição gratuita da obra para os falantes do nheengatu da região. “O bispo dom Edson Damian tem acesso aos mais distantes lugares no Rio Negro, locais que se leva cinco dias de barco para alcançar. A diocese é maior que o Estado de São Paulo. Só poderíamos conseguir fazer com que o livro chegasse aos moradores das localidades mais distantes com ajuda da Igreja ou do Exército”, afirma Navarro.
A região do Rio Negro é um dos poucos lugares onde ainda se fala o nheengatu no Brasil, mas, de acordo com o professor, até o período conhecido como ciclo da borracha (de 1879 a 1912) a língua era falada em quase toda a região amazônica, chegando até Belém (PA). “Nheengatu quer dizer ‘língua boa’, isto é, uma língua que todos naquela região do Brasil entendiam e falavam, indígenas de várias etnias, negros, brancos. É uma língua supraétnica, muito mais fácil de se falar do que o tupi antigo, por isso a chamamos de língua geral da amazônia”, explica o professor.
Quando os portugueses chegaram ao Brasil, o tupi antigo era falado em toda a costa do País, motivo pelo qual foi inicialmente batizado de língua brasílica, e, durante o primeiro século do período colonial, era mais usado que o português. Com o tempo e as incursões para o interior, o idioma começou a mudar, incorporando palavras e estruturas da língua portuguesa, e a partir do século 19 passou a ser chamado de nheengatu. Segundo Navarro, além de verbos e outros verbetes, o tupi moderno incorporou a estrutura sintática do português, o que lhe rendeu a alcunha de “língua boa”.
Apesar dessa facilidade, o doutorando e organizador do livro Histórias em Língua Geral da AmazôniaMarcel Ávila se diz preocupado com o futuro do idioma na Amazônia. Em 2011, o professor Navarro começou a viajar com seus alunos para a região do Rio Negro e, desde então, Ávila volta todos os anos para estadias que em geral duram um mês, mas já chegaram a sete meses. “Lá pude observar que todos acima de 50 anos falam o nheengatu, assim como a maioria das pessoas entre 40 e 30 anos de idade, mas com as crianças isso já começa a se perder. Muitas delas entendem perfeitamente o idioma, mas não sabem falar”, relata o pesquisador.
Ávila atribui esse enfraquecimento do nheengatu, entre outros fatores, ao fato de se tratar de um idioma ágrafo, isto é, que não é tradicionalmente manifestado pela escrita. “O português acaba se impondo por essa questão, e o nheengatu perde importância e prestígio. Embora São Gabriel da Cachoeira seja talvez o primeiro município do Brasil a ter línguas indígenas declaradas co-oficiais, o que com o tempo deve levar a uma presença maior do tupi moderno na forma escrita no dia a dia da população, isso ainda não é muito frequente. Por isso, projetos como o livro Histórias em Língua Geral da Amazônia são importantes.”
Nas universidades brasileiras, o idioma tupi também já teve maior presença. Conforme conta o professor, o primeiro curso sobre a língua foi o da USP, em 1935, numa resposta carregada de orgulho regional e afirmação política à derrota paulista na Revolução de 1932. Posteriormente, em 1954, foi promulgada uma lei que obrigava o ensino da língua em todas as faculdades de Letras do País. Porém, nos anos 70, com o surgimento dos primeiros cursos de linguística, preocupados em estudar o fenômeno da linguagem de maneira mais abrangente, o idioma perdeu seu status. Com isso, somente na USP se manteve o estudo do tupi antigo, além de ser aqui a única universidade do Brasil onde o tupi moderno é ensinado, desde 2008, de maneira sistemática.
“Outras faculdades de Letras ainda estudam estruturas de línguas indígenas, mas aqui nós ensinamos a gramática, os alunos têm a chance de ler textos de pessoas como o padre José de Anchieta e mesmo de índios escritos em tupi”, afirma o professor. Esse trabalho já rendeu a produção de uma Gramática do Tupi Moderno, cujos 4 mil volumes impressos foram distribuídos na diocese de São Gabriel da Cachoeira, além de ter o projeto em desenvolvimento de um dicionário do idioma, coordenado por Marcel Ávila, e esta primeira abordagem literária com as Histórias em Língua Geral da Amazônia.
O livro traz histórias curtas, traduzidas para o nheengatu em sua maioria diretamente do idioma original. Entre elas estão desde fábulas como Chapeuzinho Vermelho até contos japoneses e árabes, traduzidos pelos alunos de Navarro de diferentes turmas desde 2010, de acordo com a língua que estudavam. Marcel Ávila, por exemplo, conta que traduziu duas histórias do folclore angolano, cultura com a qual entrou em contato durante um curso quando estava na graduação. “Achei que seria interessante, pois são duas culturas muito diferentes mas com uma história oral muito rica, então quis fazer uma ponte entre elas, traduzindo as histórias do quimbundo para o nheengatu.”
A experiência de Ávila e de outros alunos do professor na Amazônia permitiu, segundo ele, que captassem nuances do idioma que não se poderia perceber apenas com os estudos na Universidade. “Tem palavras do nheengatu que estão começando a ser substituídas por variações do português, por exemplo. Nas minhas traduções, busquei resgatar os termos do tupi moderno, tê-los como prioridade, mas graças à vivência entre os indígenas pude ter uma noção melhor de em que situação seria necessária uma nota de rodapé, por exemplo, explicando uma palavra que hoje é menos usada pelos falantes mais jovens da língua.”
Esse trabalho é chamado pelo professor Navarro de um esforço de “purificação da língua”. “Essa influência do português é um dos sinais de que o idioma corre risco de desaparecer, por isso buscamos no vocabulário do tupi palavras que possam designar objetos modernos, como uma geladeira, por exemplo, em vez de usar uma variação portuguesa”, explica.
Ávila relata também que, por serem povos de tradição oral, a leitura não é costume entre os falantes do nheengatu. “Hoje, a televisão também está tomando esse papel da tradição oral. A escrita em tupi moderno é muito vinculada à Igreja ou às escolas, por isso tivemos essa preocupação de produzir um livro que tenha apelo também entre as crianças. Estamos começando a construir uma literatura em tupi, e ainda teremos que esperar uns anos para ver os resultados desse trabalho. Mas esperamos que essas histórias que traduzimos e o hábito de ler sejam transmitidos a elas através da educação”, diz o pesquisador.
O professor Navarro, que conta ter se interessado pelo tupi quando estudava Geografia, em virtude da presença de palavras do idioma nos nomes de várias localidades do País, reforça a importância da preservação da língua. “O tupi tem um valor histórico e cultural imenso. É a língua clássica do Brasil, foi referência para a identidade brasileira depois da Independência, grandes escritores brasileiros produziram textos a partir dela, os artistas do nosso Modernismo o tiveram como base. Por isso nosso objetivo é fazer com que nossa produção seja acessível aos falantes do nheengatu, e pretendemos produzir outras obras de literatura a partir das traduções que forem feitas na USP nos próximos anos. É um papel muito importante que a Universidade assume, um investimento na preservação da cultura nacional.”
Fonte: Jornal da USP
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