Falar português, comer frango e jogar à bola. A nova vida das crianças indígenas venezuelanas

O Brasil recebeu quase 170 mil venezuelanos desde o início da crise, incluindo indígenas da etnia Warao. Vêm do norte da Venezuela, vivem junto ao rio Orinoco, são pescadores e têm uma língua própria. Muitos não falam espanhol, o que torna a integração ainda mais difícil. Para contornar o problema, há várias escolas em Manaus a acompanharem crianças refugiadas.

Nesta escola de Manaus as aulas começaram ainda há pouco. As portas das salas de aula já estão fechadas mas pode ouvir-se a voz de Adênis Gama, professora do terceiro ano da primária.

Tem 33 alunos. Oito deles chegaram da Venezuela nos últimos meses. São indígenas da etnia Warao. “No primeiro momento eu não conseguia me contactar com eles.”

Os Warao que vão chegando ao Brasil não falam português e muitos deles também não falam espanhol. Têm uma língua própria.

Nos últimos meses, a professora da Escola Municipal Desembargador Felismino Francisco Soares tem-se dedicado à integração dos indígenas venezuelanos. “Nós trabalhamos com os nossos alunos o respeito e o acolhimento. Nunca, jamais, deixá-los de lado. Para os venezuelanos Warao, é muito importante essa dedicação da escola para com eles”, explica Adênis Gama.

Para Asteria, 13 anos, chegar ao Brasil foi sinónimo de voltar a comer o prato preferido: frango. A falta de comida foi a principal razão para Astéria e a família saírem da Venezuela. “Na Venezuela não tem comida. Não tem roupa. Acabou tudo.”

Casa Tarumã

Hoje mora com a família num abrigo em Manaus, onde só vivem pessoas da etnia Warao. Na casa Tarumã vivem 130 pessoas, quase metade são crianças.

Orlando Martinez é o cacique, ou seja, a pessoa responsável pela comunidade que vive neste abrigo. “Antes de chegarmos cá, vivíamos na rua. Depois, falamos com o padre. O padre falou com a prefeitura para conseguirmos este abrigo.”

A casa é grande. Há salas e quartos no andar de baixo. Em cima, a cozinha. Nos quartos há redes e colchões. Orlando é dos poucos que fala espanhol. Decidiram seguir para o Brasil, devido às dificuldades na Venezuela. “Quando acabou tudo, quando acabou a comida, quando acabou o trabalho, decidimos vir para cá. Para sobrevivermos.”, explica Orlando, garantindo que na Venezuela tinham uma vida normal.

Orlando garante que foram bem recebidos em Manaus e o mais importante é encontrar trabalho e comida. O grupo começa também a enviar as crianças para a escola.

“Todas as crianças sabem escrever o nome. Acho que há muitas crianças na rua, a pedir dinheiro mas isso não quero. Quero falar com todos para que matriculem as suas crianças na escola”, explica o cacique.

O abrigo é gerido pela prefeitura de Manaus e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).

Juliana Serra, assistente de proteção do ACNUR, explica que a casa funciona através de um sistema de auto-gestão. “Temos um ‘aidamo’ que é o líder que coordena a casa. São divididos por famílias. São grandes núcleos familiares e diversas atividades de geração de renda são desenvolvidas. Já tivemos algumas iniciativas envolvendo artesanato. Alguns deles também são autónomos e buscam formas de trabalho diário.”

Os indígenas Warao chegam ao Brasil com grandes dificuldades e, entre os refugiados venezuelanos, são quem mais sofre para começar uma vida nova devido à barreira da língua.

“É uma etnia que vem de uma região do delta do Orinoco, do delta do Amacuro. Alguns vêm da região de fronteira com Trindade e Tobago e é uma etnia que está muito ligada à pesca”, explica Juliana Serra .

O ACNUR tem recebido centenas de refugiados Warao com perfis diferentes, criando “um desafio mas algo muito interessante”.

A assistente de proteção do ACNUR explica que “muitos deles gostariam de voltar ao maior convívio com a natureza, para voltar à pesca, voltar aos seus meios de subsistência”.

Na escola, a professora Adênis Gama confirma que é sobre a natureza que os alunos Warao mais gostam de falar. “Quando eu começo a falar sobre ciência, sobre meio ambiente, eles se envolvem, eles gostam. A gente percebe no olhar a facilidade que eles têm de falar sobre a nossa horta. Foi lindo. Eles começaram a falar a respeito de como se planta, como se colhe.”

Além do meio ambiente, os alunos recebem aulas de língua portuguesa, matemática e recebem informação sobre “a importância de estar aqui connosco. Apesar de toda a dificuldade que eles sofreram na Venezuela, eles estão felizes aqui connosco”.

Do Haiti à Venezuela

A Escola Municipal Professor Waldir Garcia em Manaus também está já habituada a alunos de diferentes nacionalidades. “A gente acha mais engraçado quando chegam os próprios brasileiros porque nós temos muitos alunos haitianos e venezuelanos”, explica a professora Ana Cássia Rosas.

A diretora da escola, Lúcia Santos, garante que fazem o possível para integrar quem chega de fora. “No começo foi difícil porque vinha o preconceito. Os primeiros a chegar foram os haitianos e eles chamavam as crianças de haitiano. E ser chamado de haitiano e não pelo nome era uma ofensa. A gente foi começando a trabalhar esse respeito com o outro, essa acolhida e hoje não acontece mais.”

Nifradson, oito anos, nasceu na Venezuela e está satisfeito por viver no Brasil. “Muito feliz de chegar nessa escola porque já fiz amigos, jogo futebol. Eu gosto muito do Brasil.”

Gosta do Brasil, da escola e do amigo Rosini, que nasceu no Haiti. “Ele chegou primeiro do que eu. E quando eu cheguei na escola a gente era do primeiro ano B. A gente jogava futebol junto, fazia um montão de coisas junto”, conta o haitiano.

Os dois conversam e explicam porque tiveram de viajar até ao Brasil. “Lá no Haiti tem muitas pessoas que já morreram”, atira Rosini. Nifradson complementa: “Lá existe um monte de pessoas que já morreram porque o presidente do Haiti nunca traz comida. Todo o mundo morre. Lá no Haiti tem bandido, existe muitas coisas que ninguém gosta lá”.

No Brasil, garantem os dois amigos, há muitas coisas de que gostam: “Jogar futebol e assistir televisão e brincar”.

Fonte: TSF Rádio Notícias

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