Coumboscuro: a aldeia italiana que não fala italiano
Com a alcunha de “Pequena Provença” italiana, Sancto Lucio de Coumboscuro é uma aldeia isolada em quase todos os sentidos.
Situada perto da fronteira da região de Piemonte em Itália e França, os visitantes têm de voar até Turim e apanhar um comboio e um autocarro, ou conduzir para sul de Provença para chegarem até lá.
Aqueles que fizerem a viagem até aqui estão perdoados por se questionarem se estão no país certo, sobretudo quando os habitantes lhes disserem adeus com o insólito “arveire” em vez de “arrivederci”.
A língua oficial de Coumboscuro é o provençal, o antigo dialeto neolatino medieval de occitana, a língua falada na região da Occitânia em França.
Apenas umas 30 pessoas vivem na aldeia e a vida não tem nada de fácil para os habitantes. Coumboscuro é composta em grande parte por famílias de pastores que muitas vezes veem os seus rebanhos serem atacados pelos lobos que deambulam por aqui.
No inverno, é comum faltar a eletricidade durante semanas, e a ligação à internet é mínima.
Na aldeia, os tranquilos prados montanhosos e campos reluzentes de lavanda são ideais para os visitantes que procuram um retiro remoto, tal como as vistas arrebatadoras dos seus picos alpinos, que se estendem até à Cote d’Azur.
Esqueçam os bares, supermercados e restaurantes. A agitação social limita-se aos ocasionais eventos folclóricos que ocorrem na aldeia, ou quando os turistas embarcam na busca solitária por cogumelos ao fim de semana.
Um estilo de vida mais lento
Os habitantes abraçam um estilo de vida mais lento e simples, em harmonia com a natureza.
“Não temos televisão. Não sentimos falta do que nunca tivemos. Quando falta a eletricidade durante 15 dias seguidos, não há motivos para entrar em pânico. Vamos buscar os candeeiros a petróleo dos nossos avós”, disse Agnes Garrone, uma pastora local com 25 anos, à CNN Travel.
“Estou habituada a acordar de madrugada para tratar das ovelhas. Trabalho 365 dias por ano, sem férias. Não sei o que é o Natal nem a Passagem de Ano porque, mesmo durante as festas, os rebanhos têm de ser alimentados e tratados. É uma vida de sacrifício, mas é muito gratificante quando vemos um borrego nascer.”
Garrone gere a La Meiro di Choco, uma antiga quinta que, por acaso, é a única pousada em Coumboscuro.
Quem aqui pernoita pode dormir nas tradicionais cabanas em madeira, provar alimentos frescos da horta e tem a opção de comprar lã superior de uma ovelha italiana indígena chamada Sambucana, também conhecida como Demontina.
Enquanto muitos dos habitantes mais novos da aldeia fugiram em busca de um futuro melhor há muitos anos, Garrone e os seus irmãos decidiram ficar e trabalhar nas terras dos seus antepassados.
A mãe deles cultiva canábis e outras ervas para fins medicinais, e faz xaropes com folhas de sabugueiro e dente-de-leão.
Revitalização cultural
“Os visitantes são bem-vindos a ficar connosco. Precisamos que as pessoas descubram o nosso mundo, não queremos ser esquecidos e temos muito património para partilhar”, diz Garrone.
A jovem de 25 anos considera o provençal, habitualmente descrito como um misto entre francês e italiano, como a sua língua materna, em vez do italiano.
Ela explica que fazer parte de uma comunidade sociocultural e linguística com séculos de história lhe dá um forte sentido de identidade e pertença territorial.
A zona da região de Piemonte onde se localiza Coumboscuro transitou entre a governação italiana e francesa várias vezes na história, o que ajuda bastante a explicar por que razão os habitantes como Garrone não se sentem italianos nem franceses, apenas provençais.
Rodeada por florestas de avelaneiras e freixos, a aldeia divide-se em 21 minúsculos casarios espalhados pelo imaculado Valle Grana, cada um deles composto apenas por um punhado de casebres em pedra e madeira.
Os bairros são ligados por trilhos de bicicletas e cavalos pontuados por instalações de arte campestre.
O bairro principal, composto por apenas oito pitorescos chalés em madeira com paredes de estuque agrupados à volta de uma capela antiga, foi fundado em 1018 por monges franceses que reclamaram os terrenos para utilização rural.
Apesar de Coumboscuro ter florescido durante muitos anos, as coisas começaram a mudar nos anos de 1400, quando os invernos agrestes fizeram muitas famílias mudarem-se para Provença durante grande parte do ano e voltarem apenas durante o verão.
A população da aldeia definhou durante muitos anos, mas Coumboscuro assistiu a uma espécie de renascer na década de 1950 quando o avô de Garrone, Sergio Arneodo, ocupou o cargo de professor na aldeia.
Após ter estudado o antigo idioma local, ele ajudou a recuperar as raízes linguísticas e o apelo folclórico da língua provençal, trazendo à comunidade um tão necessário impulso.
Peregrinação espiritual
Hoje em dia, quer seja uma peça interpretada por atores com trajes tradicionais, exposições de arte, concertos, festas, dança folclórica, concursos de dialetos, oficinas de escrita ou até lojas de artesanato, há diversas atividades e eventos que celebram as tradições provençais.
Quem se interessa por saber mais pode visitar o Museu Etnográfico de Coumboscuro. Já o centro de estudos provençais organiza cursos de língua e escrita provençal para adultos iniciantes e crianças.
Em julho, milhares de falantes de provençal vestidos com trajes tradicionais participam na Roumiage, uma peregrinação espiritual de Provença, no sul de França, junto aos Alpes até Coumboscuro.
O percurso leva-os por picos cheios de neve, desfiladeiros íngremes e florestas de castanheiros. Era o percurso percorrido pelos antepassados, tal como pelos comerciantes medievais, foras-da-lei e contrabandistas transalpinos ao longo dos anos.
Quando chegam a Coumboscuro, os peregrinos são recebidos por uma grande festa, com tendas e celeiros montados como alojamento temporário.
Apesar de o declínio da população continuar a atormentar a aldeia, os seus residentes, agora mais conscientes das suas raízes, desenvolveram uma ligação primordial à sua terra natal. Hoje, muitos veem Coumboscuro como o berço do microcosmos provençal.
Língua ameaçada
“Dando seguimento à revitalização cultural, as lojas de carpintaria vendem agora peças tradicionais de artesanato provençal e as quintas voltaram a florescer. Produzem batatas, castanhas, sidra de maçã e bebidas herbais”, diz Davide Arnoedo, que dirige o Museu Etnográfico de Coumboscuro e o centro de estudos provençais.
“Académicos, intelectuais e artistas reúnem-se aqui para exposições de arte e conferências para discutir o nosso rico património.”
Após campanhas de consciencialização da comunidade local, em 1999, Itália reconheceu oficialmente a existência da minoria occitana, e o idioma provençal é agora protegido pela lei nacional.
No entanto, o provençal continua a ser uma língua ameaçada em risco de extinção no futuro, e em 2010 foi incluído pela UNESCO no Atlas das Línguas do Mundo Ameaçadas de Extinção.
“Este é um dos poucos vales do mundo onde a nossa língua sobrevive”, acrescenta Arneodo, que é filho de Sergio Arneodo e tio de Garrone.
“No passado, era um idioma lírico e literário falado pelos artistas itinerantes da corte e caiu em desuso, mas aqui, graças aos esforços do meu pai, a juventude recuperou o património dos ancestrais e muitos decidiram ficar.”
Património rico
As bruxas e os xamãs têm um papel muito grande no mundo provençal, tal como a comida alpina, e Coumboscuro tem decididamente uma atmosfera mágica.
Na verdade, reza a lenda que vários habitantes receberam a dádiva de poderem curar ossos partidos e entorses nos tornozelos.
Alguns acreditam inclusive que os bosques são habitados por fadas e faunos chamados Sarvan, que além de supostamente terem ensinado os habitantes a fazerem manteiga e os queijos Toma e Castelmagno, pelos vistos também pregam partidas aos agricultores roubando-lhes leite fresco e sacos cheios de nozes.
Todos os anos, realiza-se em Coumboscuro o Boucoun de Saber, uma popular feira gastronómica que apresenta as principais iguarias alpinas de origem provençal.
Quanto à culinária local, algumas receitas tradicionais incluem La Mato, ou “a louca”, composta por arroz, especiarias e alho-francês, e também batatas fumadas Bodi en Balo, que são aquecidas na lareira num ritual antigo.
O Aioli, um molho mediterrânico à base de alho, é popular a acompanhar pratos clássicos. Os Dandeirols, macarrões caseiros servidos com natas e nozes, são outro prato de destaque.
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