“Com quantas barragens se mata um rio?”, Mulheres indígenas denunciam empreendimentos hidrelétricos na COP26
Em Glasgow, as ativistas indígenas da Amazônia e da Colômbia também falaram sobre suas próprias soluções de energia limpa, que trazem cada vez mais autonomia aos povos indígenas na gestão de seus territórios.
Com os olhos marejados e voz firme, Juma Xipaia, liderança indígena do povo Xipaia do Médio Xingu, no Pará, iniciou o painel “Povos indígenas da Amazônia e mudanças climáticas: novas soluções energéticas dos territórios indígenas”, na COP26, ocorrido na tarde desta quinta-feira (04/11), em Glasgow, na Escócia, e transmitido virtualmente. A mistura de emoções que Juma expunha a todos que a ouviam vinha do peso de falar sobre os impactos da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte na vida dos povos indígenas do Xingu. “Vocês não conseguem imaginar quantas vezes eu já falei de Belo Monte e cada vez é dolorido”, afirmou a primeira mulher a se tornar cacica no Médio Xingu, no Pará.
“Falar de Belo Monte não é falar de desenvolvimento, de projetos, é reviver perdas e mortes. É isso que essa hidrelétrica representa para os povos indígenas: morte. Imagina se eu chegasse na casa de vocês e dissesse que vocês não teriam direito a nada e quando vocês voltassem já não existisse mais nada da sua história, nada do seu passado? Vocês iam sentir esse vazio que nós, povos indígenas, sentimos. Muitos agricultores, ao voltarem para as suas casas, já não tinham mais nada porque os tratores de Belo Monte tinham passado por cima”, complementou a jovem indígena.
Os impactos da UHE Belo Monte, construída em 2013, são denunciados diariamente pelos povos indígenas do Xingu. Além disso, o empreendimento é alvo de dezenas de ações civis públicas do Ministério Público Federal (MPF), por conta do desrespeito ao direito da consulta livre, prévia e informada das populações indígenas e ribeirinhas afetadas pela obra. O MPF considerou que a obra resultou numa ação etnocida contra os povos indígenas da região.
Nesse sentido, Juma questionou categoricamente os impactos não só ambientais, mas sociais do que é chamado de “energia limpa”. “O rio é essencial, acredito que não só para nós povos indígenas, mas para o mundo. Belo Monte foi construída na Volta Grande do Xingu, onde há uma biodiversidade que vocês não conseguem imaginar e cortaram o rio, cortaram o Xingu ao meio, foi como se partissem o nosso coração. Que desenvolvimento é esse que só trouxe tristeza, divisão dos povos, conflitos dentro das comunidades, violência contra mulheres e crianças? Que negocia e vende, não somente os nossos direitos mas o nosso futuro”, questionou.
O projeto iniciou os primeiros estudos há mais de três décadas, mas sem a consulta aos povos indígenas e ribeirinhos impactados, nos moldes do que determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), afirmou Juma em sua fala emocionada. “Tem aqueles que foram esquecidos, que não foram considerados impactados, os extrativistas e ribeirinhos. Estamos falando de um projeto de mais de 30 anos que abriu portas para a Belo Sun, uma mineradora canadense. Ela também não respeita a nossa existência e nunca fez consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas”, criticou.
Ao encaminhar sua fala para o final, a liderança indígena Xipaia alertou sobre a importância de ativistas de outros países olharem para seus governos que estão colaborando e financiando projetos como Belo Monte e projetos de mineração, como o da Belo Sun. “Isso não é desenvolvimento, não é energia limpa, isso é assassinato, é ecocidio.” Hoje a empresa responsável pela Belo Monte é o Consórcio Norte Energia, um grupo composto pelas companhias Eletronorte, Chesf, Gaia Energia e Participações, Queiroz Galvão, JMalucelli, Cetenco Engenharia, Mendes Júnior Trading Engenharia, Contern Construções e Comércio, Serveng-Civilsan e Galvão Engenharia.
Por fim, Juma convocou todos a defenderem os rios e as florestas. “Jamais vão nos silenciar, jamais vamos negociar os nossos direitos, os nossos futuros”, concluiu.
O caso de Belo Monte foi apenas um entre tantas outras denúncias sobre o impacto dos empreendimentos hidrelétricos trazidos no evento. Alessandra Korap, liderança das Munduruku do Médio Tapajós, não quer ver o filme de Belo Monte de novo. “O que aconteceu com Belo Monte que destruiu aldeias por causa das enchentes, nós estamos lutando para não acontecer com o nosso povo. Os rios não escolhem estado ou país, eles são como uma veia, se você barra um rio tem consequências”, alertou.
Os rios Juruena e Teles Pires, em Mato Grosso, afluentes do Tapajós, contam com inúmeros projetos hidrelétricos, que vão de Centrais Geradoras de Energia (CGHs), a Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), até as grandes usinas, as UHEs. “No Teles Pires foram construídas quatro usinas, Colíder, Sinop, São Manoel e Teles Pires. As duas últimas destruíram os lugares sagrados”, disse Alessandra.
Segundo ela, apenas no rio Jamanxim, importante afluente do rio Tapajós, já são quatro projetos de hidrelétricas . Ademais, por conta das intensas atividades garimpeiras na região, o rio já está morrendo. “O rio está branco, é transportado mercúrio na Amazônia e os rios estão morrendo.”
“A única coisa que a gente pede é que respeitem os povos indígenas e demarquem as Terras Indígenas. Nós estamos contaminados pelo mercúrio, o nosso peixe está contaminado, estamos fazendo o trabalho do governo fiscalizando, fazendo um papel de proteger”. Alessandra declarou que grandes navios estão esperando a construção de outras usinas para transportar soja, milho e algodão para países da Ásia, Europa e Estados Unidos. “São mais de 40 portos esperando que as UHEs saiam.” Estão previstas para implementação no rio Jamanxim, as usinas de Cachoeira do Caí, Cachoeira dos Patos e Jamanxim.
A omissão e falta de transparência do governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), que está na COP26 foi denunciada pela ativista do povo Munduruku.“O governo do Pará decretou o dia do garimpeiro, que está levando armas, drogas, mercúrio, prostituição e doenças ao território. O Helder Barbalho diz que protege o meio ambiente, está aqui atrás de economia verde, de dinheiro, mas esse dinheiro é para trazer morte para a gente. Estamos aqui brigando porque nós estamos lá, sentindo tudo isso com nossos filhos”, afirmou.
Após os apontamentos de Alessandra, foi exibido um vídeo narrado pela cientista social, mestranda em antropologia social pela Universidade de São Paulo (USP) e moradora da aldeia 13 de Maio, Tipuici Manoki, da Rede Juruena Vivo. As lindas imagens da bacia do Juruena, no norte de Mato Grosso, contrastaram com a ameaça de mais de 160 empreendimentos identificados na região, com o potencial de comprometer toda a região em termos ecológicos e também culturais. No vídeo, Tipuici questionou: “Afinal, com quantas barragens se mata um rio? Em nome de que impor barreiras às águas e a todos que vivem nos nossos rios?”. Confira no vídeo abaixo para mais detalhes sobre os impactos dos empreendimentos hidrelétricos na bacia do rio Juruena.
Projeto Cruviana e a energia dos ventos
Como uma alternativa às tentativas de construção de grandes usinas hidrelétricas no estado de Roraima, uma solução de energia limpa construída pelos próprios indígenas foi apresentada pela líder indígena Sineia do Vale, do povo Wapichana. Trata-se do projeto Cruviana, que gera energia a partir dos ventos e que vem contribuindo para o desenvolvimento das comunidades e ao mesmo tempo introduzindo uma experiência de transição energética no país.
A iniciativa nasceu de uma aliança entre os povos indígenas, o Conselho Indígena de Roraima, o Instituto Socioambiental (ISA), a Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e outros parceiros. A partir de 2013, três torres meteorológicas de medição de vento foram instaladas na TI Raposa Serra do Sol. O projeto ainda não foi implementado, mas já tem todos os estudos aprovados e foi debatido por mais de um ano na região. “O projeto Cruviana surgiu na vida do povo Macuxi. Foi anunciado por várias vezes a construção de uma hidrelétrica na Cachoeira do Tamanduá. Nós começamos a conversar, nos reunir e procurar alternativas para fazer um contraponto a essa indicação”, explica Sineia.
A ideia é mostrar que é possível não destruir rios, comunidades e vidas, mas encontrar soluções de energias limpas e renováveis para ajudar as comunidades indígenas a terem energia nas suas comunidades, sem destruir o meio ambiente, disse Sineia. “Não chamamos de energia eólica, mas de energia dos ventos, neste momento está sendo feita a instalação desse projeto piloto na comunidade do Tamanduá.”
A energia para monitorar os territórios é uma das principais demandas na TI Raposa Serra do Sol, segundo a liderança Wapichana. “Nós precisamos juntar os conhecimentos científicos com os tradicionais, por isso é tão importante nós termos alternativas para a energia e eu trago essa experiência, mas creio que em outras partes do Brasil, em outra parte do mundo, povos indígenas possam ter energia limpa, que possamos guardar com cuidados para usar em nossos territórios.”
Esse projeto de energia não aconteceu de cima para baixo, segundo Sineia. “Ele é construído pela comunidade, acordado com todas as comunidades, se querem ter energia solar, ou dos ventos. Para assegurar essas discussões dentro das terras indígenas no Brasil, estamos em todas as partes construindo os planos de gestão territorial e de enfrentamento das mudanças climáticas. E esses planos não vêm de fora para dentro, estão na cabeça dos povos indígenas que sempre conservaram as suas terras.”
Com relação às mudanças climáticas, Sineia destacou que é preciso encontrar uma solução urgente e essa resposta está com os povos indígenas. “Não dá mais para ter solução para daqui 30 ou 50 anos precisamos achar soluções para a não emissão [de gases do efeito estufa] já. Os povos indígenas têm achado soluções milenarmente, com o manejo das florestas, o povo tem guardado sabedoria para proteger as florestas. E quando fazemos esse trabalho milenarmente a gente escuta dos países sobre os fundos e mecanismos para manter a floresta em pé, para isso precisamos manter o direito às TIs, que são parte dessa ação para o clima”, sugeriu.
A governança indígena sobre os próprios territórios é de suma importância para se achar alternativas para os impactos das mudanças climáticas, diz ela. “Que nós possamos observar os fundos indígenas que estão surgindo nas nossas organizações para nos dar suporte a essas ações na Amazônia, já são vários que estão prontos para serem implementados.” Entre eles, ela citou o Fundo Podáali da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e a Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP, na sigla em inglês) da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (UNFCCC). “Precisamos implementar essa plataforma para que a gente possa fazer o caminho de volta para as nossas comunidades e dialogar diretamente com ela.”
Ao final da mesa, a liderança da comunidade indígena Arhuaca, no norte da Colômbia, Ati Villafaña Izquierdo, destacou que em Magdalena Guajira, um departamento (que se compara a um estado no Brasil), no qual há 54 assentamentos, com 45 mil integrantes indígenas, houve a implementação de painéis solares. “Esse tipo de alternativa nas comunidades representou autonomia dos povos indígenas, lá existe uma aliança importante para pensar soluções alternativas.”
Ati explicou que como reflexo as energias limpas, em 2016 houve a ameaça da construção da construção de uma hidrelétrica no rio Don Diego. Para ela, a resposta é gerar autonomia aos povos indígenas da Magdalena Guajira. “Parte das ambições do país é reduzir as emissões de gases do efeito estufa em 51% para 2030 e parte dessas alternativas é usar energias renováveis como em Magdalena Guajira.”
Confira o painel:
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