Cinema e teatro com o uso de Libras acontecem em Florianópolis, mas faltam intérpretes
Primeira série de TV bilíngue do país para surdos e ouvintes foi gravada em Florianópolis e deve ser lançada no segundo semestre deste ano
Por: Karin Barros/ Florianópolis
Como surdos curtem cinema? Talvez você nunca tenha pensado nisso, mas eles formam um grupo de quase 46 mil pessoas na Grande Florianópolis, de acordo com uma pesquisa do IBGE do ano de 2010. O relatório é dividido em dificuldades auditivas, como “alguma dificuldade”, “grande dificuldade” e “não conseguem ouvir de modo algum”, sendo que esse último reúne 1.593 pessoas. No total, a comunidade surda do país é de 10 milhões de pessoas.
Para isso, o uso de Libras (Língua Brasileira de Sinais) entra em cena, literalmente, e com apoio total e fundamental da Ancine (Agência Nacional de Cinema). Desde dezembro de 2014, uma normativa da agência especializada obriga que “todos os projetos de produção audiovisual financiados com recursos públicos federais geridos pela Ancine deverão contemplar nos seus orçamentos serviços de legendagem descritiva, audiodescrição e Libras”.
De acordo com o diretor de cinema e proprietário da produtora Filmes que Voam, de Florianópolis, especializada em versões de filmes com audiodescrição e Libras, Chico Faganello, 50, desde a obrigatoriedade, a situação para a comunidade surda apreciadora de cinema vem melhorando progressivamente. “É um público muito amplo no país, e órfãos da indústria do entretenimento”, aponta.
Em Florianópolis, cidade com o curso de Libras referência na América Latina, um projeto piloto de série para televisão chamado “Crisálida” vem chamando a atenção. Com premiação do Funcine (Fundo Municipal de Cinema), idealizado, escrito e roteirizado por Alessandra da Rosa Pinho, 37, produtora de audiovisual há 16 anos e estudante de Libras da UFSC, e dirigido pelo marido, o cineasta Serginho Melo, 54, em parceria com a Raça Livre Produções e Arapy Produções, “Crisálida” é a primeira série inteiramente bilíngue para não ouvintes do país. Ela é gravada do início ao fim em Libras (sem o sistema de janelas) e com legendas em português. A produção conta ainda com 40 atores profissionais e não profissionais, entre surdos e ouvintes. Durante um ano e meio de produção, uma semana de gravação e seis meses de edição, Alessandra e Serginho gravaram cenas em Florianópolis, e em uma escola em Ascurra, no Vale do Itajaí.
A série, que também ganhará versão de curtametragem para poder participar de festivais e arrecadar fundos, apresenta jovens surdos que enfrentam as dificuldades do dia a dia em uma sociedade desenhada apenas para ouvintes, retratando situações familiares, sociais e psicológicas que os surdos vivenciam e revelando como o contato com a língua de sinais foi o agente transformador na vida de cada um destes personagens. O protagonista do primeiro episódio da série é o personagem adolescente Rubens, interpretado por Cleiton Ribeiro, 14, morador do Campeche, surdo profundo (sem audição alguma) desde que nasceu.
Em “Crisálida” são evidenciados também os conflitos de ética na atuação dos tradutores e intérpretes de Língua de Sinais. “As pessoas tem uma visão muito assistencialista da profissão do interprete, mas é um trabalho que tem muita dedicação. Eles têm que ter um conhecimento de tudo, e sobre tudo”, insiste a idealizadora Alessandra. A série será lançada para o público no segundo semestre deste ano, mas como ainda está em fase da captação de recursos, a data não foi definida.
Participações mais que especiais
Pessoas que já nasceram surdas têm como sua primeira língua a Libras. Por isso, nem todo surdo lê frases em português perfeitamente, por esta língua ser a segunda no seu vocabulário e ter estrutura completamente diferente da língua de sinais.
A UFSC abriu a primeira turma de Letras Libras à distância em 2006, e presencial em 2008. Nove polos foram abertos em todo o país, formando presencialmente em 2010 quase 450 intérpretes e tradutores. Atualmente, são 200 alunos presenciais só na Capital.
Marcos Luchi, 28, subcoordenador do curso da UFSC, afirma que o maior entrave do surdo é a educação básica. “Eles precisam de educação bilíngue em escola bilíngue, colocar intérprete não resolve. Linguisticamente não é o ideal. Por conta da lei que apoia o surdo, o mercado de trabalho melhorou, mas ainda deixa a desejar. O surdo não é obrigatoriamente um professor de Libras. Se ele quiser, pode trabalhar com qualquer coisa”, explica ele. “Crisálida” teve premiação do Funcine e foi gravado em seis dias
Entre os surdos que participam do “Crisálida”, está Harrisom Adams, 23, nascido em Cascavel (PR). Ele é bolsista na UFSC, estuda Libras na universidade, e tem o contato com a língua dos sinais desde pequeno. “Aprender palavras não ajuda na nossa comunicação, é importante que o currículo escolar entenda que a gente se desenvolve melhor com a língua de sinais”, ressalta. Adams interpreta Gustavo na série, um jovem que trabalha com tecnologias facilitadoras para a comunicação do surdo e pratica Pákua (arte marcial). “Foi uma experiência bem diferente na hora de filmar. A gente erra, faz de novo, acerta, e depois que eu vi o teaser, e vendo tudo acontecer, foi muito legal e bem emocionante. Já tenho outras oportunidades de atuar em vista, e agora que comecei não quero mais parar. Eu acho que não há barreiras”, comemora.
A também paranaense Miriam Royer, 24, também atua na série, mas essa não foi sua primeira participação no mundo das artes. Entre os 10 e 17 anos de idade, ela participou de peças de teatro e até de um filme, mas nunca como uma personagem que represente sua própria vivência. “Quando vieram e me convidaram para a série fiquei muito feliz, achei interessante me colocar como uma personagem surda. É importante que a sociedade veja e conheça a vivência de cada um”, diz ela, que também é surda e bolsista da UFSC.
Já o adolescente Cleiton Ribeiro, que nunca atuou e nem sequer havia sonhado com isso, vem mudando seus planos para quem sabe uma vida de estrela.
Estreando nas telas como o jovem Rubens, Cleiton e sua família estão empolgados com “a ideia de possivelmente se tornar famoso”. “Sempre tive problemas com a comunicação mesmo estudando Libras desde pequeno, porque muitas pessoas não sabem como se comunicar comigo, por isso minha família está feliz com a participação. Vejo muita TV, mas não tem muita acessibilidade, tento entender pelo que vejo de expressão facial”, conta ele que ainda está em aprendizado da língua portuguesa, mas que paralelo a isso ficou em 3º lugar nas Olimpíadas de Matemática a nível nacional. Mike Oliveira, 37, que é o intérprete de Cleiton na escola municipal em que ele estuda, também é ator na série, além de ajudar na comunicação entre a equipe.
Mostras locais já utilizam Libras
Na Capital, outros três projetos solidificados na agenda dos catarinenses são destaque quando o assunto é acessibilidade: a Mostra de Cinema Infantil, que
esse ano ocorre de 2 a 10 de julho, o Domingo é Dia de Teatro, que acontece toda semana no shopping Iguatemi, e o Fita (Festival Internacional de Teatro de Animação).
A Mostra de Cinema Infantil, que este ano está em sua 15ª edição, começou a fazer exibições para a comunidade surda há quatro anos. De acordo com Luiza Lins, diretora do projeto, a maior dificuldade inicial foi fazer a programação do evento chegar até os cegos e surdos. “Nas primeiras sessões tivemos que ir buscá-los em casa praticamente. É um número incrível de pessoas que não estavam tendo acesso à arte. Começamos então a entrar em contato com as instituições que trabalham com esse público”, conta a diretora. A ideia, segundo ela, é continuar com o trabalho de Libras e audiodescrição, que faz em
parceria com a produtora Filmes que Voam, porém ainda não está definido o número de dias que terão exibições para este público.
Em janeiro deste ano, o Domingo é Dia de Teatro, que existe há três anos e é voltado ao público infantil, deu início ao projeto com a presença de um intérprete nas sessões. A ideia, viabilizada por meio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Florianópolis, é divulgada em instituições, como a Associação de Surdos da Grande Florianópolis, e no curso de Libras na UFSC. Atualmente, a média é de cinco pessoas surdas em cada edição teatral.
O Fita, que chega a sua 10ª edição em 2016 e ocorre em meados de maio, se preocupa em tornar suas peças mais acessíveis ao público surdo também há quatro anos. Segundo Sassá Moretti, diretora do festival, a ideia surgiu pelo fato dos alunos da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) que trabalham no evento estarem inseridos naquele meio. “Eles trouxeram um olhar preocupado com esse o público para a coordenação do evento. E os surdos aceitaram muito bem a proposta”, afirma Sassá, que garante que pelo menos metade da plateia de teatro de boneco é de não ouvintes. O festival também trata da inclusão em oficinas gratuitas de teatro de bonecos para surdos.
Falta cultura de intérpretes artísticos Para Faganello, da produtora Filmes que Voam, especializada no público surdo e cego há mais de dez anos, a Capital não tem a cultura de ter intérpretes nos eventos culturais. Pior que isso são as barreiras criadas no relacionamento com o surdo, pois muitas pessoas não sabem como conversar com eles, segundo o produtor. Este fato os impede de saber quando haverá intérprete nas sessões, e consequentemente, os afastam do convívio em sociedade.
Chico afirma ainda que o maior público da produtora está na internet. “O surdo é muito inteligente e conectado. Muitas vezes eles manipulam as tecnologias melhor que o ouvinte”, explicou. Até julho deste ano, a produtora lançará dez novas versões de filmes infantis, que serão apresentadas na 15ª Mostra de Cinema Infantil. Faganello está trabalhando ainda em uma versão com Libras e audiodescrição para o filme “Tropa de Elite 2”, já que a ideia da produtora é ter filmes que permeiam por todas as faixas etárias, assim como o documentário “Entre Gerações”.
A intérprete gaúcha Natália Rigo, 31, também é professora de artes, e começou na profissão de intérprete depois de ver a limitação dos surdos nos contextos artísticos, além disso, tinha a preocupação de ter um aluno surdo e passou a se especializar no assunto. Atualmente ela trabalha como intérprete nas reuniões de grupo da série “Crisálida”, fazendo intermediação entre cinegrafistas, por exemplo, e os atores surdos.
Natália atua também como bailarina e intérprete do grupo de dança Dois Pontos, que tem como um dos seus trabalhos de inclusão social a peça “1717”, apresentada dentro de Catedral Metropolitana de Florianópolis. “Possibilitar esse acesso ao surdo aqui em Florianópolis é algo muito recente. Vejo que no Rio de Janeiro e em São Paulo tem muitos projetos com intérpretes na esfera artística. Como aqui não existe ainda um costume, eles não vão porque estão acostumados a nunca ter esse profissional no evento”, salienta ela, que é mestre em interpretação na esfera artística e música para o público surdo pela UFSC.
Confira algumas dicas da produtora Filmes que Voam para se relacionar com surdos
– Fale diretamente com a pessoa, e não de lado ou atrás dela.
– Pronuncie suas frases devagar, mas com naturalidade.
– O volume de voz depende da perda de audição da pessoa. Comece falando com o tom de voz habitual e, se a pessoa solicitar, fale mais alto ou mais baixo.
– Faça com que a sua boca esteja bem visível, para permitir a leitura labial.
– Não fale mastigando, pois isso torna os lábios ilegíveis.
– Para chamar um surdo, faça algum sinal visual ou tátil, como acenar, acender e apagar uma luz ou até tocar o ombro da pessoa de leve.
– Quando falar com uma pessoa surda, tente ficar num lugar iluminado. Evite ficar contra a luz, pois isso dificulta ver o seu rosto. Se estiver na penumbra da sala de cinema, use lanterna ou a luz da tela do celular.
– As expressões faciais, os gestos e o movimento do seu corpo serão excelentes indicações do que você quer dizer.
– Enquanto estiver conversando, mantenha sempre contato visual. Se você desviar o olhar, a pessoa surda pode achar que a conversa terminou.
– Se for necessário, comunique-se com a pessoa surda através de bilhetes. O importante é se comunicar.
– Quando a pessoa surda estiver acompanhada de um intérprete, dirija-se à pessoa surda, não ao intérprete.
– Se você se sentir inseguro, pergunte. Não tenha vergonha de pedir para a pessoa repetir.
Assista ao teaser de “Crisálida”:
Fonte: Notícias do dia
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