Belém e Manaus são cemitérios de línguas extintas na Amazônia

Paca, tatu, cotia sim. Esses e outros bichos desconhecidos na Europa foram encontrados no litoral brasileiro e na Amazônia pelos portugueses, que tomaram emprestado das línguas indígenas os nomes de animais, peixes, plantas, práticas culinárias, tecnologias tradicionais e formas de fazer as coisas.

Mas, por outro lado, os portugas trouxeram um mundo de coisas novas que não existiam aqui: enxada, machado de ferro, papel, catecismo, bíblia, pecado, cupidez, padre, soldado, pólvora, canhão e até animais como vaca, cavalo, cachorro, galinha. Com as coisas, trouxeram os nomes das coisas.

A língua portuguesa e as línguas indígenas, através de seus falantes, ficaram se esfregando e se roçando uma nas outras, num intenso troca-troca. Esse atrito, que a sociolinguística chama de línguas em contato, configurou o português regional e marcou os idiomas indígenas, um dos quais serviu de base para o Nheengatu, a língua que durante séculos organizou a comunicação entre todos.

Essas questões foram discutidas segunda-feira passada na Universidade Federal do Amazonas numa palestra sobre a História das Línguas na Amazônia organizada pelo Programa de Pós-Graduação em História e ministrada por este locutor que vos fala.

Trata-se da história do casamento do pirarucu com o bacalhau. Um, de cabeça chata e ossificada, mora nas águas quentes dos rios da Amazônia. O outro vive na Europa, nas águas frias do Oceano Atlântico, mas ninguém viu sua cabeça, apenas um velho de Gafanha da Nazaré, no Aveiro, que é mudo e não pode descrevê-la. Não foi um casamento fácil porque o casal, que morava na casa de Noca, manteve relações assimétricas, conflitivas, tensas, de dominação e exploração.

É como no fado tropical de Chico Buarque: “avencas na várzea, alecrins no igapó, pupunha no Alentejo, tucumã no vale do Mondego, o rio Amazonas que corre trás-os-montes e numa pororoca deságua no Tejo”. Nós somos os filhos dessa união. Embora haja quem queira negar tal filiação, fruto de empréstimos de lá pra cá e daqui pra lá.

Os empréstimos

O Nheengatu, “uma das línguas de maior importância histórica no Brasil”, foi a língua majoritária da Amazônia durante todo o período colonial, estendendo sua hegemonia até a primeira metade do século XIX. Manteve contato permanente, através de seus falantes, com outras línguas indígenas e com o português, o que deixou marcas e influências mútuas bastante significativas. Numa amostra registrada por Aryon Rodrigues, 46% dos nomes populares de peixes e 35% dos nomes de aves na língua portuguesa falada no Brasil são oriundos do Tupinambá.

O Nheengatu, que também não ficou congelado, fez vários tipos de empréstimos. Um deles foi substituir palavras próprias por seu correspondente em português, como no caso de ipéca que cedeu lugar a pato. Outro foi fazer adaptações fonéticas de termos que designavam conceitos, funções e utensílios novos: cavalo em português deu cauaru em nheengatu; cruz virou curusu; soldado, surára; calça ou ceroula, cerura; porco, purucu; livro, libru ou ribru; papel, papéra, e amigo ou camarada deu camarára.

Mas não parou aí. O Nheengatu ampliou ainda o valor semântico de palavras do seu léxico para dar conta da nova realidade colonial, nomeando com nomes tupis certos elementos desconhecidos dos índios, mas com os quais é possível estabelecer analogias: assim boi e vaca foram denominados de tapir (anta); cachorro passou a ser iauára (onça); vinho foi chamado de cauín e tesoura de piranha. Mas se boi e vaca são denominados de tapir, como chamar, então, a anta? Ela virou tapireté assim como a onça ficou iauareté, acrescentando a partícula eté, que significa verdadeiro, legítimo, genuíno.

Durante dois séculos e meio, índios, mestiços, portugueses e escravos africanos trocaram experiências e bens nessa língua que se firmou como língua supraétnica, difundida amplamente pelos missionários por meio da catequese. Denominada de Língua Geral Amazônica pelos linguistas para diferenciá-la da Língua Geral Paulista, ela é hoje bastante usada no Rio Negro. Graças a um projeto do vereador indígena Kamico Baniwa, foi declarada,em 2002, língua cooficial em São Gabriel da Cachoeira (AM), um município com área maior que Portugal, onde são faladas 22 línguas.

Identidade

Dados sobre a história das línguas na Amazônia estão dispersos em arquivos nacionais e europeus. No Arquivo Histórico do Exército, no Rio de Janeiro, no fundo intitulado Guerra do Paraguai, existe troca de correspondência com o presidente da Província do Amazonas, em 1865, sobre o envio de recrutas para a Corte, além de relatórios de interrogatórios feitos a prisioneiros paraguaios e mapas do 54º Batalhão de Voluntários da Pátria que possuía uma Companhia de Índios.

A documentação da Guerra do Paraguai registra notícias de “voluntários” do Amazonas, monolíngues em Nheengatu, cujo recrutamento criou uma situação no mínimo insólita, com consequências sobre as marcas identitárias étnicas e nacionais: muitos soldados amazonenses, pertencentes ao 5º Batalhão de Infantaria, que sequer podiam entender as ordens em português do seu comandante, morreram nos campos de batalha do Paraguai, como “voluntários da Pátria”, falando uma língua, compreendida pelo inimigo, mas desconhecida em sua própria trincheira.

Do outro lado, havia situação similar com soldados paraguaios, monolíngues em guarani criollo, alguns dos quais foram feitos prisioneiros de guerra, e só puderam ser submetidos a interrogatório com ajuda de soldados amazonenses, bilíngues em Língua Geral-Português, que funcionaram como intérpretes e tradutores devido à proximidade das duas línguas.

A partir da Guerra do Paraguai, o Nheengatu começa a perder falantes, cessa a sua hegemonia no Amazonas, fica limitado ao Rio Negro e a bolsões no Alto Solimões. Outras línguas indígenas desapareceram sem deixar qualquer vestígio e quando uma língua que não foi documentada deixa de ser falada, é como se nunca tivesse existido. As cidades da Amazônia, entre elas Manaus e Belém, foram cemitérios de línguas indígenas, lá estão sepultados os últimos falantes de várias línguas extintas.

Todos nós devemos nos preocupar com as línguas que estão morrendo, da mesma forma que nos afligimos quando desaparece uma espécie animal ou vegetal, porque “isso reduz a diversidade do nosso planeta”. A diversidade cultural, intelectual e linguística é tão vital para a sobrevivência da espécie humana quanto à diversidade biológica – escreve o linguista irlandês David Crystal no seu livro “A revolução da linguagem”, onde apresenta algumas estratégias para revitalizar línguas em perigo de extinção.

Uma delas é justamente discutir o assunto nas escolas e na mídia, traduzindo a produção da academia para uma linguagem acessível ao grande público, com o objetivo de criar uma consciência planetária sobre a importância de preservar a glotodiversidade.

– A história da América – escreve Bartomeu Meliá – é também a história de suas línguas, que temos de lamentar quando já mortas, que temos de visitar e cuidar quando doentes, que podemos celebrar com alegres cantos de vida quando faladas.

O processo de deslocamento linguístico na Amazônia mexeu com a nossa identidade e memória. Esquecemos que esquecemos o Nheengatu, mas o conhecimento dessa trajetória é essencial, porque como nos ensina Braudel, “a condição de ser é ter sido”. É isso: nós somos as línguas que fomos.

P.S.:1 – A trajetória do Nheengatu é descrita no livro de minha autoria Rio Babel – a história das línguas na Amazônia (2011, 2a. edição) e no artigo Da Fala Boa ao Português na Amazônia Brasileira, publicado na revista Ameríndia da Universidade de Paris VII (1983) e, posteriormente, na revista Amazônia em Cadernos (2000)do Museu Amazônico. Agora, o artigo foi traduzido ao Nheengatu e publicado nesta língua pela Editora da Universidade do Amazonas, no livro monolíngue organizado por Gilvan Muller e Mauricio Adu Schwade intitulado Yẽgatu Resewa (2012).

P.S.: 2 – Em Manaus, participei da banca examinadora da dissertação “Soldados da Borracha: das vivências do passado às lutas contemporâneas” do mestrando Frederico Alexandre de Oliveira Lima, ao lado de Luiz Balkar Sá Peixoto Pinheiro (orientador) e Patrícia Rodrigues da Silva.

Por José Ribamar Bessa Freire
Fonte: Terra Magazine – Blog da Amazônia

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