A Academia Angolana de Letras, as línguas nacionais e outros desafios do século 21
“Na época colonial nós eramos obrigados a falar a língua portuguesa e havia a discriminação por via da língua também. Portanto, o estatuto social do angolano também se media sobre a forma e o modo como esse angolano se expressava na língua portuguesa. As autoridades coloniais proibiam o uso das nossas línguas. Com a independência há o inverso”, relatou o presidente da Academia Angolana de Letras, Boaventura Cardoso.
As questões que envolvem o estudo, ensino e incentivo das línguas nacionais e a relação das mesmas com a língua portuguesa fazem parte do plano de ação da Academia Angolana de Letras (AAL), que completou seu primeiro aniversário este ano.
Assim como no Brasil e outras ex-colônias portuguesas, o português falado em Angola tem marcas próprias. “Há linguístas que consideram que há erros que já não devem ser considerados como tal, mas como marcas da nossa angolanidade linguística e literária”, afirmou o presidente da AAL, Boaventura Cardoso.
“A língua portuguesa coexiste com as línguas nacionais. Há empréstimos quer da língua portuguesa quer das línguas nacionais. Temos escritores que acabam por contribuir para a afirmação dessa variante angolana na língua portuguesa. E nisso o nosso grande mestre é Luandino Vieira que é, pra mim, o nosso João Guimarães Rosa”, conclui.
De acordo com Boaventura Cardoso, a língua portuguesa é a “língua da unidade nacional”, pois “cerca de 70% do povo angolano fala ou entende português”. O que não exclui a necessidade de políticas públicas para incentivo do estudo e ensino das línguas nacionais.
“É preciso desenvolver, promover, estudar as línguas nacionais porque há muitas situações de bilinguismo no nosso seio. Não propriamente em Luanda, mas no interior há”, afirmou Cardoso.
Crítica ao conceito de “lusofonia”, a acadêmica Irene Guerra Marques também defende o incentivo às línguas nacionais: “Eu não gosto da palavra lusofonia. Por que lusofonia? Só por falarmos português? A língua portuguesa na sua terra e na minha terra não está a serviço de Portugal. Ela já não reflete a cultura portuguesa”, afirmou para esta jornalista brasileira.
O país, de maioria bantu, conta com dezenas de línguas nacionais dentre as quais destacamos o kikongo, kimbundu, cokwe e umbundu. A atual ministra da Cultura, Carolina Cerqueira, na entrega do Prêmio Literário António Jacinto, realizada no ínicio de dezembro, anunciou que o ministério lançará em 2018 um prêmio literário para textos produzidos nas línguas nacionais.
A AAL deve também propor ações de o incentivo à leitura para uma camada mais ampla da população angolana e promoção e difusão da literatura angolana também no exterior.
“Os jovens escritores têm muita dificuldade em conseguir uma edição”, afirmou em entrevista o presidente da AAL, Boaventura Cardoso. “Nos primeiros anos da independência a União dos Escritores Angolanos fazia edições. O livro circulava bem e também havia muita importação de livros. Nessa altura as pessoas liam muito, hoje nem tanto”.
Boaventura Cardoso lembrou que livrarias importantes se transformaram em outros negócios (lavanderia, supermercado) ou fecharam, como no caso da Lello, cujo edificio podemos ver abandonado na Baixa de Luanda. A crise do mercado editorial angolano é agravada pela falta de incentivo governamental na promoção e difusão do livro.
“Hoje, com a situação econômica e financeira, as dificuldades aumentaram. Mesmo aqui, em Luanda, os livros circulam muito mal. Nem sei se o livro chega a todas as capitais de províncias (em Angola). É um problema muito complicado”, observou Boaventura Cardoso.
No plano internacional, o escritor afirmou que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) poderia atuar mais na promoção e circulação dos produtos culturais: “a nossa comunidade, a CPLP, faz muito pouco pela circulação do livro, do disco e do cinema no espaço de língua portuguesa. No meu tempo, eu lia com muita frequência escritores brasileiros e portugueses. Jorge Amado era muito conhecido. Mas hoje já não”.
Embora a AAL, ao contrário da maioria das academias, nasça no século 21 e tenha desde a fundação mulheres escritoras em seu quadro, um outro desafio que se coloca é a ampliação da participação de escritoras na AAL, uma vez que dos 40 membros apenas três são mulheres – Maria Eugénia Neto, Irene Guerra Marques e Fátima Viegas, recentemente eleita.
“Antigamente não havia mulher em muitos cargos. Hoje há muitas ministras, diretoras e é assim que tem que ser”, afirmou em entrevista a acadêmica Irene Guerra Marques. “Não é muita ainda, mas está a acontecer. Principalmente agora com o movimento de jovens”.
Se enquanto escritoras acadêmicas o número de mulheres ainda é pequeno, o número como membros correspondentes promete ser maior. Segundo o presidente, Boaventura Cardoso, só do Brasil já foram confirmadas como membros correspondentes as professoras Carmen Tindó, Laura Padilha, Maria Nazaré Fonseca, Rita Chaves e Tânia Macedo, entre outras que se destacam nos estudos da literatura angolana. Para o próximo ano, a AAL deve realizar cerimônias de posse no Rio de Janeiro e Lisboa nesta categoria.
“Provavelmente, serão uns 20 membros correspondentes entre brasileiros, portugueses e africanos”, informou o presidente Boaventura Cardoso.
Com muitos projetos para fechar o quadriênio 2016-2020, a AAL encontra-se provisoriamente instalada em espaço cedido pela União dos Escritores Angolanos. Mas, no próximo ano, conta em instalar-se em espaço cedido pelo Ministério da Cultura.
Cada academia tem o seu percurso e Boaventura Cardoso conta que a AAL teve como ponto de partida para redação de seu estatuto, o da Academia Brasileira de Letras. Além de Angola, Cabo Verde também criou sua academia literária em 2013.
Comemoração e posse de novos membros foram realizadas este ano no MAAN
“Fiz parte da Comissão Instaladora, isto é o grupo de 4 pessoas (em momentos 3) que deu o pontapé de arranque [para a criação da academia], fazendo propostas de Estatutos, de Plano de Ação e do Manifesto. Essa Comissão convocava e dirigia as reuniões gerais com todos os elementos que iriam fazer parte dos fundadores da associação, onde se discutiam as diferentes versões desses documentos de base. A Comissão também fez elaborar as propostas para as insígnias e depois tratou da sua feitura. Procurou instalações e encontrou umas, que são provisórias. Preparou a Assembleia Geral onde foram eleitos os membros dos órgãos diretivos e a cerimônia de Apresentação da AAL ao país”, lembrou Artur Pestana “Pepetela”, acadêmico e presidente da Assembleia Geral da AAL.
Uma das marcas da literatura angolana neste ano de 2017 foi o primeiro aniversário da Academia Angola de Letras e sua 1ª eleição de novos acadêmicos. No dia 11 de outubro, com auditório do Memorial Dr. António Agostinho Neto (MAAN) lotado, os acadêmicos realizaram um balanço do primeiro ano de funcionamento da AAL e anunciaram a admissão de três novos membros efetivos: Filipe Zau, Fátima Viegas e Albino Carlos que apresentaram, respectivamente, oração de sapiência sobre educação em Angola, intolerância religiosa e a relação entre música e identidade nacional. Cada novo membro recebeu o medalhão de membro da AAL e o diploma de mérito. Em março deste ano foram abertas cinco vagas para a AAL e aceitos, em eleição, apenas os três empossados citados.
A mesa de cerimônia foi composta pelo presidente da Mesa da Assembleia geral, Artur Pestana “Pepetela”, o presidente do Conselho de Administração da AAL, Boaventura Cardoso, e o vice-presidente da Academia, Luís Kandjimbo que, respectivamente, entregaram o medalhão de membro da AAL a Fátima Viegas, Filipe Zau e Albino Carlos. Já a entrega do diploma de mérito foi realizada pela deputada Luísa Damião a Fátima Viegas, pela deputada Miraldina Jamba a Filipe Zau e pelo acadêmico e presidente do Conselho Científico da Academia, Paulo de Carvalho, a Albino Carlos.
Mais discreto do que o fardão adotado na Academia Brasileira de Letras, o medalhão é a insígnia dos membros da AAL. “Optamos só pelo medalhão e não usamos o medalhão em todas as atividades”, informou em entrevista o acadêmico Paulo de Carvalho. “Normalmente, vamos usar o crachá”.
A cerimônia contou ainda com intervenções musicais da Companhia de Formação Musical Obra Bella e do Duo de Flautas, mas foram os ritmos tradicionais incluídos na oração de sapiência do empossado Albino Carlos sobre o papel da música angolana na consolidação da identidade nacional que fizeram a plateia sacudir os ombros: “Pangui iami” interpretado por Tony Caetano, “Muangolê” de David Zé, “Muloji” de João Pequeno, “Muxima” de Elias diá Kimuezo e “Ixiamyé” com música e letra de Ruy Mingas.
“Somos a música que ouvimos”, afirmou o escritor Albino Carlos em discurso. “Através da música, o angolano fala de si e abre-se ao mundo; aborda a relação ambígua que ele tem com o mar e com as crenças e devoções religiosas; revela também a ligação entre música e revolução e a forma como se canta a saudade nas canções da diáspora”.
A academia, cujo patrono é o poeta e ex-presidente, Agostinho Neto, elaborou um plano de ação 2016-2020 onde se destacam projetos ligados aos Estudos sobre a Variedade Angolana do Português, a História da Literatura Angolana e os Vocabulários Temáticos e Terminologia das Línguas Nacionais. Palestras e conferências em colaboração com escolas do ensino secundário e universidades, além de um Colóquio Internacional sobre o Ensino da Literatura Angolana e a Formação do Cânone Literário em Angola, também devem ser promovidas até 2020.
A expectativa para o próximo ano é que seja cumprido o plano de ação para o quadriênio. “O que será muito, pois esse Plano é muito ambicioso. Certamente algumas das ações terão de ser repartidas por mais mandatos”, avaliou o acadêmico Pepetela. “Este primeiro ano foi só o de instalação da AAL e organização do Conselho de Administração. Não podia ser mais, dadas as grandes carências que o país enfrenta neste momento”.
Já para 2018, o presidente da academia, Boaventura Cardoso, anunciou que será realizado novo concurso para as vagas que não foram preenchidas nesta última eleição além da inserção de membros na categoria correspondente. O edital para eleição de novos membros está previsto para março do próximo ano. Candidatos interessados devem estar atentos também aos critérios de seleção. De acordo com o estatuto, os requisitos para eleição de membros efetivos são: ter obra como objeto de estudo em universidades angolanas e estrangeiras; ter ganho prêmios literários ou de investigação em Angola ou no estrangeiros; e/ou ter obras que tenham sido objeto de ensaios por especialistas em literaturas africanas de língua portuguesa.
Autor de “Olhar de lua cheia”, prêmio literário António Jacinto 2006, o recém-empossado Albino Carlos afirmou que tem preocupação especial com a tradição e identidades angolanas: “As questões que mais me preocupam são aquelas que falam sobre a identidade angolana. Questionar as questões da tradição sem querer recusar a tradição, apenas tentar fazer uma outra leitura. Torná-las mais positivas para o desenvolvimento do nosso país”.
“Há uma globalização muito asfixiante. Países como Angola, da periferia, têm dificuldades de se afirmar. E a cultura é uma das formas de nós pelo menos contrabalançarmos e afirmamos como nós mesmos. Somos um país muito particular e muito orgulhoso das suas tradições e cultura. Um país como nosso, um país jovem, deve assentar seu desenvolvimento em duas questões: na área da educação e da cultura”, disse o empossado Albino Carlos.
Associação privada sem fins lucrativos, a Academia Angolana de Letras teve seu estatuto publicado no Diário da República n.º57 III Série, de 28 de março de 2016. Todos os membros fundadores da AAL participaram da criação da União de Escritores Angolanos, em 1975, após a independência de Angola.
Miriane da Costa Peregrino é jornalista e doutoranda da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Realiza estágio doutoral na Universidade Agostinho Neto, em Angola.
Fonte: Correio da Cidadania
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