A importância das línguas para o mundo moderno
A importância das línguas para o mundo moderno
Henrique Gobbi*
Existem cerca de 7.000 línguas faladas no mundo e quase a metade enfrentam o risco de desaparecer até o final deste século. Entre os motivos estão a integração dos povos tradicionais a culturas dominantes e a globalização, segundo a UNESCO. Mas o que acontecerá quando centenas de idiomas deixarem de existir? Afinal, qual é a importância da diversidade linguística para o mundo moderno?
Para entender melhor este assunto, temos que viajar ao deserto do Kalahari, uma das zonas mais remotas da África Austral. Naquela área, vivem os Bosquímanos !Kung, um dos povos mais antigos do planeta. Eles habitam a região há pelo menos 20.000 anos e vivem um estilo de vida nômade, seguindo suas tradições ancestrais até os dias de hoje.
Durante meu breve contato com aquele povo, o que mais chamou atenção foi o dialeto local. A língua deles é feita de sons de cliques. Aprender o dialeto !kung é algo complexo. Enquanto na língua portuguesa temos 31 fonemas (sons menores que a sílaba), os !Kungs se comunicam em 141 sons diferentes.
A maneira como eles vivem no deserto desperta a curiosidade do mundo. Durante a minha primeira noite no Kalahari, membros da comunidade dançavam ao redor de uma fogueira, vestidos com peles de animais e colares feitos de conchas, um dos únicos bens materiais que pertence ao grupo. Escutar a música dos !Kungs embaixo do céu estrelado do deserto é uma jornada rumo às origens da humanidade.
Até os dias de hoje, muitos deles extraem água através de melões ou raízes de plantas do deserto. Durante os poucos dias de chuva, eles armazenam e carregam água em ovos de avestruz que são compartidos entre os membros da comunidade. A comida é tradicionalmente dividida entre o grupo. Diferentemente do mundo competitivo onde vivemos, cooperação é a palavra-chave que define aquela etnia.
Na área da saúde, a cultura !kung traz esperança para o mundo moderno. Na língua local, está armazenado um conhecimento milenar sobre as propriedades medicinais das plantas do Kalahari. Perder o dialeto !kung é como queimar uma enciclopédia com todo o conhecimento da medicina local. Vale lembrar que a aspirina, quinina e outras medicinas amplamente usadas originaram do conhecimento de povos tradicionais que vivem de maneira muito similar aos !Kungs.
Não muito longe do Kalahari, vivem os Himbas. Eles são um grupo pastoril do noroeste da Namíbia. A língua falada pelos Himbas é o otjihimba. Um fato curioso é a relação entre o dialeto e as cores que representam o mundo para aquela cultura. Diferente do português, no otjihimba existem apenas cinco termos básicos para nomear as cores. Para eles, não existe distinção entre as cores verde e azul, por exemplo. Imagina enxergar o mundo ao nosso redor em apenas cinco cores? A língua é certamente muito mais que a identidade de um povo. Ela é o instrumento que molda a nossa percepção, é o agente catalisador que transfere as ideias para o mundo físico e define o intelecto humano.
Ainda hoje, a maioria dos Himbas desconhece a sociedade moderna e poucos dominam o inglês, idioma oficial da Namíbia. Apesar dos desafios da região, tive a oportunidade de interagir com os locais durante a minha visita a uma aldeia Himba.
“Como é a vida na sua comunidade? Onde você vive também existem árvores e animais?”, perguntou um pastor de cabras, enquanto descansava ao lado de um arbusto.
Aquela pergunta parece não ter nexo nos olhos da sociedade urbana, mas ela carrega um valor simbólico. O rapaz buscava entender como as pessoas conseguem viver nas grandes cidades, longe da natureza e animais selvagens, algo incompreensível para a sua cultura.
Os Himbas e a sociedade moderna vivem em mundos opostos, sabemos pouco da maneira de viver uns dos outros. Talvez por essa falta de conhecimento, muitos categorizam eles como um povo primitivo.
“Os Himbas e outros grupos da região devem evoluir, falar inglês fluente e serem parte do nosso mundo”, disse um estrangeiro que vivia em Windhoek, capital da Namibia, dias depois da minha estadia com o grupo.
Para muitos, a extinção de línguas é sinônimo de sucesso e evolução da espécie humana.
Mas será que o caminho para a prosperidade está na visão etnocêntrica do ocidente, onde a cultura dos povos deve ser reduzida a apenas um idioma? O que será da música dos !Kungs e o mosaico cultural que representa toda a natureza humana caso suas palavras desaparecerem?
O dialeto otjihimba e o !kung são apenas duas das centenas de línguas que correm o risco de desaparecer nas próximas décadas. Apesar de tudo, esses povos transmitem uma mensagem universal: uma língua não é feita apenas de símbolos ou representações de palavras. Ela é o mecanismo que armazena toda a sabedoria ancestral, cultura e legado de um povo. Perder idiomas ou dialetos é destruir o maior patrimônio da humanidade. A cada dia, mais línguas desaparecem no caminho do tempo. Faltarão palavras para descrever o futuro que nos aguarda.
*Henrique Gobbi Hedler é bacharel em Sociologia pela Universidade da Califórnia em Berkeley, e trabalhador de ajuda humanitária, baseado na África Ocidental, em colaboração voluntária ao SRZD.
Fonte: SRZD