Entrevista: Guadelupe Terezinha Bertussi e o Anuário da Educação do México
Guadelupe Terezinha Bertussi fez sua graduação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e obteve sua formação de socióloga na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). Guadelupe é meio brasileira, meio mexicana. Melhor dito, completamente brasileira e completamente mexicana, feroz militante no México e comprometida militante no Brasil. No Brasil, ela é Guadelupe, Guade para os íntimos; no México, ela é Terezinha, melhor dito, Terezina, porque os mexicanos não conseguem pronunciar o som anasalado “nha”.
Guadalupe, gostaria que você falasse sobre a idéia do Anuário, que vem fazendo tanto sucesso no México e que me parece importante que seja divulgada no Brasil. Anuário, registro de um momento histórico, uma forma de compreender educação não do lugar da escola, mas de outros lugares, com base naqueles que estão acompanhando a sociedade com um radar, tarefa específica do jornalismo, principalmente dos que se ocupam, no México, fortemente com a educação, coisa que no Brasil a imprensa não dá tanta importância. Eu pergunto, Guadelupe, como surgiu a idéia de fazer o Anuário e o que efetivamente ele pretende ser?
Muito obrigada, Regina, pela oportunidade de compartilhar com os amigos no Brasil esse projeto que estou desenvolvendo no México. Aidéia do Anuário surgiu, em primeiro lugar, de minha condição de brasileira e mexicana. Fui me dando conta de que quando vou ao Brasil, sempre preocupada com a questão educativa, no pouco tempo de que disponho, quero ter uma visão do que está acontecendo no campo da educação brasileira, dos problemas, de como estão se movendo os sujeitos, as bibliografias que estão sendo utilizadas na formação desses sujeitos na universidade, tanto na graduação como na pós-graduação. Enfim, quero ter uma visão ampla e a mais completa possível desse panorama. Ao chegar, leio os jornais, sem muita persistência; passo os olhos, busco as notícias sobre educação, trato de ver um pouco a televisão, escuto as histórias ou pergunto aos membros da minha família que estão relacionados com a escola ou com a universidade, encontro meus amigos brasileiros. Vou às livrarias, compro livros que vou lendo no transcurso do ano, na medida em que posso. No entanto, sempre fica a sensação de incompletude – aquelas notícias não se completam e não consigo acompanhar o desenlace dos problemas. Na última vez que estive no Brasil, em janeiro, tomei conhecimento da greve da UERJ e, ao retornar ao México, pensei que a greve tivesse sido resolvida; ontem você me informou que a greve continua. Tenho o maior interesse em saber como têm ocorrido as discussões entre os sujeitos que estão envolvidos nessa greve – autoridades, trabalhadores, estudantes, governo. Porque uma greve prolongada numa universidade é muito complicado; é uma situação que deve preocupar a todos. Nós passamos por uma greve de nove meses na UNAM, greve que somente agora se sabe ter sido orquestrada pela direita. Naquele momento, nossa posição era defender com unhas e dentes a universidade pública, porque essa nos parecia ser a questão central. Em decorrência disso, ainda hoje estamos sofrendo os efeitos perniciosos daquela greve. Uma greve numa universidade pública, que dura tanto tempo, é lamentável, patético e até perigoso.
Essa é “minha situação” em relação ao Brasil. Em relação ao México, se passa alguma coisa parecida; moro no México há trinta anos, muitas coisas aconteceram antes que aqui chegasse e essas coisas são, pelo menos, do conhecimento dos acadêmicos da minha geração e das gerações anteriores à minha. E quando os intelectuais se referem a esses acontecimentos ou quando aparecem nos jornais referências a esses fatos, eu não tenho uma fonte imediata de consulta; fico sem completar informações-chave. Eu precisava naquele momento encontrar um artigo não muito amplo nem muito profundo, mas que me permitisse ter maiores informações sobre determinados acontecimentos. E isso não existe, o que me impede, por exemplo, de fazer uma pesquisa hierográfica nos jornais da época para completar aquelas informações. Esse vazio faz com que eu sempre tenha muitas preocupações e interesses pendurados em minhas preocupações acadêmicas, em relação ao Brasil e ao México. E é em virtude de minha condição brasileira e mexicana que foi crescendo em mim a idéia de fazer o Anuário, o que depois se reforçou precisamente a partir da greve da UNAM, quando fui juntando as informações que iam saindo nos jornais e nos periódicos. Inicialmente pretendia apenas fazer um artigo, mas, na medida em que o volume de informações foi crescendo, tive de juntar duas cadeiras que ficaram cheias de documentos. De tanto material coletado, o projeto de um artigo sobre a greve da UNAM virou projeto de um livro. O fato é que havia muito material para ser aproveitado mesmo em um livro. Olhava para aquela montanha de recortes de jornais e revistas e me perguntava: “O que vou fazer com tudo isso?”. Jogar fora me parecia absurdo, mas guardar tudo sem saber para que, também me parecia sem sentido. Agora que se criou a Comissão de Justiça sobre os crimes de 1968, todos vão aos jornais, às fontes da época, aparecem fotografias antigas nos jornais que estão dando cobertura a esse processo, o que deixava claro para mim a importância das fontes periodísticas. A angústia foi crescendo em mim. Botar fora tudo aquilo? É bem verdade que grande parte do material jornalístico daquele momento já aparecia nas monografias da UNAM, pois uma excelente parte da biblioteca é a hierográfica. Foi nesse momento que me surgiu de maneira mais clara a idéia de fazer o Anuário. Ou seja, fazer uma obra que recolhesse os temas, os problemas, as lutas, as políticas, os projetos de governo e todos os eventos educativos ou relacionados com o campo da educação que aparecessem nos jornais e que possibilitariam uma releitura crítica dos acontecimentos; a importância de registrar, guardar e oferecer meios de consulta imediata do material hierográfico. Juntei então as duas coisas: proteger o material, e, ao mesmo tempo, fazer uma releitura crítica. Com que objetivos? Com vários objetivos…
Começamos o trabalho referente ao ano de 2000, sem que tivéssemos tido a intenção de fazê-lo num determinado ano. Simplesmente começamos porque se apresentavam certas condições mínimas que nos favoreciam. Foi afortunado que tivéssemos começado nesse ano; por um lado, era o final de um governo e, por outro, era o início do governo do presidente Fox. Para o México, não se tratava simplesmente de uma troca de governo, como poderia ser em outro país; significou não só o final de um período de 70 anos da hegemonia de um grupo, mas também o início de uma etapa de governos que esperamos que venham a ser alternativos, no sentido de que outras forças políticas constituídas por setores progressistas possam desenvolver programas mais adequados às necessidades do país. Na crônica do ano zero, e nos reservamos o direito de escrever a crônica de cada ano, estabelecemos de maneira muito clara quais eram os objetivos do Anuário: oferecer ensaios que analisam os principais problemas, propostas, realizações, sucessos e fracassos que o sistema educativo vem enfrentando nos últimos anos, e que tenham sido registrados nas notícias publicadas pelos principais periódicos do país; possibilitar uma releitura independente, feita por especialistas de distintas instituições, dos conteúdos das referidas notícias; oferecer aos políticos, funcionários e acadêmicos interessados na educação a possibilidade de analisar criticamente as políticas oficiais e os papéis do Estado, no que se refere à educação e ao projeto de nação pretendido; divulgar o trabalho periodístico e acadêmico referente às questões educativas e oferecê-lo à sociedade; integrar saberes dispersos; recuperar o sentido histórico e fortalecer a memória histórica da educação nacional, presente desde a perspectiva da complexidade tecida permanentemente e construída cotidianamente.
Para realizar objetivos tão ambiciosos, como você revela, foi necessário criar uma metodologia. Pergunto: como isso foi se organizando? Acredito que não tenha sido como numa iluminação repentina; há de ter sido um processo. Gostaria que você falasse como essa idéia foi se materializando e se transformando numa metodologia de trabalho que possibilitou ser lançado o Anuário do ano 2000, em seguida o de 2001 e agora o de 2002. Fale sobre o processo de fazer, porque afinal de contas, nós estamos nos dirigindo para um público bastante amplo, não apenas de pesquisadores brasileiros como de pessoas que pensam o mundo, a sociedade e, por conseqüência e inevitavelmente, a educação. Como aparece a educação para a sociedade mais ampla, o que o jornalismo apresenta à sociedade como questões importantes sobre a educação; como o jornal faz, ou não, uma ponte do universo tantas vezes fechado que é o da academia e o universo de seus leitores. Fale sobre essa metodologia, que me parece muito importante para todos os nossos colegas.
Tenho que destacar o fato de nossa proposta, um Anuário, vir ocupar um espaço que estava posto mas não ocupado. Dei-me conta que a proposta tinha uma originalidade e uma particularidade tal que eu não podia chegar e dizer simplesmente: “Eu vou fazer isso”. Não havia nada parecido com o que eu pretendia fazer e me dei conta que isso dificultava, por exemplo, conseguir apoios. Sim, porque quando se chega com uma idéia completamente original e insólita, é difícil acreditarem nela. Essa foi a situação que no início enfrentei. Vender uma idéia inédita para quem quer ver para crer. Então pensei: “Vou fazer isso porque estou convencida da possibilidade de fazer. Sei que o primeiro ano vai ser muito difícil. Quando tiver o primeiro exemplar, talvez as portas comecem a se abrir”. Comecei a fazer o trabalho. Primeiro fiz a assinatura de todos os jornais, para recebê-los na minha casa. Em seguida, convidei algumas alunas da graduação para trabalharem como ajudantes. Perguntei quanto queriam ganhar para fazer o trabalho, que previa umas quatro horas por dia. Me responderam ser suficiente que lhes pagasse o transporte e um lanche. Passei a pagar o que correspondia a 20 dólares para cada uma, pelo trabalho de todas as manhãs, cinco dias por semana. Com esse recurso, de meu bolso, pude pagar, por semana, 80 dólares para as alunas/colaboradoras, e cobrir os custos das assinaturas, fotocópias e outras coisas que pudessem surgir. Iniciamos assim, na cozinha da minha casa, primeiro lendo os jornais, identificando, selecionando, recortando e classificando as notícias por tema. Trabalhamos dessa forma durante todo o ano, quando pude contratar uma pessoa para digitar os títulos das notícias já agrupadas em cada pasta.
Quem pagava?
Sempre eu, do meu bolso. Na metade do segundo semestre, quando já tínhamos os arquivos, com muitas pastas e muitas notícias organizadas por dia e por mês, começamos a carregar esses arquivos para a reitoria da Universidade Pedagógica Nacional. A reitora, Sílvia Ortega, me concedeu uma entrevista. Chegando em sua sala, colocamos aquelas grandes caixas em cima da mesa, abrimos e fomos mostrando o material. Ela ficou absolutamente surpresa. Conto isso porque depois ela esteve presente como comentarista do Anuário de 2001 e, em sua apresentação, relatou o que sentiu ao ver aquelas caixas com todo aquele trabalho: “Essa mulher está louca e esse trabalho não vai servir para nada”. Naquele momento, quando já estava saindo o segundo Anuário, ela se deu conta da importância do trabalho. E disse: “Só uma pessoa que vive a situação da Guadelupe Terezinha podia ter essa idéia. É a situação que ela vive que a fez perceber essa necessidade e esse espaço”. Aí está o valor e o respeito à diferença, pois ela enriquece a todos.
Porque a diferença revela o que o semelhante esconde.
Eu mesma fiquei surpresa me achando meio louca, pois somente a um louco ocorre fazer um trabalho desses. E, por outro lado, me perguntava para que ele realmente serviria. O trabalho, até então artesanal, cavernário do ponto de vista de construção do conhecimento, passou das cavernas para a eletrônica. Demos esse salto. E foi a própria reitora quem compreendeu a extensão e a importância do que estávamos fazendo, ao afirmar em público que para ela era importantíssimo poder encontrar no Anuário, por exemplo, um artigo de alguém, especialista em determinado tema. No ano passado, apresentando o Anuário na Feira Internacional do Livro de Guadalajara, presente como comentarista, o fundador da Universidade Pedagógica Nacional, ex-reitor e também ex-ministro da educação, disse: “Recomendo amplamente esse trabalho. Como ministro da educação teria me servido muito contar, não com um ou dois, mas com dez ou doze anuários; teria facilitado muito meu trabalho”.
Silvia Ortega e o ex-ministro, potenciais usuários do Anuário, responderam sobre sua importância. E para quem mais? Para nós pesquisadores, para nós professores que formamos sujeitos no campo da educação, para os que estão em postos de gestão, para quem quer fazer um trabalho de intervenção e, sem dúvida, para os políticos. E já estamos vendo como apenas os dois volumes disponíveis estão sendo e podem ser úteis a tanta gente. Estamos vendo sua utilidade, exatamente o que pretendíamos: que servisse de instrumento para muitas ações e que cumprisse com o objetivo de ser o registro da memória escrita. Isso para nós é muito importante, porque vivemos em uma sociedade dominada pela cultura da imagem, em que a memória histórica parece estar sendo relegada, ou pelo menos não está tendo o destaque que deveria ter. A memória histórica está sendo diluída como uma nuvem. No entanto, é impossível entender o presente e pensar o futuro quando se apaga a memória histórica. Além do mais, numa sociedade como a mexicana, precisamos lutar muito pela democratização em várias esferas, pois tivemos um partido no poder durante 70 anos, que, apesar de tudo, fez coisas válidas. Com Foucault, temos de reconhecer o poder não somente em seu aspecto negativo, mas que, ainda que não seja positivo, também faz coisas positivas. Não podemos desconhecer que o país se desenvolveu embora se caracterizasse por uma cultura muito autoritária e pouco amistosa a práticas transparentes. Estamos vendo a dificuldade de trabalhar com os crimes de 1968. A dificuldade de políticas claras e a gestão do governo em relação a fatos passados, tudo isso ainda é muito difícil. Esta é uma das justificativas para o Anuário: propiciar espaços transparentes referentes à questão educativa. Por quê? Porque as notícias trazem informações muito variadas, nem sempre possibilitando análises da conjuntura. Queremos contribuir para a transparência, para os processos de democratização dessa sociedade.
Retornemos à questão da metodologia. Ficou claro ter sido por necessidade de trabalho, e não por opção anterior, que foi sendo desenvolvida determinada metodologia. Foi o processo de trabalho que os levou a romper com uma lógica histórica na pesquisa, ou seja: primeiro se define a metodologia a ser utilizada, depois vem a pesquisa propriamente. A partir da situação concreta enfrentada, vocês foram obrigados a mudar o enfoque. Capto no seu relato e no resultado do trabalho que a metodologia foi se construindo com base nos desafios de uma situação absolutamente nova, sem antecedentes históricos e, portanto, sem amarras. Quero destacar que, além de toda a importância do Anuário, há um aspecto que interessa especialmente aos pesquisadores: a questão metodológica. Você mexe com cânones, com certezas, com verdades até então consideradas definitivas que impregnam a academia e que fazem com que cada aluno novo que pretende tornar pesquisador primeiro tenha de definir a metodologia, para depois se pôr em campo para pesquisar. Mexe com isso e deixa claro que, quando se pesquisa algo absolutamente novo e que pretende o novo, tem também de criar o novo nesse caminho metodológico para chegar ao resultado pretendido.
É fantástico que você tenha percebido isso, porque toda a nossa equipe tem bem claro o que você acaba de dizer. Inclusive nos colocamos na corrente internacional denominada história do presente, deriada das perspectivas foucautianas. Hoje nos reconhecemos como parte dessa vertente acadêmica e teórica.
A questão do novo na produção do conhecimento me faz recordar a situação que vivemos ao constatar como essa perspectiva gera o entusiasmo e o compromisso das pessoas. Trabalhamos como loucos e nossos colegas na universidade diziam: “Olha, vocês são loucos; não queremos trabalhar com vocês, porque trabalham demais”. Trabalhávamos todos os sábados e domingos e também nas férias. E não é que fôssemos workaddicted; fomos tomados pela emo- ção do novo. Agora mesmo você me viu telefonando para o Roberto vir almoçar contigo, usando o celular, porque o outro telefone dele está sempre ocupado na Internet, pesquisando os jornais. Hoje é sábado e seguramente ele está fazendo isso desde as seis horas da manhã. Participar da construção do novo, para nós, se coloca como uma situação que estimula e emociona, e nos faz repensar inclusive sobre a nossa formação. Fomos formados nessa tradição de que se deve ter um método, com etapas pré-definidas, e que se o método não é seguido rigidamente o resultado do trabalho fica comprometido. Essa rígida formação nos dificulta enfrentar situações como a que nos deparamos; somos a todo o momento desafiados a organizar, embora não sabendo a priori como fazer. Não sabemos como fazer antes de começar a fazer. E nossa atitude é contagiosa: nesse momento temos um grupo de oito estudantes trabalhando conosco e outros quatro que gostaram tanto do trabalho que pediram para continuar pelo menos uma vez por semana. Há ainda outros quatro que não estão prontos para o estágio por não terem cumprido os 70% do currículo, mas que, pela divulgação do projeto, pediram para serem incorporados. Na medida das possibilidades, vêm trabalhar conosco. No caso de dois deles, que são muito pobres, como a maioria dos estudantes de nossa universidade, vivem de vender doces no cinema, contribuindo para a economia familiar, vão à aula, fazem o estágio e, no tempo “que lhes sobra”, vêm trabalhar conosco.
Eu não posso deixar de nesse momento interferir, Guadelupe, e sabe por quê? É que seu relato põe por terra a acusação de que os jovens são alienados, que se preocupam apenas com o aqui e o agora, com o prazer, e com a resolução de problemas do cotidiano, não sendo capazes de se comprometer com alguma coisa maior. Você mostra que quando o projeto tem um sentido forte, agrega, compromete e faz com que as pessoas, sejam jovens ou não, dêem o melhor de si. E é por isso que vocês foram chamados de loucos, loucos no melhor sentido da loucura, loucos por serem capazes de se jogar no trabalho e recuperar do trabalho o seu sentido mais profundo, o sentido da vida, pois, que eu saiba, a única forma de se estar efetivamente ligado com a vida é através do sentido mais profundo do trabalho. Vocês recuperam o verdadeiro sentido do trabalho, religando-o à vida. E é dessa beleza que você acaba de relatar que eu não podia deixar de falar.
Efetivamente. Nesse sentido, outras duas pessoas que seguem trabalhando depois que já cumpriram o seu período de estágio, elas dão aulas numa escola privada primária, disseram: “Trabalhando aqui, descobrimos a dimensão do que estamos fazendo”. No caso, não tínhamos dado conta, por exemplo, da questão do livro didático, que no México tem 52 anos e é único para todos. Elas mesmas foram educadas com o livro de textos, mas como profissionais da educação, não o tinham olhado criticamente, com curiosidade e com interesse. Agora que seu olhar se aguçou e seu compromisso se revelou, uma delas pediu o livro de texto emprestado de colegas, para observar melhor o que ele traz. A outra solicitou cópia do programa realizado numa escola primária, para ajudar uma colega que está na pós-graduação. Preparamos um pacote com as informações, pensando que poderia interessar também para outros alunos. Esse é um reflexo do que você acaba de comentar. O entusiasmo é tão contaminador que até os namorados das meninas, às vezes cursando engenharia na UNAM, ou administração de empresas em outra universidade, se interessam e querem trabalhar no projeto. Temos tarefas para os novos que se incorporam. Como se pode ver no tomo 2 do Anuário do ano de 2000/2001, nele estão os nomes de todos e na página dos agradecimentos, que escrevo, também estão os nomes de cada um dos novos colaboradores, porque o mínimo que se pode fazer é reconhecer sua boa vontade, seu interesse e seu entusiasmo.
Voltando para a questão do método, realmente nos defrontamos com essa questão e temos sempre, sobre a mesa de discussão, duas questões que apresentamos aos novos: “Para nós é importante, em primeiro lugar, que as pessoas saibam dizer não sei, e, em segundo lugar, compreender que nesse espaço podemos colocar: olha não sei isso”. Essa é uma das questões fundamentais: a pessoa que não quer, ou não sabe dizer que não sabe, não pode trabalhar conosco. Assim, essa pessoa, depois de admitir que não sabe, tem de enfrentar o problema: “Como é que eu resolvo isso?”. Ela tem de propor uma solução, não importa qual seja, porque tudo é discutido, é transparente, é posto sobre a mesa. O importante para nós é que cada um ou uma de nós seja capaz de pensar e propor soluções para os problemas que surgem, e surgem problemas a todo o tempo. Isso implica uma atitude de curiosidade, de valentia ante o desconhecido, não somente de identificar mas de reconhecer que pode propor uma alternativa, ainda que não seja a mais adequada. O que importa é a curiosidade, o compromisso e a coragem. É interessante que, no começo, as pessoas não estão acostumadas a assumir essa atitude, porque normalmente ao se enfrentar um problema trata-se de resolvê-lo e parece que não há mais problemas.
Sobretudo, porque vivemos num mundo em que as pessoas têm de saber e mostrar que sabem, e tudo que revele dúvida quanto ao saber é considerado não-saber, portanto erro. Vivemos numa sociedade que precisa não só impedir o erro, mas punir o erro, o que dificulta a qualquer pessoa admitir que não sabe.
Se sabemos tudo, como construir conhecimentos novos, nesse caso inéditos? Como se diria em espanhol, estamos desbrozando o terreno, desbravando em português. Assim, quando os meninos chegam, fazemos uma entrevista e em geral nosso comentário é: “Vamos ter que educá-los, porque estão mal educados. Chegam pensando que sabem tudo”. Mas rapidamente mudam. Estamos convencidos de que a maioria dos jovens, apesar de terem sido criados na cultura do espetáculo, são resgatáveis, porque essa cultura é avassaladora, mas sempre fica uma parte que pode vir a ser trabalhada.
A cultura do espetáculo, do superficial, acaba sempre insatisfazendo, falta sempre alguma coisa…
Essa é a nossa esperança como educadores. Apostamos nisso. Voltando uma vez mais à questão da metodologia, fomos nos dando conta de que trabalhamos com um objeto particular. O que é dito muitas vezes: o objeto está pedindo o método, o objeto está pedindo a teoria, não é só isso. Está pedindo uma parte de muitos métodos que temos à nossa disposição, que precisamos juntar e reinventar. Temos que tomar a metodologia já conhecida, passá-la por uma peneira, separar daquilo que conhecíamos o que nos servirá; servirá apenas um pouco, porque nosso objeto está pedindo isso e muito mais. Em relação às teorias acontece a mesma coisa. Temos as teorias, que nos permitem ler a realidade de determinada maneira; isso é muito importante. Sabemos o trabalho que os estudantes nos dão. Temos de formá-los teoricamente para que, com a teoria, possam entender as perspectivas com as quais estamos trabalhando, porque essa perspectiva teórica está relacionada com a nossa vida acadêmica e com a nossa vida em si. Assim também olhamos as teorias e nos referimos, buscamos e concluímos: “Vai até aqui, logo posso me valer dela”. O exemplo de Bourdieu é oportuno, depois retornarei a ele. Isso para nós é o pão nosso de cada dia e a ele estamos permanentemente sensíveis. Por exemplo, não sei se você escutou o que falei agora com o Roberto pelo telefone: eu disse que vou lhe mostrar uns livros, nos quais encontrei uma solução para alguns problemas que estamos enfrentando.
É como se vocês fizessem um trabalho de carpintaria ou de garimpagem, um trabalho de fuçar, de como um radar ir se apropriando do que se mostra o melhor caminho naquele momento, porque lá na frente, já pode ser outro. Não posso deixar de dizer do meu encantamento com o que vocês estão construindo: uma teoria nova com base na teoria de que dispomos, mas que, isolada, não dá conta da complexidade do que enfrentam. Assim, inevitavelmente, vocês são obrigados a retomar a teoria com um outro olhar, o que exige “coragem epistemológica”: buscar uma nova teoria que dê conta da complexidade do que se coloca como desafio. Ousar dizer que para o que se coloca a partir de agora, essa teoria já não serve e é preciso procurar/criar outra teoria. Essa abertura e coragem é que me parece um dos aspectos mais ricos do trabalho que vocês realizam. Você está me falando do trabalho em si, mas também da construção, dos meios para realizá-lo. Além desses dois aspectos desse rico processo, você também me fala do processo de construção e reconstrução dos sujeitos pesquisadores. Esses três níveis se complementam e se articulam, porque não é novo apenas o resultado do trabalho, o Anuário; é nova também a metodologia que a prática levou a reconstruir nesse coletivo. Vocês vivem, na prática, o que Boaventura de Souza Santos afirma: quando se está pesquisando alguma questão, está também se pesquisando, quando se tenta compreender a realidade, inevitavelmente está se pondo a melhor se conhecer. É esse processo fascinante que me encanta no trabalho de vocês.
É uma satisfação, Regina, escutar o que você diz porque nós começamos com muita cautela e com pouco estardalhaço e sempre insistimos que precisamos manter uma atitude de humildade, o que às vezes é difícil. Nossos colegas, em sua maioria, crêem que um método rígido resolve tudo, porque na verdade a forma como o conhecimento se constrói e se distribui na sociedade produz sujeitos que querem ter certezas. Nada melhor para um estudante assim formado do que ter uma receita, e com ela ter sucesso. E, para nós, nada pior do que um estudante que busca receitas. Enfrentamos isso todos os dias, e é importantíssimo manter uma atitude de humildade. Os estudantes vêem que nossos autores convidados, grandes figuras do conhecimento do nosso país, nos dão lições de humildade. Vendo como eles atuam, aprendem ser essa a atitude que devemos ter, pois não sabemos tudo e a cada dia nos damos conta de sabermos menos, que temos que revisar nossos conhecimentos ante o objeto que estamos trabalhando. Vêem também alguns autores ainda jovens tendo atitudes soberbas. Afinal, não somos tão loucos; outros nos entendem, às vezes até melhor do que nós mesmos. Para nós isso é muito gratificante; eu te agradeço, e nossos colegas vão ficar muito contentes ao verem o resultado dessa entrevista, de compreenderem como você e alguns outros percebem como trabalhamos. Colegas nossos da universidade nos criticam: “O que é isso de história do presente?”. Decidimos não entrar nessas discussões; vamos fazer oito, nove, dez Anuários. O resultado do nosso trabalho falará por nós. Vale observar que, quando a universidade fez uma convocatória para o registro dos projetos de pesquisa, enviamos o nosso e o comitê de avaliação, constituído por membros da universidade, que se supõe ser a elite pensante no campo da educação do nosso país, no-lo devolveu, dizendo que o que fazemos não é pesquisa. Mas isso nada significou para nós. Continuamos a fazer o nosso trabalho. Já no ano anterior, com relação a uma solicitação de apoio a outra instituição, pois precisávamos muito de recursos financeiros, nos foi respondido que o projeto era ótimo, maravilhoso, interessantíssimo, mas não era prioritário.
Mais uma vez preciso intervir. Quando você se apresenta para pedir verbas para uma pesquisa, entra num circuito em que as verbas são poucas para muitos solicitantes. Se lhe derem a verba, ameaçam o seu próprio lugar, que é o lugar das certezas. Se aceitarem alguém que apresenta uma pesquisa numa perspectiva nova, como a de vocês, inevitavelmente põem em questão aquelas verdades definitivas, reconhecidas, sobre as quais não é esperado ser posta qualquer dúvida. Ainda que não seja explicitado, para um bom leitor está claro: vocês põem em dúvida as certezas deles. E é por isso que lhes são negadas verbas. Pois, além de todas as possibilidades da pesquisa, ela põe em dúvida as certezas, e sem se apresentar como oponente, o que é mais ameaçador.
Temos consciência disso e, nesse sentido, somos pretensiosos. Queremos, a médio e longo prazo, influir na forma de produção do conhecimento científico no campo da educação no México e também na forma como se constroem as notícias, porque as notícias produzem a realidade. Parece que o que não é nomeado, não existe, não está, não é, e nós queremos mostrar que, além da palavra nomeada por um jornalista ou por uma empresa de divulgação de notícias, existe um outro mundo, muito mais amplo e muito mais complexo e que deve ser considerado. Um exemplo: o último capítulo do Anuário, sempre denominado “A educação e outras fontes”, no qual apresentamos uma bibliografia dos livros publicados e de todas as teses sobre educação defendidas nas instituições de educação superior da cidade do México. Esse material é comentado por especialistas da área. Estamos vendo, com dois anos apenas de trabalho, que, pelos títulos, as teses pouco têm a ver com as pesquisas que estão sendo orientadas por acadêmicos. Há uma grande desvinculação, um abismo entre o que pensa e o que faz a academia na área de educação e o que, do campo educativo, aparece nos jornais, o que é, assim mesmo, apenas uma parte da realidade, pois há outra parte que não aparece. Aí se vê a distância entre esses dois mundos; queremos contribuir para que essa distância diminua. Tanto é assim que temos estudantes conosco, fazendo teses, e lhes oferecemos um baú cheio de temas e até entregamos a bibliografia para quem queira começar a estudar e a pesquisar. Na semana passada mesmo veio uma moça querendo trabalhar “educação superior privada” e nós lhe entregamos 400 notícias sobre esse tema.
Isso está relacionado com a nossa metodologia de trabalho; passamos daquele trabalho inicialmente artesanal, para um trabalho que utiliza todos os recursos que a eletrônica nos propicia. Hoje estamos trabalhando diretamente com os jornais on-line, os revisamos diariamente e selecionamos as notícias sobre educação, incorporadas diretamente ao nosso banco de dados. Num momento intermediário, uma das nossas estudantes as formata, de tal sorte que as notícias entram todas arrumadinhas no banco de dados, com um cabeçalho indicando o dia, a página etc. Esse procedimento permitiu mudar o processo de organização do material. Todos nós que estamos trabalhando no projeto nos reunimos todas as sextas-feiras, no que denominamos “mesa de imprensa”, para revisar 30 jornais de todo o país. Atualmente estamos preparando nossa página eletrônica, na qual já está desenhada a informação. O que nós queremos é, por exemplo, que às doze horas se aperte um botão do computador e apareçam todas as notícias sobre educação, publicadas em todos os jornais do país.
Recentemente dividimos o país em regiões e estivemos um tempo acompanhando os jornais das diferentes capitais, para ver se eles se atualizam todos os dias, porque alguns se atualizam a cada semana, outros demoram mais tempo, outros ainda se atualizam por um período e desaparecem. Enfim, logramos reunir um bom número de jornais que estão permanentemente on-line, inclusive os que já têm histórico, isto é, podem ser consultados nos Anuários dos anos anteriores. Pretendemos oferecer à população mexicana e mundial – sem ser pretensiosa – a possibilidade de acessar uma página, que já está muito bem desenhada, de tal sorte que nela possa ser encontrado o índice dos jornais com os títulos das notícias. Se alguém quiser ler uma notícia, sem precisar sobrecarregar seu computador, abre direto no que lhe interessa. É muito prático e estou muito contente com o design a que chegamos. Esse é o trabalho que fazemos às sextas-feiras, quando todos contam quais as notícias que permaneceram da semana anterior e indicam os problemas ou as questões novas que apareceram.
Não fosse assim não seria a história do presente.
Exatamente. Essa metodologia permite identificar os problemas que aparecem em cada região do país e distinguir problemas locais, regionais e nacionais. Já observamos haver problemas apenas regionais, o que nos levou a construir um atlas dos problemas educativos de cada região. Fomos ao Instituto Nacional de Geografia e Estatística, conseguimos um mapa de três metros e meio, colocamos na parede e estamos pensando em botar aqueles imãs, que vocês têm no Brasil, mas aqui não temos, para poder fazer as marcações; não podemos usar alfinetes porque estragaria o mapa. Estamos classificando os problemas. E assim vamos poder também oferecer um atlas de problemas.
Bem, como eu estava dizendo, todas as sextas-feiras fazemos as “mesas de imprensa”. Isso significa que vamos construindo um panorama permanente dos problemas, dos temas que estão postos, alguns que denominamos emergentes, outros que aparecem e desaparecem, e temas que aparecem como problemas apenas em duas notícias mas que consideramos interessante manter. No final do ano, temos o índice temático do Anuário, discutido semana após semana. Por exemplo, no Anuário de 2002, no qual estamos trabalhando agora, até a metade do ano tínhamos 60 temas ou problemas, que consideramos diferentes. Fomos depurando e ficaram 32. Com esse material, organizamos o índice temático e imprimimos todas as notícias que estão no banco de dados, de acordo com os temas ou problemas. Identificamos os especialistas nos temas selecionados e lhes solicitamos fazer uma releitura crítica das notas, mas, sobretudo, elaborar um artigo, destacando o que as notícias dos jornais não deram conta e articulando as informações. Nossos autores podem e devem, em princípio, mas não necessariamente, usar a informação hierográfica, citando as fontes que queiram. Esse é um trabalho que eles nos entregam na forma de ensaio, podendo ter entre 15 e 20 páginas.
Quem os paga?
Essa é a grande e boa pergunta. Todos somos mal pagos, e mais que isso, estamos acostumados a ser mal pagos, pelo compromisso e pelo amor que temos por nosso trabalho. Já é como natural, não? Ou como diz um colega: “Que pena que me pagam mal, porque eu gosto muito de fazer o que eu faço e o faço muito bem. Seria muito bom que me pagassem muito, mas, não me pagam e eu continuo trabalhando bem”. Nossos autores são esse tipo de gente e lhes dizemos: “Olha, a gente paga em espécie; pagamos as regalias”. Entregamos para cada autor dois exemplares da obra e depois fazemos uma reunião, uma feijoada brasileira, nos reunimos todos, passamos muito bem. Esse é o pagamento que se faz. Com os ensaios que eles nos enviam, fazemos a revisão de estilo e correções, do que participo, porque conheço os conteúdos, com um especialista e, em seguida, enviamos para os companheiros do periódico La Jornada, poetas e desenhistas gráficos, que se encarregam da edição. Acompanhamos também essa fase, inclusive fazendo a revisão das provas.
Finalmente sai o Anuário. Fazemos as apresentações, das quais participam também os autores. Pode parecer inusitado, porque habitualmente se convida para comentar uma obra autores que não fazem parte da obra. No Anuário, também convidamos os autores, porque eles podem narrar sua experiência, como enfrentaram a hierografia, tarefa que em geral não fazemos – fazemos pesquisa de campo, pesquisa documental, raramente trabalhamos com as fontes hierográficas, o que é sempre um desafio a se enfrentar.
Voltemos à questão metodológica, quando se colocou a questão do novo. Temos uma formação que, por mais atentos a uma vigilância epistemológica, nos faz pensar o educativo desde a perspectiva oficial. A pergunta que se coloca é: “Que campo educativo é o sistema educativo? É aquilo que se diz oficialmente que é, os programas, os conteúdos, as práticas?”. No entanto, olhando as notícias, inicialmente ficamos perplexos, pois encontramos artigos sobre educação em páginas sociais, da polícia, da cultura, dos museus, das exposições, em inúmeros lugares, tanto que até reclamávamos dos jornais não terem uma página sobre educação. Claro que para nós seria muito fácil irmos a essa página e termos tudo à mão. Estamos acostumados a encontrar tudo organizado para o leitor, e nos irritava essa multiplicidade de lugares onde apareciam notícias sobre educação, o que nos obrigava a passear por todo jornal para encontrar as notícias. Fomos dando conta da multiplicidade do educativo, tanto que, por exemplo, o Anuário de 2001, tem um subtítulo “Que demônio é a educação”, quase como uma denúncia dessa situação. Agora, avançamos no conhecimento e na reflexão com base na prática e descobrimos que aquele nosso desconcerto era resultante de nossa visão inicial: também é educativo a violência na escola, violência que inclui professores, a violência simbólica e física, abusos sexuais, problemas de drogas, problemas dos pais, mas também eventos artísticos, e também reuniões dos vizinhos, das colônias, das escolas. Ou seja, o campo educativo é tudo isso que o discurso oficial permanentemente recorta do tema disciplina na escola. “A escola não é indisciplinada; o problema de violência na escola não é um problema isolado, a escola é o lugar do mundo feliz, as crianças não sofrem nenhum tipo de violência, ainda mais falar que os professores são violentos com os meninos, é um ou outro professor que abusa sexualmente das crianças, não, imagine, não vamos falar nisso.” Mas isso sempre houve; a escola é isso também. Essas manifestações têm variado através dos tempos, porque as formas de integração da sociedade e da escola são particulares ao tempo e ao espaço, mas sempre existiram.
Existiam, mas não eram vistas, porque assim é o cotidiano, é a vida. Como só se trabalhava no nível macro e no nível da idealização, não se via. Como afirma Von Foerster, “só se vê aquilo que se compreende”, portanto não se via.
O que compreendemos e vemos existe, o que não compreendemos não vemos e portanto não existe, não queremos falar nisso. Em 2001, um dos artigos mais amplos do Anuário e que nos abriu a perspectiva da magnitude do problema foi a questão da violência nas escolas. Conseguimos um autor que fez uma releitura foucautiana desse tema e agrupou o problema da violência pelos níveis do sistema educativo. Vimos que há diferença desde o pré-escolar até a pós-graduação, e todos os agentes cometem violência; há todo o tipo de agressor e todo o tipo de vítima no sistema escolar. Esse sistema e diferentes instituições estão construídos para tentar resolver o problema, embora só o escondam. Queremos discutir isso, e estamos oferecendo a possibilidade de construir uma leitura diferente sobre velhos problemas e somos os primeiros beneficiados dela. Avançamos com base na pergunta “Que diabos é a educação?”. Agora contestamos essa pergunta, porque estávamos ainda dentro da mirada oficial do cotidiano escolar, em que o cotidiano é o certinho. O certinho é apenas uma parte e, às vezes, dependendo do momento e do lugar da escola. Esse momento é a menor parte, porque a escola está atravessada por narcotráfico; os narcotraficantes entram nas escolas no norte do país, seqüestram os professores, ou vêm e golpeiam os professores, fecham as escolas. Onde ficou o certinho, onde ficou aquela partezinha do educativo que é a prática, o conteúdo, os programas, os resultados, se a escola está atravessada por um outro evento que a impede de realizá-la? Ao nos deparamos com essa questão, voltamos novamente a pensar na metodologia. Em primeiro lugar, somos como uma espécie de radar, vamos vendo os problemas que às vezes são muito maiores do que uma pequena notícia de jornal. Por exemplo, no ano passado, saiu uma nota sobre medicamentos que estão sendo dados para as crianças classificadas como superativas. No entanto, encontramos crianças apenas dopadas, crianças que não se enquadram nas normas da escola. A escola não inventou uma pedagogia para elas, limitando-se a construir artifícios para trazê-las à normalidade. Claro, isso não foi tema de reflexão no Anuário de 2001, mas mantivemos a preocupação sobre essa questão, o que abriu espaço para vermos outros problemas graves de doenças entre as crianças. Por exemplo, no norte, numa área em que há material radioativo, crianças estão com câncer. Nesse final de semana, a revista Processo divulgou estar aumentando muito o suicídio entre crianças de nove a doze anos, pré-adolescentes, e de doze a dezesseis, em algumas áreas do país. Começamos a fazer perguntas com base nos fatos e não somos empiristas. Essa é a nossa forma de construir o conhecimento: partimos da realidade para melhor entendêla. Parece ser muito fácil fazer perguntas sobre a realidade, mas fazer perguntas corretas é muito difícil, e respondê-las, mais ainda.
O mais difícil não é fazer as perguntas corretas. Trazemos tantas explicações para a realidade que precisamos ter a ousadia de fazer perguntas novas, talvez corretas, na medida em que as antigas não satisfazem. Precisamos ter “coragem epistemológica” e coragem inclusive de enfrentar aqueles que vão nos chamar de empiristas.
Depois de fazer esse trabalho tão intenso, temos coragem para levantar de madrugada e trabalhar muitas horas. E, se temos coragem para isso, teremos coragem para muito mais. Estamos dispostos a nos expor e não temos vergonha. Esperamos que muitos sensatamente nos digam que talvez as coisas sejam por aqui ou sejam por lá. Estamos desejosos de que nos façam esse tipo de observação, porque exatamente vemos que não damos conta de tudo. Por exemplo, essa questão de problemas regionais. Estamos agora com essa nota que veio sobre o suicídio. Aí está a informação, as fontes, e, com base nisso, vamos fazer uma pesquisa. Entendemos ser essa a forma de produzir conhecimento.
Ou até abrir para que outros o façam. Vocês não vão dar conta de fazer todas as pesquisas que esse imenso material vai revelando, a necessidade de ser mais bem compreendido.
Temos consciência disso e por isso dissemos aos estudantes: “Olha, temos um baú, cheio de temas e de problemas e até a hierografia, pelo amor de Deus venham”. Se fizerem isso, vale a pena todo o esforço e o sacrifício que fazemos para colocar à disposição deles as informações. Se isso acontece, nós nos realizamos, e podemos ver como vai se constituindo esse conhecimento e essa permanente revisão do que sabemos, do que pensamos que sabemos e do que se diz sobre a questão educativa. As notícias nos colocam essa perspectiva. É muito interessante o que acontece quando os artigos retornam, e os lemos, os discutimos, os avaliamos e expomos como os compreendemos. Temos sempre muito respeito ao autor, pois ele tem total liberdade de fazer seu texto e não vai fazê-lo como gostaríamos. Apesar de termos uma leitura prévia de todas as notícias e de todos os campos e termos talvez outra perspectiva, respeitamos sua leitura, por ser um especialista. A primeira pergunta que fazemos é: “O que aprendemos nesse artigo? Por quê?”. Lemos as notícias, mas o especialista é quem está fazendo a releitura crítica. Por isso o convite aos autores, para virem conversar conosco. Eles vêm porque querem vir, em geral todos querem vir, e fazemos três perguntas, a primeira é: “Como é que o senhor se fez pesquisador?”. Porque temos conosco vinte estudantes e eles têm que ir aprendendo que não nascemos pesquisadores; demanda muito trabalho para se chegar a ser pesquisador. Cada autor narra sua trajetória para se fazer pesquisador. A segunda pergunta é: “Como você enfrentou a hierografia?”. E a terceira: “Como você construiu o discurso do seu artigo?”. Com base nessa informação, que é muito interessante, porque os autores chegam e contam, por exemplo: “Eu fui lendo as notícias e fui classificando na minha casa e fui botando em montinhos as notícias que tratavam das mesmas questões”. Ou seja, o trabalho de classificação é o primeiro passo para a construção de um trabalho científico; discriminar o diferente e o igual. Depois vão lendo os montinhos, nos quais descobrem poder haver, num mesmo tema, muitos problemas, não sendo possível abordar todos em 15 ou 20 páginas. Até por ser especialista, o autor em geral se limita a um tema, o que não quer dizer que outros temas não estejam presentes. Sempre temos surpresas, o que amplia a variedade; algumas expectativas são atendidas e mesmo superadas. Aí a alegria é geral.
No Anuário de 2001, um especialista que aceitou fazer um artigo sobre o problema do orçamento para as universidades públicas construiu uma explicação do processo de definição desse orçamento e as conseqüências imediatas desse processo. Ele escreve regularmente num jornal e é mais que um especialista: é um superespecialista. No entanto, se disse surpreso com o que pode inferir do material que lhe oferecemos. Organizou o material numa ordem que denominou de cinco estações, cinco momentos da definição do processo e da definição dos orçamentos das universidades públicas: como e quando começa a discussão, como se desenvolve, como se define o orçamento e, com base no que é decidido, como se define a revisão do contrato salarial, que acontece de janeiro a março no México. Decidido o que se aprova no Congresso no final do ano, já se sabe qual a margem de negociação que terão os sindicatos e quanto os nossos salários podem aumentar. Não adianta pedir aumento de 100%, se a universidade só vai poder dar 2%; os recursos que ela ganhou no orçamento inviabiliza tal aumento. Para nós foi muito interessante, desde logo, mas parece ter sido muito mais interessante para ele que escreve regularmente nos jornais e não tinha dado conta desse processo.
Mais interessante ainda para o sindicato, que, quando vai negociar, já sabe o seu limite.
Todos sabemos como é o processo e as margens de pressão que temos. Por exemplo, não adianta pressionar em janeiro e fevereiro, temos de pressionar em novembro, pois no início de dezembro está se definindo o orçamento e é esse o momento para se pressionar, porque depois a margem de negociação é mínima. Então veja a grande aportação que fez esse especialista, com base na informação importante para acadêmicos e especialistas, assim como para os estudantes que ficam na confusão de greve sim e greve não, para os pais dos estudantes e para uma grande parcela da população mexicana que está envolvida direta ou indiretamente no processo educativo. Não é uma extraordinária aportação? Temos essas surpresas e os autores mesmos se surpreendem ao descobrir uma dinâmica da realidade que temos vivido há anos como acadêmicos sem percebê-la e que esse trabalho trouxe à tona. Esse é um aspecto emocionante, vivenciado quando nos encontramos com os autores.
Temos ainda outra pretensão. De modo geral, estamos compartimentados, nas últimas décadas, como resultado das políticas de avaliação individual e da concorrência que se estabeleceu entre nós, pela pontuação de nosso trabalho. Por essa razão, ficamos fechados em nosso cubículo, trabalhando na frente de um computador, pensando nos pontos a serem atingidos, de modo que possamos atender às exigências das agências que nos avaliam. Aquela comunidade de pares que existia antes dessas misérias foram comprometidas e em muitos casos desapareceram. Esse é um dos desdobramentos de nosso projeto. Pretendemos voltar a construir um espaço de discussão e produção coletiva de conhecimentos. Ainda que as redes não estejam bem tecidas, pois só produzimos dois Anuários, já temos mais de 60 pesquisadores de alto nível comprometidos conosco; logo seremos 100. Temos projetos futuros de trabalhos coletivos. Esse ano estamos mandando o artigo de um autor para outros autores, convidando-os a participar, não para atacar o autor, mas para enriquecer a discussão. Esse processo é enriquecedor para os próprios autores. Um deles, ao ser entrevistado na Feira Internacional do Livro, afirmou: “Se eu não tivesse ido conversar com o pessoal do Anuário, meu artigo teria sido outro. Eles me fizeram perguntas que eu não me havia feito e por isso não tinha percebido outras dimensões da realidade”. Nossas perguntas decorriam de nossa leitura das notícias e aquele especialista havia se dado conta de que diferentes perguntas levam a diferentes visões.
Estamos sempre abertos a quem tem uma trajetória acadêmica e queira se comprometer com nosso projeto. A primeira coisa que pedimos é todos os dias ler os jornais com muita atenção, separando o que interessa à pesquisa. Se a pessoa aceita fazer isso ela fica, porque aceitou assumir a carga de trabalho que o projeto exige. Os colaboradores precisam compreender que, fazendo um Anuário, estamos fazendo uma história do presente. O banco de dados já no ano de 2000 continha 5.426 notícias; em 2001, chegamos a 10.000 e no ano de 2002, cerca de 15.000. Agora, em 2003, será muito mais, porque estamos trabalhando com todos os jornais do México.
E também porque vocês alargaram a visão. O que passou desapercebido no início, agora já não passa mais; vocês se tornaram capazes de ver muito mais, pela prática adquirida.
Claro. Temos o trabalho do Anuário, fazemos o banco de dados de todas as notícias e agora vai sair a nossa página da Internet, onde aparecerão, além das notícias de 2000, 2001 e 2002, as de 2003, que estão entrando. O Anuário completo poderá ser lido via Internet. Nas férias de agosto, vamos viabilizar um novo produto, que denominamos Notícias Educativas: uma vez por semana, talvez todo dia, editaremos as notícias e colocaremos na sala de espera da reitoria de nossa universidade. Pretendemos também fazer pesquisas pontuais sobre alguns problemas identificados. Digo pontuais por se tratar de pequenas pesquisas, diferentes das pesquisas de longa duração que fomos acostumadas a realizar.
Queremos ampliar notícias regionais, como a questão da violência na escola, para questões mais amplas, como por exemplo, educação alternativa que, nos últimos dois anos, tem aparecido no México. Assim foi com a proposta da educação média superior do Distrito Federal, ou seja, o pré-universitário, orientada para populações marginais. Os meninos entram para o exame de seleção na cidade do México e ficam todos os dias na escola. Outra proposta alternativa é a de algumas universidades indígenas, criadas com base em seus movimentos. A universidade tem que se mobilizar para resolver o problema das comunidades indígenas, recuperando a sua cultura, a sua história e a sua língua. Temos ainda, há alguns anos, um curso pré-universitário e alguns cursos de nível superior organizados pelo sindicato dos trabalhadores de uma cervejaria. A importância dessa iniciativa é ser dirigida pelo sindicato; teve início com uma pergunta que os trabalhadores começaram a se fazer: “Com esse processo de automação da produção que estamos vivendo, quem vai nos substituir e qual é o futuro dos nossos filhos?”.
Esses trabalhadores no México de hoje estão se fazendo as mesmas perguntas que os trabalhadores ingleses se fizeram na revolução industrial e, como na Inglaterra, também se organizaram para se educar e, assim, melhor enfrentarem esse problema.
Primeiro, fizeram um levantamento dos que haviam concluído ou não o curso primário; convocaram o serviço de educação a distância da Secretaria Municipal de Educação do Distrito Federal e conseguiram que todos concluíssem o primário. Em seguida, viram quem havia ou não terminado o curso secundário e os atenderam. Estão iniciando agora o pré-universitário e muitos já estão matriculados em cursos superiores. Esse sistema está vinculado à Secretaria Municipal, mas são os trabalhadores que geram e definem os conteúdos e tudo mais.
Consideramos importante recuperar essas três experiências, elas valem por si, mas também pela memória histórica: o processo de sua gestação, quais foram os atores e como se formaram e se formam, como iniciaram e como estão sendo realizadas atualmente. Daqui a 50 anos, encontraremos os planos, os programas e as histórias oficiais desses eventos, e queremos contar para além da história oficial. E ainda queremos fazer o Anuário Latino-americano. Os companheiros até fazem brincadeira com nosso movimento de expansão, dizendo que estamos planejando um Anuário Intergaláctico.
E, por último, pelo menos por enquanto, derivado dos projetos anteriores, pretendemos fazer boletins de conjuntura educativa. O que já fazemos incidentalmente, passaremos a fazer sistematicamente. Problemas e notícias que não sabemos como classificar e denominar, às vezes totalmente efêmeros mas lá estão a nos desafiar, as políticas e uma série de questões do cotidiano das escolas. Cotidiano Escolar é a denominação que daremos a essa parte dos problemas. O cotidiano que agora para nós, graças a vocês, é entendido como conhecimento social que aparece em todos os níveis do sistema educativo. Tenho que te dizer que o título Cotidiano Escolar foi inspirado no que vi no Programa de Pós-graduação da UFF, quando lá estive.
Mais uma vez retornamos ao problema do método e das técnicas. Fazemos uma resenha das notícias, agrupadas por temas, fazemos uma cronologia dos eventos, e depois, uma releitura analítica. Até aí, parecia que essa metodologia iria servir. Mas tivemos muita dificuldade para estabelecer os critérios da resenha. Podíamos ter aprendido com outros, mas, em nossa onipotência, perdemos muito tempo discutindo as características da resenha. Tivemos problemas, por exemplo, com os estudantes que, freqüentemente, não sabem escrever e, quando sabem, sua escrita é irregular. Outras vezes não destacam o problema principal, por lhes faltar a formação indispensável para a elaboração de uma boa resenha, tal como pretendemos que sejam as nossas. O resultado foi um resultado heterogêneo. Mesmo assim, produzimos 74 resenhas e, com esses pacotes que agora temos em mãos, resolvemos fazer mini-ensaios. Para isso criamos uma oficina de produção de ensaios: nos reunimos, cada um traz o seu texto, o lê, para em seguida ser discutido, sempre visando melhorá-lo. No entanto, as resenhas não serviram, o que nos deixou muito deprimidos, pois nos deram muito trabalho. Agora, quando tenho de fazer o meu ensaio, vou diretamente às notícias, já que a primeira experiência mostrou que as resenhas, tal como as fazíamos, não estavam servindo, por serem muito superficiais, por não identificarem o problema central ou, o que é pior, porque a metodologia utilizada não foi adequada. Daqui para a frente queremos que esses boletins de conjuntura educativa saiam regularmente.
Com que regularidade?
Essa é uma pergunta metodológica, porque se estamos trabalhando com a conjuntura, não podemos dizer a cada três, a cada quatro ou a cada cinco meses. Se se trata de uma conjuntura política, não podemos dar um corte segundo critérios meramente pragmáticos.
A questão da conjuntura é interessante porque é dinâmica. Como poderia, para atender a um cronograma, pretender dar uma parada no que é movimento permanente, logo mudança contínua? Como parar e fazer como uma “fotografia” da conjuntura, no momento de elaboração do boletim, sabendo de antemão que essa “fotografia” será sempre incipiente, porque, quando se faz a “fotografia”, pára-se, como se possível fosse, o movimento ininterrupto, já que a conjuntura é movimento permanente. É esse o paradoxo. Você está perseguindo o que é inapreensível, o que me parece fascinante.
Exato, essa é uma história imediata, a história do presente, é a notícia periodística. Então veja como se deu o exercício dos boletins de conjuntura do ano de 2000. Vai sair um livro com tudo, o que nos traz problemas do tipo teórico-metodológico. Enfrentamos, primeiro, o problema de agrupar os temas. O que é um tema para nós? O que é um problema? O que é emergente? O que é marginal, dentro do discurso oficial? E o que é permanente? Isso foi o começo, pois das respostas a essas questões dependia a metodologia que direcionaria nossas análises das notícias, que definiriam os próprios critérios de análise. E estou falando dos pesquisadores senior e não dos estudantes. O trabalho não pode ficar solto, mas no ano de 2000 ficou e agora estamos sofrendo as conseqüências. Por isso temos que organizar o trabalho futuro, entre outras razões, para não trabalharmos como loucos sem obter os resultados pretendidos. Constatado o problema, nos pusemos a pensar, e concluímos que precisaríamos construir uma matriz que colocasse as notícias nos seus lugares, não como vínhamos fazendo, pois agora já conhecemos os temas e os problemas. Tem que ser algo que nos permita avançar na melhor compreensão dos problemas, antes de ter os pacotes para fazer a releitura crítica. Começamos a buscar e, como eu tinha feito a pesquisa sobre o “estado do conhecimento” de educação no México, pelo Conselho de Pesquisa Educativa de 1990 a 2000, e tinha trabalhado com o conceito de campo de Bourdieu, pensei que talvez pudesse me valer do mesmo conceito para enfrentar o problema que nos desafiava. Ou, quem sabe, para mostrar que o campo de educação e direitos humanos não se constitui como um campo de conhecimento.
Vem a dúvida como método.
Vamos ver se serve ou não e até que momento pode servir. Eu me dediquei a rastrear, na obra de Bourdieu, a construção do “conceito de campo” e começamos a aplicar esse conceito para a educação. Enchemos as paredes de papel e nelas fomos colocando os campos nos quais, segundo Bourdieu, estariam os temas e problemas educativos. Foi uma experiência extraordinária. Fomos fazendo as adaptações e compreendemos que não poderíamos trabalhar só com a noção de campo e subcampo. Passamos então a denominar megacampo, tomando em consideração que o campo é uma estrutura social, construída por sujeitos. Colocamos agentes e instituições conformadas por sujeitos que estão em disputa com um capital específico e para isso usam táticas distintas. Isso porque Bourdieu afirma que os dominantes usam determinados tipos de táticas que são as táticas de preservação e os dominados usam as táticas de subversão.
Com esses elementos simples, apesar da construção do conceito de campo em Bourdieu ser muito complexa, fomos nos valendo desses critérios, vendo como nos serviam. Se o campo está estruturado com base em sujeitos que disputam um capital específico, o primeiro passo é ver quais são os capitais que estão, efetivamente, em disputa no campo educativo. Ocupamos muitas reuniões até identificar um número significativo deles. Embora colocado em níveis de abstração distintos, que atravessam todo o megacampo educativo, um deles, talvez o mais abstrato, é o conceito civilizatório, ou seja, a perspectiva civilizatória dos sujeitos.
Em quem vocês foram buscar o conceito civilizatório?
Em muitos autores, nos historiadores fundamentalmente. Passamos até por Darcy Ribeiro, porque o projeto educativo e o projeto social estão num cruzamento entre progressistas e conservadores, o que dá um sentido diferente à perspectiva civilizatória. É o capital em disputa, como aparece em todos os níveis e em todos os momentos. É questão de identificá-los, mas eles estão aí. Quando o secretário de trabalho censurou a leitura do conto de Carlos Fuentes que sua filha foi solicitada a ler, numa escola de segundo grau, cujo conteúdo eram os jovens descobrindo o seu corpo, sua sexualidade e a política, isso nos permitiu identificar o sentido da perspectiva civilizatória. Aí está um outro capital dos sujeitos, que atravessa todos os níveis, no qual se inclui os sujeitos e os conteúdos. É um campo de grande disputa, disputa entre os sentidos da perspectiva civilizatória. Outro espaço de disputa aparece hoje, quando a Igreja católica quer que se ensine religião nas escolas públicas no México, o que seria passar por cima da tradição laica desse país. O capital aí em disputa, especificamente a formação dos sujeitos quanto a conteúdos, é, mais uma vez, o sentido da perspectiva civilizatória. Outro capital que está em disputa permanente é o orçamento. Temos ainda a segurança como campo de disputa, ligada à questão da violência: como estão construídos os dispositivos e quem os está disputando. Enfim, fomos enchendo a parede de campos e depois de subcampos e progressivamente entendendo que tínhamos que denominar não o campo da educação, mas o megacampo, porque os campos são sete, oito ou dez, que consideramos capitais e que estão em permanente disputa, depois ainda aparecendo os subcampos. E, com relação aos subcampos, nesse momento, a discussão está em que talvez tenhamos que ir a Certeau para trabalhar com o conceito de espaço, o que no começo não queríamos. Estávamos abertos, mas não queríamos; mas foram aparecendo os temas da educação pré-escolar, de primeiro grau, segundo grau, terceiro grau.
Talvez o Certeau possa contribuir também quando distingue tática de estratégia e não denomina tática o que o poderoso usa, mas estratégia. E, incorporando essa distinção, vocês vão complexificar mais a discussão, reconhecendo as estratégias, como práticas do poder e dos poderosos, e as táticas que se manifestam no cotidiano e, ainda, que táticas e estratégias estão em permanente confronto.
Temos aí um problema a resolver, pois, muitas vezes, as táticas são de resistência e outras vezes de conservação. Esse é um aspecto que está em discussão; não conseguimos defini-lo; ainda não chegamos lá.
Será que são simplesmente conservadoras? Ou são permanentemente contraditórias? Trazem aspectos de conservação sem dúvida, mas também afloram certos componentes eventualmente inovadores, sendo portanto um conteúdo potencial de mudança.
Bourdieu trabalha no sentido das lutas que se dão entre os sujeitos que constituem o campo, o limite delas e a sobrevivência no campo. Em um certo sentido, elas portam uma perspectiva conservadora. Mas isso está em discussão porque estamos sentindo a necessidade de fazer cortes, não sabemos se horizontais, transversais ou verticais, não importa. Precisamos fazer esses cortes e por isso estamos estudando a possibilidade de trabalhar com campos e espaços. Precisamos incluir a educação privada, que constitui todo um sistema educativo, desde o pré-escolar até os níveis mais elevados, em permanente luta com o sistema público. São espaços de luta por capitais específicos.
Talvez com espaços/tempos de Certeau, como o tempo e o espaço limitados da pré-escola.
Espaço/tempo pode ser um conceito muito útil para nós; e essa é outra discussão. Depois de feita aquela grande matriz, identificando dezoito capitais em disputa, inclusive os sujeitos e os espaços que disputam, estamos vendo a possibilidade de construir uma matriz que permita, quando eu identificar uma notícia aqui na minha casa, num domingo, que eu possa enviar cópias para o banco de dados e para o programa disponível, no qual serão automaticamente classificadas. Dentro de três semanas prepararemos todos os pacotes relacionados com os diferentes capitais. Tudo muito bem até aqui mas, ao mesmo tempo, estamos fazendo na oficina os mesmos ensaios do ano passado, o que nos possibilitou identificar capitais diferentes.
Vê que coisa extraordinária. Quando começou o projeto das escolas pré-universitárias promovidas pelo governo do Distrito Federal, em 2002, houve muitos problemas. Porque essas escolas estão se localizando na zona urbana; o governo não tem dinheiro para construir escolas novas, está então comprando ou ocupando prédios que eram públicos e estavam desativados. Isso fez emergir uma luta que tem a ver com a política. O Partido de la Revolución Democrática (PRD) está governando o Distrito Federal com muitos êxitos e a Cidade do México define as eleições federais para a presidência. Já se está vendo para onde caminhará a futura presidência do México; até poderíamos fazer previsões e dizer quem será o próximo presidente. Dessa forma, nesse momento, o espaço educativo construído pelo governo do Distrito Federal é um espaço de grande disputa, pois este é um ano de eleições para renovar metade do Congresso e metade da Assembléia da Cidade do México. E o que vemos? Que o espaço urbano está se constituindo em capital disputável! Nessas áreas onde o governo reformou prédios inutilizados ou comprou prédios velhos, a oposição se levantou, reivindicando que o uso do solo nessa região não era permitido para escolas. Chegaram a fechar uma grande escola, numa área muito importante; os vizinhos saíram com cartazes e conseguiram que a escola fosse fechada. O que aconteceu? O governo federal apelou à Suprema Corte de Justiça para que resgatasse a lei que permitia fazer esse uso do solo. Os vizinhos recorrem e a Suprema Corte de Justiça deu parecer favorável ao governo do Distrito Federal. Esse evento nos levou a compreender que aqueles capitais, que havíamos definido inicialmente e que são válidos, eram insuficientes. E o que parece ainda mais surpreendente é que não podemos “fechar” os capitais em disputa, porque não os conhecemos todos; os estamos conhecendo aos poucos e agora. Além disso, nem todos os capitais são permanentes; alguns são, outros não – por exemplo, os orçamentos. Agora se constituiu outro capital cultural, como foi a disputa pelo uso do terreno urbano. Um novo capital apareceu, conjuntural se você quiser, mas capital – em relação ao qual havia disputas e no qual havia sujeitos: os vizinhos que talvez pouco tivessem com a escola, mas moram na área; o parti- do, desde logo; as autoridades administrativas; a Suprema Corte de Justiça; e, é claro, os alunos, os pais e muita gente – todos sujeitos que interferiram na disputa desse capital. Parece novamente loucura apostar nisso, sabendo que está tudo aberto. Temos fios dessa malha na mão, ela não está solta; sabemos o que tem de entrar e o que tem de sair, e esse é o resultado de nosso trabalho prático.
Estamos ainda discutindo a aplicação dessa grande matriz, elaborada com base em de Bourdieu. No que conseguimos nesse ano de trabalho, já vimos que vai servir. Fizemos também uns pilotos e colocamos as classificações nos campos e espaços. Estabelecemos umas “tabuinhas”, por assim dizer, que vão ficar na frente do computador para ajudar a classificar o que encontramos nos periódicos. Essa é a parte maravilhosa. Em primeiro lugar, nos facilita o trabalho, do ponto de vista pragmático. O mais importante, porém, é que ela produz uma estrutura de organização das informações que os jornais nos fornecem quase diariamente. E foram acontecendo coisas que nos surpreenderam. Os meninos que estavam lendo sobre a educação no período colonial aplicaram esse modelo e foi de uma riqueza extraordinária. Um deles, mestrando em direito, tinha de fazer um trabalho sobre a questão das prisões e resolveu aplicar o mesmo modelo; resultou tão útil que sem ele não saberia inclusive como trabalhar. O modelo está nos servindo, do ponto de vista pragmático, de tal maneira que podemos aligeirar nossa carga de trabalho em relação aos boletins de conjuntura educativa, assim como para fazermos outras coisas que pretendemos fazer; mas também nos está formando numa perspectiva de análise do presente imediato, em função das disputas que ocorrem cotidianamente em todos os espaços escolares e que não são vistos, pois a escola não lê essas notícias.
Com relação aos boletins, você perguntou se vão ser periódicos ou como vão ser. Iniciamos essa discussão e estávamos muito angustiados. Recorremos, então, a sete ou oito conceitos de conjuntura e nos demos conta de que a realidade nos dá as conjunturas. São fundamentalmente três. Uma tem início em janeiro e acaba em março, compreendendo o período de discussão das revisões dos contratos coletivos das universidades. Aí, há várias disputas: pelo orçamento, por maiores salários, em relação à formação dos sujeitos, pelo sentido da disputa civilizatória. Em síntese: há muitos capitais em disputa, que aparecem juntamente com a disputa pelo orçamento. Sabemos, nesse período, qual a primeira universidade que propõe a revisão do contrato e qual a última. Dependendo da negociação da UNAM, sempre a primeira, já se pode mais ou menos prever o que acontecerá com as outras. Se a UNAM negocia com vantagens para os trabalhadores, pode-se inferir o que mais ou menos acontecerá em todas as instituições de ensino superior públicas do país. Essa conjuntura está posta; nada temos que definir, só temos que identificá-la e analisá-la durante os três meses de sua duração.
Uma segunda conjuntura começa em abril, cresce a partir de maio, principalmente em torno do dia 15, dia do professor, e acaba nas férias de agosto, quando um número significativo de profissionais da educação básica de muitos estados vem acampar na cidade do México; depois, a maioria regressa a seus estados e negocia com mais, ou menos, vantagens. É a conjuntura da reivindicação de aumento salarial dos trabalhadores da educação básica. É um movimento nacional, com muitas estratégias e táticas; movimento de pressão sobre as secretarias de educação pública. Desde a reforma descentralizadora de 1982, os serviços educativos são da competência dos estados, os quais têm pouca margem de manobra. Praticamente todos os anos, os profissionais da educação tentam negociar com o governo do estado. Este ano, começaram mais cedo: já em março fizeram uma grande concentração e saíram de cada um dos pontos cardeais da cidade do México, levando três reivindicações: não à guerra; aumento dos salários em 100% (sempre eles pedem esse valor porque na realidade os salários reduziram em mais de 100% desde a década de 1970); contra os processos de avaliação que foram impostos. Essas conjunturas não exigem o mesmo tempo de análise. A primeira dura três meses; a segunda, um pouco mais. Portanto, os boletins de conjuntura educativa serão relativos aos meses de duração dos movimentos.
A terceira conjuntura é relativa à disputa do orçamento, que começa em setembro e vai acabar em dezembro, quando o Congresso volta a se reunir. No caso das universidades, a partir de setembro os reitores começam as suas táticas, começam a dizer que a universidade precisa de dinheiro e que os fundos são insuficientes; começam a mostrar os projetos que estão realizando e os resultados desses projetos. Esse discurso vai crescendo, na medida em que se acerca o período de discussão do orçamento. A sistemática é a seguinte: o presidente faz uma proposta de orçamento, discutida em seguida no Congresso e em geral aumentada; uma vez aprovada pelo Congresso, todos ficam sabendo de quais recursos vão dispor. Não foi preciso nos preocuparmos com os cortes, pois já estão definidos pelas próprias conjunturas. Agora estamos discutindo os elementos necessários para formar os jovens estudantes que trabalham conosco, para que se possam situar nessas conjunturas, com base nas mobilizações e nas decisões governamentais.
A partir da construção dos boletins de conjuntura educativa apareceu a necessidade de trabalhar outra parte das notícias que o Anuário também não cobre. Um exemplo dos mini-ensaios do ano passado foi a discussão sobre o calendário escolar. Trabalhar o calendário escolar exatamente por quê? Em primeiro lugar, todos os anos, o secretário de educação negocia o calendário escolar com o presidente do Sindicato de Trabalhadores de Educação do país, que congrega 700 mil associados. Negociam quando começa e quando acaba cada período, as férias e os feriados etc., e o resultado é publicado no Diário Oficial, por exigência da lei geral de educação. Isso estabelecido, os estados podem fazer adaptações desse calendário. Por exemplo, nas áreas do deserto, o dia letivo começa mais cedo ou termina mais tarde, para que as crianças, nas horas mais quentes, não estejam na escola, nem caminhando para suas casas ou para a escola. Nos estados em que faz muito frio, ocorre o contrário. Há modificações também nas áreas que sofrem a ação da natureza, como furacões e tempestades tropicais; em ocasiões de perigo, as aulas são suspensas. O governo considera que os 180 dias letivos obrigatórios são muito poucos, se comparados com os do Japão, Estados Unidos da América e outros países. Supõe que a qualidade da educação pode melhorar significativamente se for aumentado o número de horas que as crianças permanecem na escola. Em decorrência disso, aumentou o período obrigatório de 180 para 200 dias. Acontece que, nas escolas do Distrito Federal ligadas à Secretaria de Educação e não ao governo da Cidade do México, os professores não cumprem aqueles 20 dias a mais. Esse fato aparece nas notícias e são feitas entrevistas, numa série de reportagens interessantes. Os professores dizem que depende de cada um; se trabalha bem ele cumpre os seus 180 dias, se não, vai ter de cumprir 200. E se as aulas terminam em 180 dias, o que fazem os alunos? Aí vem a questão: as crianças vão passear, nem sempre com os professores; fazem torneios de jogos, atividades extraclasse etc. Alguns professores dedicam-se a reuniões sobre outras coisas na escola e ficam todos satisfeitos: professores, diretores, pais e alunos. Isso nos permitiu ver que, na verdade, há dois calendários, um oficial e um extra-oficial, construídos pelo peso da tradição dos professores, minimizados no calendário oficial. A questão se resume em estender o tempo. Mas resolve? Contribui para melhorar a qualidade da educação? Pode até contribuir, mas em si mesmo não contribui. Esse trabalho, que foi feito em duas páginas, nos revela essa dimensão da realidade, menor se comparada com outras, mas não tão menor, porque as escolas básicas estão com essa prática e o governo está com uma política que não resulta naquilo que pretende. Vamos seguir analisando esse “impasse”. E, mais uma vez, retornando à metodologia, esse impasse nos revelou problemas de método, resultantes da incompreensão da informação e de uma percepção alterada dela.
Situação que acontece quando você está rigidamente presa ao método, ficando impedida de perceber o problema e, por isso, não indo até o fim. O perigo é apresentar como um retrato o que na verdade é uma distorção da realidade. No entanto, quando se trabalha com mais flexibilidade, como vocês vêm fazendo, pode-se parar, repensar e redirecionar para poder continuar. É claro que dá mais trabalho, há sempre riscos, mas o resultado é compensador.
Dá muito mais trabalho; mas é muito mais preciso, mais interessante.
Sem dúvida, portanto, tem-se que questionar alguns princípios da pesquisa, tais como a neutralidade, a fidedignidade e a objetividade que, na verdade, não são mais do que ilusões.
Há aqui outra situação interessante, com relação às resenhas. Nos demos conta de que não conseguimos estabelecer critérios válidos para todas as resenhas. Muito trabalho feito, de nada serviu. Começamos a examinar as contribuições de alguns jornalistas sobre o jornalismo, porque, lendo os pacotes temáticos organizados, estávamos encontrando informações equivocadas e imprecisas, lacunas graves. Lidas dia a dia essas notícias não eram questionadas, mas agora que precisamos delas para construir uma explicação, nos damos conta que muitas não nos servem e, pior, que há notícias mentirosas. Isso significa entender como os jornais e o jornalismo constroem o educativo.
Imagina se vocês fossem, hoje, fazer nos Estados Unidos essa pesquisa referente à Guerra do Iraque…
Até seria interessante… E aqui temos uma questão relevante: o discurso periodístico constrói todos os dias as notícias e não nos damos conta da relatividade da informação que nos é apresentada e que desmobiliza sujeitos, atomiza a informação desorienta. Para enfrentá-la nos valemos das obras de alguns críticos do jornalismo, o que deu ótimo resultado. Encontramos nelas o que não existia em outros espaços, o que não vimos na prática: que o discurso jornalístico é mentiroso, usa metáforas, faz conotações e inferências, apresenta explicações e conclusões nem sempre corretas. Enfim, esses críticos nos apresentaram uma lista incrível de problemas subjacentes à construção do discurso jornalístico.
Porque também, no discurso jornalístico, há interesses subsumidos e se você não os questiona, recebe informações tendenciosas ou equivocadas e as aceita como verdadeiras. O perigo é que isso vai fazendo sua cabeça.
Exatamente, e aí vimos, mais uma vez, a importância do Anuário e dos boletins de conjuntura educativa para esmiuçar as notícias. Agora, em nosso trabalho, em primeiro lugar, nos encontramos com o analista dos discursos jornalísticos, que nos projetou uma luz sobre aquilo que constatamos. Em segundo lugar, nos demos conta de que o jornalismo que se faz no México, e que cobre bastante o campo educativo, não é um jornalismo de pesquisa. Daí a importância dos mini-ensaios; com eles completamos o trabalho do jornalista. Tomamos, por exemplo, a Lei Geral da Educação para alertar que todos os anos o secretário de educação faz um acordo com o presidente do sindicato e define o calendário escolar, o que não foi dito pelos jornalistas, embora devessem tê-lo feito, para informar adequadamente os professores. Estamos, portanto, preenchendo as lacunas deixadas pelos jornalistas, o que exige muitas vezes pesquisas. Isso também está sendo importante para a formação dos estudantes que participam desse trabalho, cujos nomes sairão publicados nos mini-ensaios.
Podemos concluir que estamos abrindo outro espaço de reflexão sobre a construção do educativo no discurso periodístico. As resenhas têm que indicar os fatos, destacar os sujeitos, depois ver o desenvolvimento das notícias e sua conclusão. No entanto, isso seria muito para uma resenha. Compreendemos que o trabalho jornalístico é um trabalho quase artesanal, assim como o que fazemos. Um parênteses: é importante notar que o termo artesanal no México tem um sentido extremamente positivo, porque convivemos com as artesanias, sabemos e respeitamos o trabalho dos artesãos e como eles trabalham para fazer aquelas coisas maravilhosas e tão apreciadas por todos. Assim, nós nos sentimos artesãos de conhecimento, artesãos do conhecimento do campo educativo. Observamos como os jornalistas constroem o que se chama “breve” ou “seco”, notícia muita pequena, mas com todos os elementos necessários para ser verdadeiramente informativa. E concluímos que nossas resenhas devem ser assim. Fizemos um grande esforço para construir determinado modelo e dele nada resultou, apesar de nos ter custado muito. Descobrimos agora que podemos usar a mesma metodologia do jornalismo, o que não somente nos ajuda, como nos permite formar extraordinariamente os estudantes, ensinando-os a pensar de maneira ordenada, ou seja: não se pode prescindir dos dados da realidade, parte-se deles e depois são feitas leituras e releituras, em confronto com as teorias, os conceitos e as categorias, para compreender o que está por traz dos fatos. É o que, afinal, nos cabe fazer, no caso dos boletins de conjuntura educativa e no caso dos autores que fazem os ensaios para o Anuário da Educação e a retrospectiva a cada ano.
Mais um comentário: o que poderia parecer um desprezo pela teoria, longe disso, é uma dimensão jamais pensada da teoria. No seu relato, fica clara a importância da teoria. Você vai à teoria todo o tempo, só que não é uma teoria descolada da prática, tanto que quando ela não lhe serve você a coloca de lado, mas quando responde ao que a prática está sinalizando, ela se torna explicativa e aponta para novas possibilidades de trabalho, adquirindo o sentido mais importante da teoria, sua dimensão maior. Fica claro que sem a teoria você não poderia fazer o que fez, chegar onde chegou.
É lamentável que se perca um precioso tempo para separar o grupo dos práticos do grupo dos teóricos, como se houvesse essa oposição. Longe disso. O problema é que alguns “teóricos” mostram desprezo pela prática e os “práticos”, ao contrário de desprezar a teoria, a valorizam num nível que nem sempre os teóricos alcançam. Na verdade, os pesquisadores que trabalham na perspectiva que vocês trabalham, recuperam o sentido marxista da relação prática-teoria-prática, embora alguns marxistas nos acusem de os estarmos traindo.
Fecharia a nossa entrevista afirmando, com todo o cuidado, que o trabalho de vocês recupera, na falta de uma expressão melhor, porque tenho um certo mal-estar com essa coisa de fundamento, os fundamentos do marxismo.
Sabemos disso. O que dizemos, com muita humildade, é que não conseguimos produzir conhecimentos de outra maneira. Isso não significa que não estejamos abertos às possibilidades de realizar de outra maneira o que nos propomos. Nós, que fomos formados numa perspectiva marxista, só podemos fazer dessa maneira: é o permanente movimento do concreto ao abstrato, retornando ao concreto. Estamos a todo o tempo retornando a tal ou qual teoria, o que diz tal ou qual autor, o que encontramos nesse ou naquele livro ou artigo. Respeitamos o já dito e conhecido, sem nos fecharmos para o ainda não-dito ou em processo de se fazer.
Realmente para finalizar, diria que sim. Apesar de todos os desprezos, das traições, das más interpretações e da tentativa de reduzir a perspectiva marxista de leitura da realidade, da história do presente, nós nos colocamos aí, nós só sabemos fazer assim. Isso significa recuperar o conceito básico da contradição, não como um conceito abstrato que serve para organizar as idéias, mas que permite entender como a realidade se comporta e avança e as situações que enfrentam os indivíduos num grupo, localizados em determinada parte do sistema no seu conjunto e como se movimentam de maneira contraditória. A contradição para nós continua a ser um conceito central. Vivemos a história do presente e a história imediata a partir das contradições, e não temos outra forma de perceber e compreender os processos que acontecem no campo educativo sem esse conceito.
Mais uma vez lhe digo que me fascinam, no trabalho de vocês, os desdobramentos de um projeto que, a princípio, ninguém poderia ter a idéia da amplidão. Quando vocês começaram o projeto do Anuário, acredito que não tinham a mais leve idéia de onde esse projeto os levaria. Mais uma vez é a realidade direcionando e até apontando novos desafios, novas aberturas. Mais uma vez é a prática que está sendo, como preconizado por Marx, o critério de verdade, o que é freqüentemente esquecido por alguns marxistas, que ficam na teoria e se apartam do que a prática está sinalizando. O trabalho de vocês me fascina pela dinâmica, pela riqueza, pelo inesperado, pelo surpreendente que o projeto em ação vai revelando, desafiando, dando pistas. Vocês estão indo com ele. Não são vocês que controlam o trabalho, é ele que vai ganhando vida própria e sinalizando: aqui pode, aqui deve, aqui quem sabe. Guadelupe, estou absolutamente maravilhada com esse trabalho, e vou lhe dizer que me sinto muito orgulhosa de estar fazendo essa entrevista com você e, mais que tudo, de ser sua amiga.
Você sabe, Regina, que o prazer é meu. Sempre digo que há momentos da realidade que são sutis, mas que por alguma razão as coisas acontecem. Somos amigas por muitas dessas razões; algumas podem ser explicadas; outras vão acontecendo sem que nos apercebamos delas.
Realizada na Cidade do México, em abril de 2003
Publicação autorizada em junho de 2003
Fonte: Revista Brasileira de Educação ANPED – Jan /Fev /Mar /Abr 2004 No25, p. 156-176. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n25/n25a13.pdf
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