Uma nação, várias línguas

A colonização portuguesa deixou marcas profundas na história linguística do Brasil. Das 1.078 línguas indígenas faladas nos anos de 1.500, restam cerca de 180. A política monolíngue adotada pela Coroa, na qual a língua portuguesa deveria ser a única legítima nas terras tupiniquins, se perpetuou ao longo dos anos e deixou vestígio também nas línguas de imigração, africanas e de sinais. Com o objetivo de dar visibilidade à pluralidade linguística brasileira ainda existente e fomentar políticas voltadas para a manutenção dessas línguas, foi instituído o inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL). Publicado em dezembro pela presidência da República, o Decreto n° 7.387 prevê a criação de um sistema informatizado que abrigue a documentação das diversas línguas brasileiras.

O inventário é financiado por um convênio entre os Ministérios da Educação, Cultura, Justiça, Ciência e Tecnologia e Planejamento. Por meio de editais, entidades e instituições de pesquisa concorrem ao financiamento de projetos, que devem seguir uma metodologia já definida previamente. O projeto-piloto foi iniciado em 2008 e incluiu a pesquisa de nove línguas. O próximo passo é reunir os relatórios e os diversos produtos gerados das pesquisas em uma única plataforma digital.

Segundo a coordenadora do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Políticas Linguísticas (Ipol), Rosângela Morello, uma das definições mais importantes propiciadas pelo inventário foi o reconhecimento das várias línguas utilizadas no país como línguas brasileiras. A Constituição de 1988 fazia menção às línguas indígenas e a Lei de 2002 reconheceu a Libras como meio de comunicação dos surdos, mas nenhum outro documento brasileiro levava em conta as outras comunidades linguísticas. “Essa definição foi importante para que o governo pudesse tomar essas línguas antes silenciadas como parte de políticas públicas. Havia pesquisas na área, mas não havia o reconhecimento”.

O Inventário Nacional da Diversidade Linguística é resultado de um longo processo de discussão e negociação que começou em 2004. Nessa época o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) já trabalhava com a política de registro de bens culturais imateriais, tais como as celebrações e os rituais da cultura brasileira. Por meio de um encaminhamento feito pelo Ipol à Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, solicitou-se que também as línguas fossem objeto de registro de patrimônio imaterial.

O parecer favorável da Comissão deu origem ao Seminário sobre a criação do Livro de Registro das Línguas, realizado no Congresso Nacional em 2006, com os parlamentares e usuários de seis línguas não conhecidas pela maioria dos brasileiros, entre elas a Libras. Nesse evento foi instituído o Grupo de Trabalho da Diversidade Linguística no Brasil, que envolveu vários ministérios e instituições ligadas às minorias linguísticas. O grupo foi o responsável por criar a metodologia do inventário, que começou a ser utilizada nos projetos pilotos. Segundo a coordenadora do Ipol, Rosângela Morello, o decreto coroa os seis anos de trabalho do grupo.

O requisito básico para incluir uma língua no INDL é que ela seja considerada uma referência cultural brasileira. Deve ter relevância para a memória e identidade dos grupos que compõem a sociedade, ser veículo de transmissão cultural e estar no território brasileiro há pelo menos três gerações, em média 75 anos.

Foram criadas seis categorias de línguas brasileiras: indígenas, de imigração, de comunidades afro-brasileiras, de sinais, crioulas e língua portuguesa, com suas variações dialetais. A pesquisa de cada uma das línguas inventariadas deve conter informações padronizadas, estipuladas pelo Grupo de Trabalho da Diversidade Linguística, tais como demografia, caracterização histórico-cultural, distribuição geográfica, usos na sociedade, ações sobre a língua, literatura oral e escrita, produção audiovisual, levantamento de estudos sobre a língua, e um acervo de 200 palavras.

De acordo com Rosângela Morello, pela primeira vez está sendo implementada uma pesquisa que não se restringe à descrição das línguas. “As descrições apenas instrumentalizam as políticas de sustentação das línguas. São uma parte do inventário, que busca informações mais amplas sobre a circulação da língua e seus usos”, explica a pesquisadora. Outra ferramenta para a identificação das línguas seria a formulação de uma pergunta a ser aplicada no questionário do Censo 2010 do IBGE. A pesquisa demográfica acabou por optar pela introdução da pergunta apenas entre as comunidades indígenas.

Estima-se que no Brasil sejam faladas cerca de 180 línguas indígenas, 40 de imigração e duas línguas de sinais, além das línguas crioulas, afro-brasileiras e variantes do português. A expectativa é de que com o INDL se saiba ao certo esse número. Muitas delas são apenas orais, faladas por um pequeno número de pessoas no âmbito das casas. Outras, entretanto, estão bem consolidadas e são faladas por um grande número de pessoas. Esse é o caso do Talian, uma variante da língua vêneta (norte da Itália) pronunciado na Serra Gaúcha, no Vale do Itajaí e no oeste e sul de Santa Catarina. Trazida pelos imigrantes italianos, a língua conta com dicionários, gramáticas, programas de rádio e teatro. Outras línguas são mais recentes, como as variantes de coreano e chinês.

Um dos projetos-piloto já em fase de conclusão é o mapeamento do Guarani M’byá, falado por indígenas que habitam desde o estado do Espírito Santo até o Rio Grande do Sul. Sob a responsabilidade do Ipol, a pesquisa abrangeu todas as comunidades cujo acesso era viável. Os resultados serão catalogados na plataforma do INDL e apresentados às comunidades falantes. “Os projetos piloto foram feitos para inventariar e dar indicações de como é implementar essa metodologia. Estamos produzindo um relatório que sugira políticas públicas para a conservação dessas línguas e que mobilize os interessados”, destaca a coordenadora do Ipol.

Um dos projetos-piloto do INDL consistiu em mapear as variantes da Língua de Sinais em João Pessoa e em Recife. Durante dois anos, dois grupos de pesquisadores da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) fizeram o levantamento com as comunidades surdas das duas capitais. Ao todo, participaram 216 surdos, sendo 108 de cada uma das capitais, provenientes de escolas, igrejas e associações. A amostra é considerada grande para os padrões de inventário, que geralmente trabalham com 60 pessoas.

Segundo a pesquisadora Marianne Carvalho, da UFPB, todo o material foi gravado em vídeo e o relatório final a ser entregue ao Iphan já está em fase final. Alguns gráficos já foram analisados. Por meio de entrevistas individuais, foram coletados dados, conforme a metodologia do INDL, que abrangiam temas como circulação, aquisição e usos da língua. “Por meio das gravações, também tivemos a oportunidade de identificar as variações regionais tanto no aspecto dos sentidos dos sinais quanto da forma”, explica a pesquisadora. Um dos principais achados foi a dificuldade de circulação da língua na sociedade, visto que os órgãos de atendimento público, em especial na área da saúde, não estão aptos para receber os usuários da Libras.

O principal objetivo do levantamento era conhecer como pensam e vivem os surdos dessas comunidades e, dessa forma, preservar esse patrimônio linguístico e cultural. Evangelina Maria Brito de Faria, também pesquisadora da UFPB, explica que o trabalho revelou aos próprios surdos que a Língua de Sinais com variações regionais possui o mesmo valor linguístico das variantes do restante do país. “Muitos surdos, depois que têm contato com a Libras de outras localidades, começam a acreditar que os sinais regionais estão errados. Parece existir uma baixa estima da língua tanto na Paraíba quanto em Recife. A pesquisa mostrou a eles que não há superioridade entre as línguas”.

Veja a publicação original na revista da Feneis

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