Sérgio Andrade, Felipe Bragança e a representação indígena no cinema nacional
O cinema brasileiro se voltou aos assuntos indígenas em dois dos principais filmes nacionais lançados em 2017.
Sérgio Andrade e Fábio Baldo trouxeram a relação desta população dentro de um contexto urbano e com a questão LGBT inserida neste cenário com a produção rodada em Manaus, “Antes o Tempo não Acabava”. Já Felipe Bragança foi até a fronteira Brasil-Paraguai juntando não-atores guaranis com a estrela global, Cauã Reymond, na aventura “Não Devore Meu Coração”.
No meio do processo de realização da ficção científica “A Terra Negra dos Kawá”, Sérgio Andrade encontrou Felipe Bragança visitando Manaus para um bate-papo com Diego Bauer, do Cine Set.
Cine Set – Como vocês tratam a abordagem do indígena dentro dos filmes para não cair em estereótipos?
Sérgio Andrade – Tem uma frase bem emblemática no “Antes o Tempo não Acabava” sobre este aspecto generalista do indígena ser sempre o mesmo em qualquer lugar: ‘se você trouxer uma cobra do Japão, ela vai continuar sendo cobra’. O mesmo vale para o indígena: se ele vem da aldeia para a cidade, ele vai continuar sendo índio. Por isso mesmo, teve até um momento que chegamos a ter a ideia do título do filme ser “Cobra do Japão” (risos).
O Anderson Tikuna (ator protagonista do filme) já tinha me impressionado muito desde o “Cachoeira” tanto pelo carisma quanto pela história de vida dele. Ele é da etnia tikuna, morador de um bairro da periferia de Manaus, o Cidade de Deus. Acabei tendo o primeiro contato com este extrato populacional dos indígenas urbanos e, depois, veio a ideia do personagem. A questão gay é que acabou sendo o elemento novo.
Felipe Bragança – Lá no Paraguai, cerca de 90% da população é de origem guarani. Eles estão inseridos dentro da cultura urbana, não se discute muito a questão da identidade e a referência cultural indígena. Quando eu cheguei com estes personagens na cabeça, tinha uma ideia de puxar das pessoas da cidade, não-atores, as memórias do povo guarani, das próprias famílias e tentar reavivar para que vivessem aqueles personagens. Isso difere muito do Brasil, onde os guarani estão concentrados em reservas e aldeias, mais distante deste contato com o urbano.
Na hora de fazer a escolha do elenco de quem iria compor as gangues de brasileiros e paraguaios, chamei moradores da região dos dois países. Em um dos primeiros ensaios, perguntei como seria dentro da fábula do filme integrar uma gangue de guarani paraguaios. Eles responderam em uníssono: ‘não existe esta fronteira Brasil-Paraguai; tudo é a República Guarani’. Eles completaram dizendo que seria muito curioso ver que eles estavam juntos, pelo menos, no filme.
No final das contas, o maior desafio para a equipe paraguaia, especialmente para o pessoal da faixa dos 20-30 anos, foi lidar com este lado mais ancestral das raízes deles, algo não tão presente no cotidiano. Já para os integrantes brasileiros era o contrário: sair da reserva para se tornarem membros de gangues, motoqueiros, mais próximo do urbano. Os dois lados viveram coisas diferentes, mas, gostaram deste encontro.
Cine Set – Neste sentido, Sérgio, a pegada mais fantasiosa e dentro de um cinema de gênero do “A Terra Negra dos Kawá” tem uma maior ligação com “Não Devore Meu Coração” do que o realismo proposto por “Antes o Tempo Não Acabava”?
Sérgio Andrade – Apesar de ainda não ter visto o longa do Felipe, acho que “Antes o Tempo não Acabava” acaba sendo mais parecido com o “Não Devore Meu Coração” por não ser tão científico na abordagem do tema; “A Terra Negra dos Kawá” é algo mais científico ao trabalhar esta ancestralidade dentro de um filme de gênero. A terra preta indígena, por exemplo, surgiu de uma ação do próprio homem na Amazônia a partir das comunidades que viviam ali há séculos. Considero que nossos trabalhos possuem uma força sociológica grande, pois, abordam sociedades indígenas atuais e antigas, especialmente, no “Kawá”.
Felipe Bragança – Acho que essa ideia do “Kawá” ecoa no “Não Devore Meu Coração” ao pegar a ancestralidade indígena e tentar trabalhar o imaginário desses grupos dentro de gêneros cinematográficos que não necessariamente são o do realismo de retrato social. Você faz ficção científica, enquanto eu uso a aventura. Quando fiz o filme, a ideia era pegar aqueles indígenas, propor que eles fossem motoqueiros estilosos em confronto, longe de um realismo social. Isso aumenta o volume daquela realidade para propor utopias sobre estas culturas.
Sérgio Andrade – Já que você citou a ficção científica, em “A Terra Negra dos Kawá”, vamos trabalhar os cânones do gênero ao estabelecer os mistérios iniciais, enigmas desvendados ao longa da trama, terrenos estranhos que não tem muita ligação com o que está acontecendo com a trama, mas, contêm muito simbolismo.
Cine Set – Os filmes de vocês provocam reações diferentes no imaginário do público: o do Sérgio Andrade aborda a floresta, mas, tem também a periferia de Manaus, enquanto o do Felipe traz a fronteira Brasil-Paraguai. Vocês sentem que as pessoas se surpreendem ao assistir estas produções?
Sérgio Andrade – Acho que sim. O “Antes o Tempo Não Acabava”, por exemplo, trabalha a questão delicada do infanticídio e considero maravilhoso poder abordar isso por ser um tabu. Não temos a pretensão nos nossos filmes de ser um compêndio etnográfico. Lembro sem ressentimentos, por exemplo, de uma das críticas da Folha de São Paulo dizendo que o “ATNA” não seria aprovado por nenhum antropólogo. Cara, eu não poderia pensar antropologicamente para fazer este filme. Fui pensar como um contexto urbano de um indígena.
Felipe Bragança – Dentro desta linha de pensamento, “Macunaíma” não poderia ser feito hoje. A função da arte é expandir a inter-relação entre culturas. A gente não pode achar que o antropólogo controla todo o conhecimento.
Sérgio Andrade – Ainda há questão colocada em muitos debates sobre o lugar de fala, ou seja, de três brancos, incluindo o Fábio Baldo, fazendo filmes sobre indígenas. Daí eu pergunto: e a antropologia, ela é o quê? Branca! É difícil ver antropólogos negros e muito mais índios. Fora que ela nasce de concepções e premissas judaico-cristãs brancas. Isso é muito desconexo.
Felipe Bragança – Acho pertinente discutir a origem de quem está propondo o discurso, mas, isso é uma coisa que acontece em geral em toda sociedade e não apenas no cinema. O lugar de fala não será resolvido silenciando o lugar de fala de alguém que quer pensar os indígenas de uma forma criativa de outro jeito. Isso será resolvido com mais filmes e não com menos filmes. É algo básico.
Quando fui exibir o “Não Devore Meu Coração” na fronteira estava receoso com a reação. Só que os paraguaios se mostraram super orgulhosos e emocionados de ter gente interessada em fazer um filme lá, mostrando questões locais. Muitas destas críticas que surgem vem de um moralismo que acham que o filme vai resolver o mundo e isso não vai acontecer.
Sérgio Andrade – Isso não significa também que fazer ficção não haja responsabilidade. Claro que há.
Felipe Bragança – Sim, mas, é preciso ser mais aberto. Fora que mostrar aquele povo, o local, os idiomas é uma documentação importante de uma época. A ficção não está fugindo do real; na verdade, ela busca expandir possibilidades. Tenho certeza de que vários meninos guarani saíram do processo do filme super abertos para discutir sobre o confronto com os fazendeiros brasileiros. Eles não vão se tornar motoqueiros membros de uma gangue, mas, abriu espaço para a reflexão.
Cine Set – Vocês acham que tratar sobre a questão indígena exige mais responsabilidade ou é a mesma de tratar qualquer assunto social?
Sérgio Andrade – Há sempre um questionamento se deveríamos consultar um antropólogo ou não. Seria bom, claro, assim como ler autores como o Eduardo Viveiros de Castro, mas, não acho que haja esta obrigação. Considero que precisa ser uma conversa humana sobre humanos de um modo geral. A gente não pode ter um determinismo antropológico em tudo. Também entra esta questão do lugar de fala: meu maior prazer de fazer filmes com e sobre indígenas é colocá-los como protagonistas. Essa é a grande missão que apazigua tudo. O “Antes o Tempo não Acabava” é falado nas línguas indígenas com legenda, isso é um documento de manutenção de uma cultura. Sinto que estou contribuindo para registrar isso.
Felipe Bragança – A responsabilidade maior que eu sinto é com os personagens sem importar, no primeiro momento, esta origem étnica. Se eu estou escrevendo “Praia do Futuro” que fiz ao lado do Karim Ainouz ou estou dirigindo o “Não Devore Meu Coração”, os personagens estão sempre em primeiro lugar levando em conta a forma como eles se comportam, falam e pensam. Nisso tudo, há a camada cultural dele. Isso valeria também, por exemplo, se falasse de um cara rico de Ipanema. Essa lição foi algo que aprendi com o Eduardo Coutinho: você tem de olhar a pessoa na altura dos olhos sem importar quem seja. Quando vou construindo uma personagem, eu procuro olhar nos olhos delas e tentar expandi-la. Dentro deste processo, a questão indígena, por exemplo, vem quase naturalmente.
Sérgio Andrade – Eu tenho uma pergunta para o Felipe a partir de uma experiência que eu passei agora: você trabalhou com uma estrela global que é o Cauã Reymond. Recentemente, tive a oportunidade de trabalhar com três atores conhecidos – Mariana Lima, Marat Descartes e Felipe Rocha. Gostaria de saber se além da questão mercadológica e profissional de serem bons atores, se existe algum outro propósito para este tipo de escolha?
Felipe Bragança – No caso do Cauã, a escolha passava por ter um grande ator daquela faixa etária e com a generosidade de topar trabalhar com não-atores ali da fronteira. Tinha uma coisa de tática de diretor e sabia que o Cauã tinha esta abertura para embarcar no projeto. O outro elemento é que sempre pensei no personagem do protagonista como um outsider, deslocado daquela realidade, algo na linha do Marlon Brando em “O Selvagem” ou James Dean em “Juventude Transviada”. Além disso, tinha o fato de precisar de um bom ator porque havia cenas chaves que precisava de um profissional capaz de entregar o que se pedia.
Sérgio Andrade – É muito legal pegar atores profissionais que fizeram cursos e misturar com não-atores, pessoas da localidade. Sinto que os atores gostam disso. Fora que tira essa denominação de raça, dando uma homogeneidade interessante. O Felipe Rocha chegou a dizer que achou o jeito de atuar de uma das atrizes locais inovador e nenhum pouco amador.
Felipe Bragança – Sim, bagunçar as coisas, criar áreas cinzentas onde nada seja tão claro.
Cine Set – “Antes o Tempo Não Acabava” e “Não Devore Meu Coração” participaram de festivais internacionais. Quais as semelhanças e diferenças de reação do público estrangeiro e do espectador brasileiro diante dos filmes?
Sérgio Andrade – O Festival de Berlim é um evento que acolhe muito as questões mais voltadas ao universo gay, underground, de gênero e de identidade. A gente com o “Antes o Tempo não Acabava se sentiu em casa: as discussões eram de igual para igual, a compreensão do filme e cinemas lotados naqueles templos maravilhosos. No Queer Lisboa, os antropólogos de lá questionaram criticamente o longa, mas, tinha uma outra parte do público que defendia. Em qualquer lugar onde já apresentei a produção, há uma surpresa sobre esta questão do índio inserido dentro do contexto urbano. Isso inclui o Brasil também: quando exibi no Festival de Brasília, havia muito desconhecimento e ignorância sobre o assunto.
Felipe Bragança – Há muita ignorância no Brasil sobre o universo do indígena atual capaz de transitar pela cidade, campo e aldeia. Em geral, aqui se imagina que o índio fica restrito ao espaço tradicional dele. Quando se depara com essas pessoas no ambiente urbano, questiona: ‘isso pode?’. No Festival de Sundance, o que enfrentei com o “Não Devore Meu Coração” foram duas reações: primeiro, a ignorância geral do público americano sobre a história brasileira sem saber das questões indígenas; segundo foi a curiosidade positiva de ver os indígenas interpretando personagens de gênero. Elogiaram o fato de eu não estar fazendo apenas o realismo social e o registro histórico. Em Berlim, havia uma noção maior sobre o contexto do Brasil.
Já aqui o que se discute mais é quanto à Guerra do Paraguai. Ainda há uma ignorância imensa sobre o assunto: sabe-se que existiu, mas, não se entende o nosso protagonismo no conflito, a morte de 90% da população paraguaia, além da criação do Exército e toda a força adquirida por essa instituição após a vitória na guerra que levou ao processo do surgimento da República. A ideologia de militarizar o país vem daí.
Sérgio Andrade – E nesse conflito, o índio era usado na frente da guerra para ser morto logo.
Felipe Bragança – Exatamente. Os Voluntários da Pátria colocados para morrer eram, em sua maioria, negros e índios, os quais morriam logo por ser um conflito muito violento. Na cidadezinha onde filmei chamada Bela Vista morreram 500 brasileiros em um só dia.
Cine Set – O “Não Devore Meu Coração” foi o primeiro longa-metragem dirigido somente pelo Felipe. Já o Sérgio teve a primeira direção compartilhada de um filme com o Fábio Baldo no “Antes o Tempo não Acabava”. Como foi esta experiência para vocês neste momento da carreira?
Felipe Bragança – No meu caso, foi uma história muito específica. Os dois primeiros longas foram feitos em conjunto com a Marina Meliande e dentro de um mesmo processo. Estávamos preparando “A Alegria” há um ano, veio aquela ansiedade quase juvenil, tínhamos o elenco e acabou que chegamos também ao “A Fuga da Mulher Gorila”. Depois disso, comecei a pensar que gostaria de fazer algo em que tivesse mais tempo de processo para elaborar o projeto, fazer um filme fora do Rio de Janeiro e falar de identidade brasileira em geral. Liguei as antenas, comecei a absorver muitas coisas e, nas leituras de muitos materiais, encontrei dois contos do Joca Terron, escritor que viveu no Mato Grosso do Sul. Esses textos me emocionaram muito e acabei falando com os meus sócios sobre esse desejo de fazer um filme naquele região, além da vontade de realizar este projeto sozinho.
Foi um processo longo: passei quatro anos na fronteira porque não era a região que eu dominava. Embarquei nisso e hoje já estou com um outro projeto solo. Acho que precisei deste distanciamento do Rio de Janeiro para este trabalho criativo fluir. Não sei mensurar o quanto mudei, mas, era algo que precisava passar.
Sérgio Andrade – Na verdade, conheci o Fábio Baldo no Festival de Tiradentes em 2010. Naquela ocasião, ele estava com o curta “Caos” e eu com “Cachoeira”. A gente começou a conversar e notamos uma aproximação intelectual muito forte, inclusive, neste lance de amar ficção científica e mistérios, fora o fato de sermos de escorpião (risos). O “Antes o Tempo Não Acabava” também é de escorpião: foi rodado em novembro (risos)! Apesar da “A Floresta de Jonathas” eu ter dirigido sozinho, o Fábio já estava lá, pois, foi ele quem fez a captação do som, então trocávamos muitas ideias. Acabou sendo um processo natural para formarmos a parceria para o “ATNA”. Mas, não significa que a gente não teve brigas no meio do processo do filme (risos). Teve uma pessoa no Festival de Berlim que brincou perguntando se continuávamos amigos por saber como este processo de co-direção costuma ser tenso (risos).
Felipe Bragança – Eu não cheguei a brigar com a Marina, mas, rolava sim uns desentendimentos. Isso acontece porque é um processo muito cansativo para organizar.
Fonte: Cineset
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